Paradoxos da Bossa Nova



Por que nossa forma musical mais conhecida no exterior nunca chegou a ser popular no Brasil? Não me venham com a conversa fiada que a bossa nova é popular entre nós. Estou pensando a audição da bossa nova como um problema específico brasileiro. Sem medo e sem apelar a estereótipos (adoro polêmicas), as sonoridades da bossa nova lembram as ondas do mar, as paisagens diáfanas de cartão postal da zona sul do Rio de Janeiro ou das praias nordestinas. Prolongando o argumento, a bossa nova constitui a trilha sonora do Brasil que não houve e poderia ter sido, aparecida no momento mesmo em que o país parecia acertar o passo como nação. O processo do Brasil se perdeu, e com ele a bossa nova. Se assim o for, o deleite estético da bossa nova tem seu lugar social numa esfera de reminiscência, de nostalgia pelo que não houve mas poderia ter havido, e esta “esfera de reminiscência”, necessariamente, é uma esfera de elite.
Trabalho informal e subemprego não rimam com bossa nova. Um cara desempregado, trabalhador, traficante, favelado, um Zé Miúdo, um Pardazinho, um Bonito desses da vida (alguns dos personagens dostoievskianos do excepcional escritor realista Paulo Lins em "Cidade de Deus"), dificilmente vai entretecer o tempo com acordes dissonantes em batida leve. A trilha sonora desses personagens da vida brasileira atual confunde-se com a pressa, acompanha o ritmo da metralhadora, a marca batida bate estaca da polícia e a intensidade de exploração da força de trabalho na fábrica, no supermercado, na lanchonete ou nos condomínios privados. Alguma boa alma poderia, no caso, querer fazer uma operação de separar tempo de trabalho e tempo de lazer (onde poderia caber a sonoridade bossa novista). Operação fadada ao fracasso. Recordo do depoimento de um jovem roqueiro metal, trabalhador braçal, em um dos primeiros rock in Rio, fisgado de relance pela câmara do jornal Hoje, da Globo: quero extravasar! Fetichismo na música e regressão da audição, afirmaria Adorno, embora, para ele, a bossa nova já significaria sintoma do próprio ouvido regredido.
Quando penso em bossa nova a memória me transporta às novelas de Manoel Carlos, principalmente "Laços de Família" (o clichê estético foi repetido outras vezes, a exemplo dos cartões postais de "Páginas da Vida"): em determinado capítulo da novela, Vera Fischer faz uma viagem deslumbrante tendo como paisagem as praias do litoral do Rio de Janeiro, as belas águas azuis e os olhos verdes da atriz embaladas ao som das soluções plásticas de Wave (Tom Jobim), dirigindo um carro de luxo. Minha tese é que a trilha sonora do Brasil urbano das grandes cidades não cabe em ritmo intimista, embora possa caber num pagode ou num samba enredo e tenha predileção pelo rap.
Caetano Veloso, em um dos pontos altos de análise musical de seu livro "Verdade Tropical", realiza uma interpretação original da bossa nova, na qual João Gilberto ocupa uma posição estratégica dentro do que ele chama “linha evolutiva da música popular brasileira”. Na versão de Caetano, contrário aos chavões da crítica musical, jamais encontraremos a alma da bossa nova nos fraseados do jazz (no conceber de Caetano, a versão de gênese apresentada por Carlinhos Lyra em Influência do jazz – “pobre samba meu/foi se misturando/se modernizado/ e se perdeu... – é uma roubada) nem nos encadeamentos impressionistas de Debussy (as novelas de Manuel Carlos misturam fundo musical de Tom Jobim com gravuras de tipo impressionista). A alma da bossa nova encontra-se, isto sim, no esforço musical de João Gilberto em apanhar os fraseados e os encadeamentos do samba, porém não precisamente o samba morro, mas o samba já transformado em sua recepção pelo rádio, um meio de reprodução técnica moderno, donde se sobressai o trabalho de cantores da estirpe de Orlando Silva, Mario Reis e Silvio Caldas, principalmente o primeiro. Ou seja, em Caetano, temos a bossa nova como evolução, e não ruptura, da tradição da moderna canção popular brasileira de rádio, e João Gilberto como uma evolução sofisticada do sofisticadíssimo Orlando Silva. Escreve Caetano, ao analisar duas gravações de um samba-canção de Tom Jobim, Caminhos cruzados, respectivamente, nas vozes de Maysa e João Gilberto: “é útil comparar essas duas gravações para entender o significado do gesto fundamental da invenção da bossa nova. A interpretação de João é mais introspectiva que a de Maysa, e também violentamente menos dramática; mas, se na gravação dela os elementos essenciais do ritmo do samba foram lançados ao esquecimento quase total pela concepção do arranjo e, sobretudo, pelas inflexões do fraseado, na dele chega-se a ouvir – com o ouvido interior – o surdão de um bloco de rua batendo com descansada regularidade de ponta a ponta da canção. É uma aula de como o samba pode estar inteiro mesmo em suas formas mais aparentemente descaracterizadas...”.
O uso criador e cada vez mais ilimitado da percussão (percussão para o barulho e percussão para o minimalismo da audição) tem sido uma das novidades alvissareiras da música brasileira contemporânea. Atualmente, há tentativas de fusão de formas musicais brasileiras, o maracatu e a bossa nova com o rap, o drum and bass e o reagge. Caso voltemos a escutar a série de discos de Caetano Veloso confeccionados sob a supervisão musical de Jacques Morelenbaum, em estúdio ou ao vivo (Fina estampa, Noites do norte, Prenda minha, A foreign sound), perceberemos o seguinte: estamos diante de uma combinação sinfônica de cellos, pallas, encorpando o rhythm-and-blues, a balada, o bolero, a rumba, o brega, o samba, etc. Até aí, nada de novo. A novidade é que, junto da entonação das grandes orquestrações, não se abre mão da presença de destacar, em momentos decisivos, duas sonoridades: um naipe possante de metais em estilo de música popular (um naipe de metais profano, portanto, distinto e em contraponto da disposição erudita dos cellos e das pallas), e, principalmente, uma cozinha aonde a percussão dá o tom. A renitente marcha da percussão é sempre audível, até mesmo nos momentos intimistas de voz e violão. Caetano regravou Caminhos cruzados (a composição de Jobim analisada, como vimos, nas páginas de Verdade Tropical) no disco Noites do norte ao vivo. Trata-se de um disco de algumas sonoridades rockeiras e, ao mesmo tempo, de estudo “percussivo” de clássicos da bossa nova – Eu e a brisa, de Johnny Alf, entre outros –, fazendo na prática a explicação sobre a gravação de João Gilberto. Escutem e percebam.
Falando de João Gilberto o outro baiano está falando dele mesmo. O projeto de Caetano Veloso em música popular é todo pensado, medido, planejado, até como forma de compensar o fato de ele ser um grande cantor, um melodista inspirado, contudo, um músico-instrumentista sabidamente limitado. Mesmo nos momentos em que verseja, a programática do compositor aparece cifrada, maneira pela qual podemos compreender a letra de Desde que o samba é samba (... o samba é pai do prazer/ o samba é filho da dor/ o grande poder transformador), uma das canções de Tropicália 2. Por outro lado, João Gilberto parece gostar da démarche de Caetano em incluí-lo na linha evolutiva do samba. No mais belo de seus discos recentes (João voz e violão), a faixa de abertura cabe precisamente a Desde que o samba é samba, seguindo-se uma coleção de pérolas de sambas antigos; nesta gravação, João Gilberto postula a uma percussão discreta, pontuadora do silêncio, alusão que já se revela na própria capa – uma moça com o dedo indicador na boca, como se exigisse cessar a poluição sonora em volta e realizar uma cerimônia minimalista de audição. (Uma das filhas de João Gilberto, Bebel, tem sabido aproveitar essas lições: escutemos sua interpretação do afro-samba de Baden e Vinicius, Samba da benção, no disco Tanto tempo). Pois bem, enfim o argumento. Foi precisamente o elemento da renitente batida percussiva (a coisa eminentemente brasileira que remota às origens do samba) – tematizado na análise do compositor baiano – o que foi importado da bossa nova pelo drum and bass da música eletrônica, numa espécie e argionarmento internacional da velha bossa que rigorosamente não é popular no Brasil, país da bossa nova futuro do pretérito. Voltarei ao assunto. Por enquanto, algumas idéias foram jogadas no ar para teste. (Jaldes Reis de Meneses).

Comentários

Ednamay disse…
este professor JALDES, que sensibilidade para escrever sobre TUDO e todos, afinal BOSSA NOVA e Eleonora Falcone não diferem muito, em certos aspectos elitistas, adoro ambas as provoçaões, e vejo uma turminha de classe média - MÉDIA UNIVERSAL, que sempre torce para sua sardinha, vi de perto os amiguinhos de Nelsinho Mota em Copacabana, finais de tarde e altas madrugadas, violão, uisques bate papos e uma BOSSA que sempre será deles, não importa quem tenha passado por ela, somente ELES serão os bambas.

Até vi perdidos pela América de Santo Domingo, Punta Cana, na REPÚBLICA DOMINICANA ,bacana tourné tentativa de sobrevivência desse estilo musical por lá anos 80, e todos enloquecíamos pelo fato de ser música brasileira, executada e cantada por brasileiro , mesmo com banquinho e violão sem percussão, que fantástica.
Eita, May! Botou prá quebrar! Como disse o Padre Antônio Vieira, "os discursos de quem não viu são discursos, os discursos de quem viu são profecias". Vc viu! Mas gosto muito de bossa nova, e não vejo propriamente uma ofensa em afirmar que é uma audição de elite. Ao contrário. Elite é um conceito ambivalente, negativo e positivo. Depende. Meu argumento vai noutra direção: de olho na dura realidade da formação social brasileira, no problema de que os produtos do progresso, hoje, estão longe de possibilitar a incorporação daqueles que o velho Florestan Fernandes chamava de "os de baixo", observar uma certa dificuldade de fluição estética de massas da bossa nova. Somente isso. Vc é adorável, abraço e beijo,
Jaldes.
Jaiel de Assis disse…
Jaldes gosto do seu estilo de escrever, acho que estava faltando alguém para escrever sobre arte com gosto, como quem come doce de leite, isto quem gosta de doce, ou mel de engenho com farinha, acho que você escreve assim. Acho que o texto precisa ser menos longo ou ter continuações, sua qualidade literária permite isso sem prejuízo de quebrar o assunto.
Sobre as diferentes formas da elite ou das categorias que você descreve como trabalhador, desempregado, traficante, etc.,gostar de determinados tipos de arte, tenho duas observações:
a) um certo dia minha filhinha de uns três aninhos ouviu "Garota de Ipanema" cantada por Elis Regina e ficou como a música na sua memória de criança cantando de forma totalmente infantil;
b) duas filhas de empregadas domésticas que trabalhavam em minha casa em ocasiões diferentes, tiveram acesso a livros de poesia e a música clasica. Uma delas me pediu os livros para ler e conhecer e declarou que achou aquele tipo de leitura muito gostoso, mas que não podia comprar e nem tinha em sua escola, a outra apenas me pergutou: "o senhor gosta dessas músicas dos desenhos animados, eu também acho legal".
Diante disso fiquei pensando se o gostar de determinados tipos de arte é uma questão de Classe social ou de uma serie de fatores e entre eles alguns que são determinantes como a exposição que a mídia dar a determinados artistas.
Parabéns pelo blog e estarei lendo todos os demais artigos.

Postagens mais visitadas deste blog

Vinícius de Moraes: meu tempo é quando

Colômbia: 100 anos de solidão política

Gramsci: A Filosofia Política do Conceito de Relações de Força (trechos)