O pequeno texto que segue trata-se de um singelo verbete de minha autoria escrito para o assim chamado “Vocabulário Gramsciano”, uma obra coletiva organizada por Luiz Sérgio Henriques (um dos tradutores brasileiros dos “Cadernos do Cárcere”, de Antonio Gramsci, um clássico do pensamento político contemporâneo). Sempre é o caso de ressaltar que além de um teórico imprescindível da política, Gramsci foi ao mesmo tempo um grande escritor.
Tradução e tradutibilidade
As interessantes notações sobre tradução e tradutibilidade em Gramsci (CC, v.1, p. 185-90) estão imersas em uma preocupação de renovar o conceito de ideologia vigente na tradição do chamado marxismo da Terceira Internacional, herdeiro da Segunda Internacional. Esta tradição considerava a ideologia como ciência positiva de classe, turvando assim as relações complexas entre teoria do proletariado e filosofia (concepção de mundo), história e política, povo e intelectuais. O problema da universalidade da ideologia incidia, mais que uma mera tertúlia diletante, sobre uma questão dramática de estratégia revolucionária no período entreguerras (1919-1939): a ideologia bolchevique, vitoriosa na Revolução Soviética — depois simplificada no exemplo pervertido do Manual de Bukharin (emblemático do marxismo praticado pela Terceira Internacional) —, tinha conteúdo universal, passível de encontrar uma reverberação e uma evolução orgânica no Ocidente capitalista, ou respondia apenas às particularidades atrasadas da formação social russa e dos povos do Oriente?

Para o pensador italiano, existe a possibilidade de as experiências históricas importantes — pelo seu grau latente de universalidade — encontrarem similares em outros ambientes culturais, desde que devidamente traduzidas. Dessa maneira, em Gramsci, há sempre a possibilidade de uma determinada linguagem vocabular e cultural encontrar uma tradução em outra — “a linguagem da política francesa [...] corresponde e pode ser traduzida na linguagem da filosofia clássica alemã” (CC, v. 1, p. 185-8). Ou seja, a revolução filosófica de Kant e Hegel tinha uma reverberação na política prática dos revolucionários franceses. Citando um verso de Giosuè Carducci, assim expressa Gramsci essa tradução (Revolução Francesa-filosofia clássica alemã): “Emmanuel Kant decapitou Deus; Maximilien Robespierre, o rei”.

Vale observar que da possibilidade da tradução advém o problema — de difícil resolução — da tradutibilidade de uma linguagem política, filosófica, estética ou científica em outra. O problema da tradutibilidade surge em Gramsci (CC, v. 1, p. 185) através de uma sentença de Lenin a propósito do fracasso da revolução no Ocidente após a Revolução Soviética — “Vilitch [Lenin] escreveu ou disse [...] o seguinte: não soubemos ‘traduzir’ nas línguas européias a nossa língua”.

Traduzir não significa, portanto, repetir, mas recriar. Em Gramsci, freqüentemente deparamos com traduções e problemas da tradutibilidade histórica: o Renascimento foi um antecedente elitista da Reforma protestante (Erasmo e Lutero), a Reforma protestante foi o ancestral rude da filosofia clássica alemã (Lutero e Hegel), o proletariado da Alemanha unificada foi o portador da filosofia clássica nacional antecedente (Hegel e filosofia da práxis), os jacobinos foram Kant e Hegel, e vice-versa. (Jaldes Reis de Meneses).

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