Subo e Nunca Chego ao Céu

Jaldes Reis de Meneses
Professor do Departamento de História (UFPB)


Cidade dos Homens (direção, Paulo Morelli) não é um grande filme, mas uma produção maneira, que explora três filões narrativos: o humanismo urbano típico das figuras dramáticas do neo-realismo italiano, flagradas pela câmera em situações de risco na rua, com a diferença que, no filme brasileiro, a bicicleta do protagonista do Ladrão de Bicicleta (clássico dirigido por Luchino Visconti) foi substituída pela motocicleta de Laranjinha; a colagem frenética proposta pelo cinema-painel de Robert Altman, explorado no cinema contemporâneo de Crash e Babel; e, enfim, o hiperealismo de Cidade de Deus (o filme de Fernando Meireles, não o livro de Paulo Lins, bem melhor que o filme). Afora as três referências citadas, uma reverência: os painéis visuais entre o morro, o asfalto e praia, semelhante às tomadas panorâmicas de Rio 40 Graus, de Nelson Pereira dos Santos.

Cidade dos Homens, caso dê certo na bilheteria, um objetivo difícil, pretende consolidar um gênero de filme social brasileiro, iniciado com o mega sucesso de Cidade de Deus: a vida crua e sem retoques da favela. Certamente, a deduzir pelo desfecho do filme, em breve teremos uma continuidade – é claro, sempre a depender do resultado da bilheteria. Confesso um incomodo pessoal com essas produções em série do cinema brasileiro atual: todas são aplicadas, nossos diretores passaram pelos bancos das universidades de cinema, aprenderam a fotografar, fazer roteiro e conduzir atores. Estamos diante da sistematização de 100 anos de prática cinematográfica e de estudo crítico-acadêmico: as emoções estão quase todas esquadrinhadas, as surpresas reiteradas; os choques, a violência, assimilados. Nada escandaliza. A educação do olho nos acomodou em uma armadura de insensibilidade face aos ardis da narrativa: o pai de Laranjinha pode ter matado o de Acerola – fato a que os dois só tomarão conhecimento depois de uma investigação no filme –, feito uma tragédia grega (ou um dramalhão mexicano?), contudo, sabemos que a tragédia, na verdade, significa somente um recurso da ação, muitas vezes vinda num momento de aperto do roteiro, no sentido de dotar a narrativa de elementos melodramáticos.

É neste arremeto que está resultando o chamado “cinema dos roteiristas”, a tendência de começar a fazer sobressair e a retirar da penumbra a figura responsável pela escrita dos diálogos, seqüências e marcações de um filme. Arremedo e paradoxo, a um só tempo, pois nenhum espectador de cinema se deixa mais levar por esses ardis. Todo mundo é esperto. Evidentemente, a tendência a fazer sobressair à figura do roteirista sobre o antes todo onipotente diretor, significa o predomínio de certa “literalização” ou “dramaturgização” do cinema. No Brasil, talvez seja o caso de chamar o fenômeno pelo estranho neologismo de “novelização”. Com essas observações, queremos advertir que o profissional da escrita recrutado para brilhar no star system cinematográfico, longe de ser um literato qualquer, na verdade é pessoa treinada nas linguagens do realismo e do naturalismo, deslocados da literatura para integrar a tradição do trailer. Conservadorismo estético. Cinema-mercadoria.

Em um recente programa televisivo, Roda Viva (TV Cultura), transmitido de Parati (RJ), durante o Festival Literário Flip, fiquei bastante preocupado com uma afirmação do escritor e roteirista mexicano Guilhermo Arriaga (Babel e 22 Graus devem ser seus roteiros mais conhecidos no Brasil). No entender de Arriaga, o melhor filme é o que emociona, aquele no qual o espectador se envolve no drama de tal maneira que sequer pergunta pelo sublimado, o escavado, tanto que sequer encontra tempo de indagar pelos suportes estruturais do filme. Visando dar um ar intelectual à tese, Arriga mencionou, senão me trai a memória, a grande tradição do romance realista do século XIX. Falso. Não vou atrás de Machado de Assis, porque seria até covardia, mas do “romance-filosófico” de Dostoievski. Quem se der à pachorra de ler, por exemplo, Os Demônios, a história romanceada com a qual Dostoievski quis dar seu testemunho a propósito dos crápulas morais do terrorismo russo, terá que se deter, fixado, por muito tempo na profundidade extenuante dos diálogos. O grande escritor russo não vende as facilidades da “emoção”: vai fundo na bacia das almas, estuda as situações limites, requisitando concentração total do leitor. Sem dúvida, propõe-se um mergulho no enredo, porém sem desarmar as cautelas e o aparelho conceitual do leitor, até exigindo deles. Não gosto de arte em geral somente pela emoção, a arte do senso comum. Sempre é possível indagar pelo oculto, realizar a saudável operação crítica de enxergar o subsolo.

Por isso mesmo, há um elemento à primeira vista invisível em Cidade dos Homens que pode ajudar na compreensão do impasse brasileiro neste começo de século XXI, para mim o ponto alto do filme: a construção da relação entre Laranjinha e o Pai, que jamais assumiu o filho, no modelo do melhor neo-realismo italiano. Duas gerações de vida sofrida estão em cena: a de Laranjinha, garoto simpático da favela, e o Pai, Eraldo, um homem atormentado, em liberdade condicional depois de 15 anos atrás das grades de uma prisão. O filme deixa entrever não haver ascensão social entre pai e filho. A paisagem urbana muda com o tempo, mas o destino de Acerola deverá reiterar o do pai: isso é o Brasil imóvel, para aqueles que o velho Florestan Fernandes – este grande intelectual radical brasileiro (um homem que nunca foi cooptado) –, chamava, com tanto carinho, como “os de baixo”. Encerro citando versos de Sérgio Sampaio, compositor de música popular que tanto gosto, entre outros motivos, pela sensibilidade de profeta, apresentando a tragédia do morro sem fantasia, mas com graça, em Cruel: “São Carlos, morro, Borel/ Subo e nunca chego ao céu”. Eraldo e Laranjinha estão condenados a jamais subir ao céu, senão mortos numa batida da polícia ou numa guerra do tráfico de drogas. São nossos irmãos, brasileiros.




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