11 de Setembro: Seis Anos


Jaldes Reis de Meneses


Parece que foi ontem, mas já são seis anos! Estava em casa, tranqüilo, mais ou menos no final da manhã, em frente ao computador e olhando o mar, dando os acabamentos finais em uma tese de doutorado. Surpreendendo a calmaria, minha querida cunhada, Janetinha, liga dos Estados Unidos, preocupada sem desespero, e pede para ligar a televisão. Ainda a tempo de ver, em casa e ao vivo, sem nada poder fazer para impedir, o segundo avião batendo nas Torres Gêmeas. Virei (viramos todos nós) testemunha(s).
Minha primeira reflexão mais comedida, depois de absorvido o impacto da imagem: somos inescapavelmente história, embora estejam nossas vidas assentadas, quase sempre, no chão modorrento do cotidiano. Antes que chegassem as primeiras análises de televisão, jornal e internet recordei duas passagens conhecidas, de dois autores, clássicos da filosofia: Hegel e Adorno. Um texto parece estar na contraface do outro, ou nem tanto, pensando melhor, se supusermos que um escreveu no século XIX e o outro no século XX. Testemunhas, testesmunhos. No começo do século XIX, estudante de Teologia, Hegel, viu na passagem triunfal de Napoleão nas ruas de Berlin o próprio “espírito do mundo” montado no galope de um cavalo. Havia otimismo inclusive na conquista, posto que longe de ser um trânsfuga Hegel se achava pensando o projeto ilustrado alemão. Por seu turno, em Minina moralia, este terrível livro que cabeceira que devemos sorver aos pedaços, na metáfora dialética de Adorno, o antigo cavalo napoleônico vinha nas “asas de um míssil atômico” . Ou seja: afastado do otimismo hegeliano, a mensagem de Adorno expunha a cru a possibilidade trágica da história contemporânea: sermos devorados por nós mesmos, através e por dentro dos objetivos e das relações que criamos (razão instrumental e capitalismo).

Há muito que comentar sobre Hegel e Adorno, matizando tanto o otimismo de um quanto o pessimismo de outro. Prometo um comentário específico em outra ocasião. No momento, desejo tão somente, a partir do truísmo verdadeiro, repetido por quase todos, de que o “mundo mudou”, abordar uma faceta geopolítica e estratégica fundamental do mundo hoje: o balanço do governo George W. Bush, no dia mesmo da data dos 11 de setembro, e lemos nos portais de internet que os norte-americanos já gastaram algo mais de 500 bilhões de dólares na Guerra do Iraque, dez vezes mais o PIB daquele pobre país!

Em primeiro lugar, gosto de distinguir povo americano e Estado americano. Bush, ao adotar a plataforma estratégica dos neoconservadores (a estratégia de império) e do fundamentalismo cristão (a crítica aos valores morais do individualismo), ajudou a cindir a nação americana. O ápice de sua vitória, contudo, foi a vitória eleitoral contra John Kerry, na reeleição em segundo mandato. A partir daí, a estrela republicana e seu projeto reacionário passou a declinar.

Indiscutivelmente, a vitória eleitoral de George Walker Bush representou a consagração interna do projeto de império americano, acalentado desde o fim da União Soviética e da chamada bipolaridade dos tempos da guerra fria (1948-1989), que tinha como pano de fundo dois modelos societários bem definidos, o burocratismo socialista soviético e o capitalismo monopolista ocidental.

Quando a bandeira da foice e do martelo arriou do mastro da Praça Vermelha, os ingênuos chegaram a sonhar a realização do projeto da Paz Perpétua (1988), vindo da boa alma de Immanuel Kant – uma comunidade internacional cosmopolita, esclarecida, de cidadãos do mundo, legitimados por uma organização mundial de Estados Nacionais (premonição kantiana de uma ONU idealizada e irreal).

Acaso haveria Kant derrotado Clausewitz? A paz teria levado de vencida a guerra? Engano. Tão logo se dissipou a força do sovietismo, os estrategistas de Washington perceberam – já em 1991, durante o governo de Bush pai – que haver um vazio de poder seria um equívoco fatal: se antes, todos os espaços eram preenchidos pelo litígio das duas grandes superpotências, doravante, só deveria haver espaço para a soberania absoluta norte-americana. Finda a guerra fria, os americanos queriam domínio externo, de alguma maneira abdicando da hegemonia, recordando a diferenciação de Gramsci que fez fortuna na análise da prática política.

A aplicação estratégica do projeto de império foi o motivo real da primeira Guerra do Golfo (1991): a cortina de fumaça do argumento de defesa da soberania de um Estado Nacional indefenso (o Kuait) foi apenas o álibi, serviu para angariar apoios da comunidade internacional e da maioria dos intelectuais progressistas – aspecto hoje esquecido –, como o italiano Norberto Bobbio e o alemão Juergen Habermas.

Tanto Saddan Hussein como os pacifistas analisaram mal o fim da União Soviética, pecaram por devaneio: o ditador sonhava consolidar o Iraque como potência regional no mundo islâmico e os diversos kantismos liberais viam no indubitável papel hegemônico desempenhado pelos Estados Unidos durante a guerra fria (os EUA organizaram as nações capitalistas na luta contra a URSS, algumas vezes cedendo os anéis para não perder os dedos), e na constituição liberal americana, as bases políticas e jurídicas constituintes do novo mundo de paz.

Muitas boas almas viram na força intervencionista das forças armadas dos Estados Unidos mais sinal de garantia da paz do que prenuncio da guerra: a experiência do exército americano ajudaria na organização de uma força armada internacional, os “boinas azuis” dirigidos pela ONU, prontos para agir ante qualquer ameaça ao direito internacional e a democracia. O devaneio foi tão forte que atingiu até a ultra-esquerda, nas figuras de Antonio Negri e Michael Hardt, no best sellers intitulado Império (2001), livro no qual decretaram o esgotamento definitivo da forma política do Estado Nacional e do imperialismo econômico: doravante a luta político-social se daria, sem mediações, em torno de dois personagens principais, a diáfana multidão (multitude), composta da massa de novos trabalhadores intelectuais, migrantes e outsiders contra o novo império, este último mais uma rede dispersa de micropoderes e macropoderes (com ênfase metodológica no micro) do que um Estado centralizado. Contudo, Negri e Hardt foram ainda mais longe: em projeto político de incontornável ilusão jurisdicional, atribuíram à constituição dos Estados Unidos, na defesa que faz dos valores liberais, a possibilidade de instituir o novo direito da multidão.

Sem dúvida, os Estados Unidos possuem, hoje, um projeto nacional de império, mas, atenção leitor(a), só a simples aposição da expressão nacional antes de império interdita as razões de Negri e Hardt. Expliquemo-nos. A ereção de um império – no sentido de uma soberania absoluta que sobrepuje os de todos os demais estados nacionais –, no mundo contemporâneo, é uma operação das mais complexas, talvez inexeqüíveis. Para o novo império passar a ter estabilidade, não é suficiente fazer como fez Roma um dia, segundo a narrativa de Políbio: ocupar militarmente o território de civilizações decadentes no oriente ou de bárbaros recém-saídos do neolítico na Europa ocidental, praticar algum ecumenismo cultural em troca da pax romana. É preciso destruir o sistema de Estados Nacionais.

Tarefa de deuses, jamais de mortais, pois lembremos que o sistema de Estados Nacionais é o principal sistema de relações internacionais no mundo desde o século XVII, consagrado desde quando, na Paz da Westfallia (1648), os Estados da França, Suécia e o Império Sacro-Germânico (que depois de Westfalia se fragmentou) chegaram a um acordo diplomático laico, pondo fim à fase das guerras de religião na Europa, estabelecendo um equilíbrio de forças baseado na soberania estatal e não no dogma de fé. A questão histórica de fundo, portanto, é de que a forma política do império é uma forma estatal muito anterior a do Estado Nacional (diria até mais rudimentar, no sentido de menos hegemônica) – e também anterior à economia capitalista. A anterioridade do império relativo ao Estado Nacional – insistimos – não é de somenos, pois, se quisermos projetar os conflitos do mundo com base nas tendências emergentes da atualidade, devemos defini-lo a partir da tensão recém-estabelecida entre um projeto imperial sui-generis (efetivado com base na economia capitalista) e formações nacionais consolidadas como a França, a Alemanha, o Japão, a China, etc.

Há um grande ineditismo histórico no projeto imperial americano atual. Na história do capitalismo convivemos com alguns impérios, como o Inglês (séculos XIX e XX), mas o domínio inglês jamais ambicionou a soberania absoluta do mundo, na verdade constituindo um império de estratégia imperialista que não ousava submeter o centro do sistema, mas a periferia sul-americana, africana e asiática. Só temos uma experiência histórica contemporânea que guarda alguma semelhança com o atual projeto americano: o nazismo de Hitler. O objetivo de Hitler não era submeter à periferia do capitalismo (Império Inglês), mas dominar todo o continente europeu (inclusive a União Soviética).

Bush filho parece ter apreendido a principal lição de Hitler: não há império sem utopia. Os incautos podem achar que estamos exagerando, mas a realização de uma operação política da magnitude da construção de um império dificilmente pode adquirir um caráter racional e laico, desprovido da crença em valores morais absolutos e messianismo, do destino manifesto de uma nação em emancipar a sociedade alienígena do pecado.

Poderíamos estar no limiar de uma tragédia histórica: assistindo ao esboço da tentativa de montagem do segundo império total da história do capitalismo. Mas as coisas começaram a declinar... (Continuaremos amanhã, ou depois...)


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