As mortes de Realengo

Jaldes Reis de Meneses

Antes de abordar diretamente a tragédia de Realengo no Rio de Janeiro, cuido de tratar de nós mesmos, os que assistiram terrificados. O senso comum psiquiátrico prefere classificar o ato inumano do jovem genocida Wellington Menezes de Oliveira como obra de um psicopata, um esquizoide, um anormal, ou seja, mais uma perversão da natureza do que um produto determinado (portanto, por mais oculto, o ato seria passível de explicável) das relações sociais, uma irrupção inesperada, tão incontrolável como um terremoto no Japão.

Contra a irrupção de um terremoto só podemos oferecer os paliativos da racionalidade da engenharia e do planejamento (ensaiar insistentemente os planos de evacuação, como nos deu a lição o disciplinadíssimo povo do Japão), assim como contra a irrupção de uma maldade que se revelou absoluta, desamparados, buscamos realizar o que Freud chamou de trabalho de luto a partir de um bálsamo terapêutico sistematizado desde a civilização grega: realizar o que Aristóteles, a propósito do Teatro, chamou de catarse, que vem a ser assistir a reapresentação do acontecido, falar e falar até esgotar, provisoriamente que seja, a matéria.

Os gregos, através da representação, ensinaram a olhar olho no olho a tragédia. Neste sentido, o mecanismo da terapia tem a mesma lógica da tragédia grega: quando olhamos de frente o infanticídio cometido por Medéia, reconstituímos os seus passos até o desfecho, contudo, mesmo assim, o gesto permanece sem explicação. A arte atual está repleta de assassinos sem causa, neste instante me vem à memória o road movie macabro de Oliver Stone (Assassinos por natureza), ou o conto-matança de Rubem Fonseca (O matador, no qual um sujeito salta de uma cadeira de dentista e ato contínuo passa a matar o que lhe veem à frente), ou mesmo o romance The shining, que marra a história de um escritor mal sucedido que se transforma em assassino. Os três exemplos da arte contemporânea têm em comum o fato de que nada explicar, nestes casos, a passagem da potência (o instinto homicida) ao ato (serial killer).

Rigorosamente, nada explica o infanticídio perpetrado por Wellington, sequer as discriminações e os recalques acumulados ao longo da vida, principalmente a escolar. Muitos os discriminados deram a volta por cima, outros moeram seus recalques em forma de sofrimentos pelo resto da vida. Não vejo exagero na cobertura da mídia no caso das mortes em Realengo e acho humano, demasiado humano, a sanha em buscar explicações racionais, em psicologizar a vida escolar de Wellington Menezes, em associa-lo ao terrorismo internacional ou o fundamentalismo islâmico. Projetamos na explicação do caso também nossos temores e nossos recalques. Porém, é preciso realizar a nossa catarse, passarmos ao conhecimento de que existe o inexplicável. É exatamente o conhecimento do inexplicável que pode nos trazer de volta ao mundo do cotidiano e prosaicamente retornarmos à construção de nossas vidas sociais, assim como os gregos, depois de assistir ao Teatro, retornavam à labuta da vida na pólis.

Somos ao mesmo tempo indivíduo (sujeito), sociedade e natureza embaralhados em um único corpo. A pedra dura que moveu Wellington Menezes de Oliveira, o genocida de Realengo, ativou os comandos da irracionalidade e a caixa preta de seu processo rumo à insanidade acabou no mesmo instante em que o tiro do sargento Alves alojou-se no tórax. A nossa tendência é rejeitar a explicação de que não há explicação. Por outro lado, defrontados com tragédia, sentimos a necessidade de falar e falar do assunto, cercá-lo, explicá-lo, até provisoriamente esgotá-lo e retornarmos à vida cotidiana.

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