O lugar da Paraíba

Jaldes Meneses[1]

            O sábio professor Chico de Oliveira, Vice-Presidente da SUDENE cassado pela ditadura em 1964 e um dos principais intelectuais brasileiros, provocado em 2008, na UFPB, a respeito da “discriminação” do Nordeste, iconoclasta, aconselhou a desconfiar desse discurso. Deve-se verificar a idoneidade e os interesses da fonte. Os porta-vozes do discurso da discriminação em nossa história foram quase sempre as velhas classes decadentes que sobrevivem à sombra do aparelho do Estado, a exemplo da oligarquia agrária, que combatia os projetos de reforma agrária e industrialização de Celso Furtado, chamando-os de “comunistas”, mas, à sombra e água fresca, aparelhavam os escritórios do BNB (crédito e financiamento de projetos escolhidos politicamente à dedo), DNOCS (açudagem em propriedade privada) e IAA (preços administrados do açúcar).
            Deixemos de exumar cadáveres. Atualizo a provocação de Chico para pensar a Paraíba hoje (Celso Furtado já dizia que a Paraíba é uma espécie de “resumo” em miniatura do Nordeste), onde o discurso da discriminação rejuvenesce a partir da constatação de uma suposta “subordinação” da Paraíba a Pernambuco. Gritam em estribilho, feito o corvo do poema de Poe, as aves de mau agouro – “perdemos o porto de águas profundas, perdemos a Fiat”. Perder o porto e a montadora é grave, mas é de se perguntar se o tivemos. Só se perde o que se possui.  
Considero que o tema das relações entre Paraíba e Pernambuco na ordem do dia, mas exige um escrutínio subsidiado pela história e a economia política. O tema não é novo, data do século XVIII, quando a Paraíba colonial (1753-1799) ficou subordinada a Pernambuco e passou por um longo período de agruras econômicas. Os fantasmas do passado ainda recente de domínio nutriram no século XIX, da parte de intelectuais locais, o discurso da Paraíba “pequena e forte”, sentimento presente no famoso, ao menos para historiadores, Intrepida ab Origine, frase latina do brasão de nossa cidade de João Pessoa. Desconfiemos das insígnias dos brasões...
 Contudo, avaliando o discurso da “subordinação” na história da Paraíba, ele jamais serviu às forças populares ou mesmo modernas, sempre foi usado como uma espécie de queixa visando ofuscar as contradições de uma sociedade desigual, uma cortina de fumaça dos que se negavam a mudar ou alterar as estruturas sociais carcomidas. Mesmo assim, são contraditórios, muitos dos que se queixavam da “subordinação”, matriculavam seus filhos para estudar na Faculdade de Direito do Recife, quando não na Suiça.
O autonomismo não passa de uma quimera. O discurso da “subordinação” é rebaixado, conservador e chauvinista. Até porque uma integração das duas economias – embora seja uma integração desigual e combinada – é inevitável, principalmente agora, que vivemos uma fase de crescimento do capitalismo no nordeste e a economia, se não cresce a taxas asiáticas, só perde no Brasil para o Centro-Oeste. Se houver subordinação, ela é ao capitalismo, não a Pernambuco, às formas pelos quais este modo de produção se reproduz e opera no espaço regional. O determinismo geográfico de sermos vizinhos (PB e PE), no entanto, nos faz contrair relações incessantes e permanentes, as nossas fronteiras são permeáveis e tendem a integrar, cada vez mais, as cadeias produtivas. As fronteiras de um Estado federativo são políticas, os circuitos econômicos necessariamente mais fluidos.
São dois os parâmetros coligados de pensar as nossas relações com Pernambuco, o regional e o federativo. Desde os tempos de neoliberalismo (anos 1990), houve um processo de desconstrução da SUDENE. O órgão foi extinto, junto com a SUDAN, por um ato autoritário de FHC, justificando “combater a corrupção” (lembram-se do ranário da mulher de Jader Barbalho?). Jogou-se fora o bebe junto com a água suja do banho. A SUDENE foi substituída por uma Agência de vida efêmera. Novamente, Lula recriou a velha a repartição, gerando expectativas que logo se viram frustradas. A nova SUDENE trata-se de um órgão público praticamente de ficção, esvaziado. A nova SUDENE lulista, mesmo retomando o nome histórico, manteve a característica de uma Agência esvaziada de poderes. Se for para nada, por que recriá-la?
A Paraíba perdeu com a desconstrução da SUDENE. Já Pernambuco, Bahia e Ceará pouco perderam, e talvez até, objetivamente, tenham melhor se situado na nova conjuntura e ganhado. A qual nova conjuntura me reporto? O fato de ter prevalecido no Brasil recente uma tendência de federalismo cujo epicentro é Brasília e o modus operandi o malsinado presidencialismo de coalizão, que transforma as bancadas federais em pedintes de um executivo centralizador. O fato de no Conselho Deliberativo da SUDENE cada Estado (mais a presença consultiva dos órgãos federais na região), grande ou pequeno, isonomicamente, valer um voto, beneficia os Estados menores. Porém, o Conselho virou um fórum desnutrido, de raquítica força política, que se reúne episodicamente, do que um organismo ativo de decisões. O problema é que os grandes temas regionais passam longe do Conselho, que virou, no máximo, uma espécie de clube dos governadores do nordeste, cuja funcionalidade de vez em quando alguém lembra e chama a imprensa para bater as fotos.
 A propósito, por acaso, passados vários meses, o Conselho reuniu-se nesta sexta-feira (27/04) para discutir os problemas da seca. Nota irônica: o Conselho reuniu-se fora de sua casa, a sede da SUDENE, e foi abrigar os governadores e o Ministro da Integração Regional no Instituto Brennand. Homenagem ao grande artista? Quisera... Acontece que houve recentemente um incêndio no salão de reuniões do Conselho, cobrindo de cinzas o auditório. Penso que o incêndio simplesmente desvelou, por algum sortilégio, que o auditório tem vida, abandonado, deixou de ter razão de ser e, em conseqüência, tristonho e deprimido, ateou foto às próprias vestes. Verdade que o prédio imponente foi inaugurado pelos militares, no âmbito do projeto de “Brasil Grande”, mas mesmo assim, ainda ressoavam as vozes e os projetos do período heróico da histórica da luta de classes do nordeste, anterior a 1964.     
Sempre que vou à UFPE, que fica em frente ao prédio da SUDENE, morro de pena do estado de conservação do prédio, caindo aos pedaços; inclusive se loca, fico surpreso que se permita tamanha depravação, algumas de suas salas a entidades privadas. Se existe um grupo de grandes heróis nordestinos, as nossas melhores cabeças intelectuais – alguns deles que sobreviveram a 1964 –, eles se abrigaram no prédio da SUDENE. Hoje, a SUDENE virou o quarto de despejo de um cortiço.
No livro A navegação venturosa, Chico de Oliveira esclarece o sentido original do Conselho quando ele foi criado, que se perdeu na voragem dos tempos: “antecipando uma teorização que somente veio a produzir-se nos anos 1970, Furtado propôs uma reformulação da Federação nos moldes de um federalismo regional cooperativo. O Conselho da SUDENE expressava essa proposição: formado por representantes de todos os Estados e dos organismos federais com atuação na Região, esse organismo deveria funcionar como uma espécie de síntese da Câmara dos Deputados e do Senado da República, realizando simultaneamente a representação do povo e a representação dos Estados. Num subnível que lhe permitia articular, eficaz e não competitivamente, os recursos federais com os estaduais e sua utilização numa forma que tinha tudo para anular o jogo de soma-zero, clássico da disputa por recursos na federação oligárquica” (2003, p. 105).
Celso Furtado tinha um projeto de Brasil. Pode-se ler no segundo volume de suas memórias, A fantasia desfeita (1989), Furtado depondo de maneira serena que pensou o Conselho como contrapeso às bancadas federais do nordeste, composta majoritariamente daqueles que o chamavam de “comunista” e se locupletavam no BNB, DNOCS e IAA, pois os governadores eram mais suscetíveis ao projeto desenvolvimentista regional. Eleitos majoritariamente, os governadores eram pressionados mais facilmente pelos eleitores a apresentar resultados, enquanto os deputados, eleitos proporcionalmente, na verdade, eram mais representantes das estruturas, dos segmentos específicos de classe, do que propriamente da vontade geral popular.  Furtado não era ingênuo, embora quixotesco: feito um estadista, pensava estrategicamente qual a melhor relação de forças no âmbito do aparelho de Estado para o êxito de seus projetos. Foi este o lugar que a Paraíba perdeu.  
Sem uma mediação regional clara, a concorrência pelos investimentos estatais transferiu-se definitivamente de Recife para Brasília, onde Pernambuco, Ceará e Bahia, levam vantagem. A barganha passou de regional a federativa. Estão se desenhando vários nordestes: os três grandes Estados, os pequenos e um terceiro de expansão das fronteiras do agronegócio da soja, originário do centro-oeste, rumo às várzeas do Parnaíba (PI), entre outros. Contudo, para nós da Paraíba, interessa um único nordeste, que inclua todos os demais, mas que tenha um eixo e uma rotação comuns. Nossa particularidade é universal. Por outro lado, a prática política dominante, o federalismo equidistado em Brasília, típico do presidencialismo de coalizão (a que já me referi), composto de emendas parlamentares liberadas ad hoc e fisiologicamente pela presidente, em troca de apoio, virou uma cultura política reprodutora do atraso. O atraso sempre é montado em mentiras, impedindo a verdade de vir à luz. Prefere distrair o distinto público com o jogo de cena da “subordinação” da Paraíba a Pernambuco. Acorda Paraíba!


[1] Professor Associado do Departamento de História (UFPB). e-mail: jaldesm@uol.com.br.

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