Hai-kai e kai-quase (III)

A grande questão, no fundo é a seguinte: o que realmente importa não é, precisamente, a forma fixa, mas o que fazemos dela, um pouco parafraseando Sartre. Ou seja: a questão fundamental não é o que o hai-kai é, mas o que fazemos dele.
Tenho uma cisma com dois extremos: tanto o que se adequou pacificamente à forma fixa como o que desconhece a rica tradição da poética, a maneira pela qual as formas poéticas foram aparecendo e se impondo como tradição. Nos dias atuais, percebo que começam a aparecer, entre novos poetas e alguns já rodados, um conjunto de maneiras, algumas ricas e outras nem tanto, de lidar com a tradição e a inovação. São dois os extremos: quem se satisfaz com a tradição e quem a desconhece. Há um fundo comum entre as duas situações: a exaustão do discurso da vanguarda, que gerou uma saudável liberalização, mas ao mesmo tempo uma circunstancia de predomínio alternado tanto de formalismo como de vale tudo.
A propósito dos que se satisfaz com a tradição (prefiro não citar o nome, sorry): li recentemente em um jornal a opinião de um intelectual que respeito afirmando que o desafio do artista é regido principalmente pela tarefa de enfrentar por dentro as formas poéticas consolidadas. Discordo radicalmente. Embora trabalhar com essas formas, tipo o soneto alexandrino, a redondilha, a balada, a elegia, ou mesmo o hai-kai, sabe lá o que, possa vir a constituir um desafio, desbordar dessas formas também pode significar o desafio. Em suma, o âmago do desafio não se encontra em seguir ou desbordar da forma, mas em tirar tudo da alma, do fundo do poço, da vida cotidiana.
Por outro lado, devemos indagar porque alguns jovens poetas pouco estão preocupados em conhecer a tradição. Em primeiro lugar, por um motivo simples: essas coisas, via de regra, estão fora dos currículos escolares, sabemos que o ensino da língua se abastardou nos últimos anos. Mas ninguém consegue matar a poesia. A flor pode nascer no esterco ou no asfalto. Usam-se as armas que se tem. Da cegueira pode, paradoxalmente, emergir a bela poesia, mas é mais difícil. Conhecer as possibilidades da língua; conhecer, no caso da língua portuguesa, por exemplo, um Camões, só pode aumentar a capacidade de comunicação estética em poesia, jamais diminuir.
Muito da poética contemporânea que circula por aí, principalmente na internet, é meio primária. Nem se trata de alternativo, underground, quando sabemos, por exemplo, que um Allen Ginsberg, foi um puta poeta e um grande conhecedor de Dostoievski. Mais ainda: a poesia de Ginsberg é impensável sem Dostoievski. Desconhecimento nunca é bom. Saber sobre a premonição do velho de Restelo (a profecia de que Portugal, após a glória das navegações, sobreviria uma longa época de decadência) a ou sobre a triste sina de Inês de Castro (a princesa assassinada depois feita rainha), personagens narrados em “Os lusíadas”, para além dos estudos formais, significa ir ao fundo das questões humanas.
Talvez a forma poética típica da vida contemporânea venha a ser o verso livre ou, melhor ainda, a partir da afronta produzida pelo verso livre, a disposição de servir como escravas todas as formas poéticas construídas ao longo do tempo em todas as tradições e culturas. Tudo está ao nosso dispor e pode transformar-se em poesia. Aqui encontramos o cerne do desafio. Sequer escrevo uma novidade: Baudelaire, por exemplo, já no século XIX, tanto trabalhou, com temáticas da vida urbana e da modernização capitalista, a partir das formas fixas – foi um divino sonetista – como também fez o uso polêmico da forma do poema em prosa, nos poemas de o “Spleen de Paris”. Contudo, tanto no soneto petrarquiano como no poema em prosa a temática, o conteúdo, era a vida que ele via e via: a Paris do segundo império. (Jaldes Reis de Meneses)


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