Resenha
NOTAS SOBRE MODERNIDADE E ESTÉTICA
Jaldes Reis de Meneses[1]
CICERO, Antonio. Finalidades sem fim. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. 354 p.
Os espaços de debates de idéias têm escasseado na imprensa diária brasileira. De alguns anos para cá, sumiram os suplementos literários, e com eles quase desapareceu um gênero literário. A moderna crítica de cinema e literatura, o ensaio livre a meio caminho entre a nota jornalística e a tese acadêmica, por muito tempo do século passado uma tradição brasileira, praticada por intelectuais do porte de Alceu Amoroso Lima, Álvaro Lins, Agripino Grieco, Juarez da Gama Batista e Antonio Candido, entre muitos, praticamente desapareceu. Aconteceu no Brasil um movimento de passagem de uma critica cultural refinada, mas escrita legivelmente, a rápidos comentários sobre as novidades do mercado cultural, de Paulo Coelho a Gabriel Garcia Marquez. Aprendemos pouco, hoje, na imprensa cultural, reduzida a um papel de bússola e de termômetro do consumo. Foi-se embora a dimensão de formação, Paidéia. Ainda bem, em contrapartida, que começam a frutificar interessantes iniciativas editoriais no âmbito do mercado, como as revistas mensais de história, filosofia, literatura e principalmente – eis aí de fato a novidade –, na contraditória babel gerada pela internet, a disseminação dos blogs de poesias, crônicas e ensaios feitos por desconhecidos.
Fala-se muito, com acerto, em crise e decadência da imprensa, a primeira esfera realmente pública do mundo moderno. A circulação de idéias preparava as barricadas da revolução. No começo histórico da modernidade, no dizer de Hegel, o jornal era uma leitura necessária como o pão matinal, ou de Keynes, que aconselhava aos alunos somente duas leituras, a economia política de Marshall e The Times. Era o suficiente; o excedente, erudição. Por absurdo, acaso fossem vivos, certamente, Hegel e Keynes riscariam os jornais de suas predileções, e talvez recomendassem a navegação em portais da internet. Abusando da imaginação, seria difícil a Sartre, caso vigorasse em 1968 as condições de hoje, sair em praça pública distribuindo em protesto jornais maoístas ou alternativos (La Cause du Peuple e Libération), visto que as idéias alternativas migraram do papel imprenso e das rotativas para o suporte dos bits e dos chips. Enfim, a imprensa tradicional, formadora de opinião pública democrática, infelizmente e sintoma dos tempos, mais parece uma frágil cidadela sitiada por forças poderosas, a exemplo dos próprios interesses corporativos empresariais do ramo, do Estado e do grande capital. Decerto, ainda resta, sem dúvida, vida inteligente na imprensa brasileira, e são bem-vindos os espaços de qualidade nos jornais, como a coluna do filósofo e poeta Antonio Cicero no jornal de Folha de S. Paulo.
Antonio Cicero trata-se de um caso bem brasileiro de fusão da mais fina erudição e música popular, nesta terra em que sambistas pobres do morro, da estripe de Cartola, Elton Medeiros e Guilherme de Brito cuidaram com especial elegância da maltratada língua portuguesa. Qualquer letra desses grandes sambistas é superior em qualidade estética e literária às muitas toneladas de poesia prosaica brasileira contemporânea, ressalvadas as exceções de praxe, tipo o sentimento à flor da pele de Ana Cristina César. Música popular no Brasil é assunto sério. Ao contrário de outros países, aqui, desde cedo, houve contactos e influências entre o erudito e o popular – entre Sinhô e Villa-Lobos. De sorte que uma pessoa como Cicero, evidentemente mais conhecida como letrista da cantora Marina Lima, sua irmã, e de compositores como João Bosco, Lulu Santos e Adriana Calcanhoto, seja, ao mesmo tempo, filósofo, com dois importantes livros de ensaios na praça, e poeta.[2] Talvez a circunstância semelhante de um poeta, letrista de música popular e concomitantemente filósofo só possa ocorrer nos Estados Unidos, pois aqui como lá, a música popular e erudita não se fechou, abriu-se a influências e confluências. Claro que, no caso brasileiro, ocorre a outra face perversa da moeda: na tradicional ausência de um espaço público cultural consistente de trocas, as referências da cultura erudita migraram para o campo popular (os nichos acadêmicos funcionam em circuito especializado), motivo pelo qual talvez um erudito como Cicero tenha escolhido trabalhar intelectualmente fora da Universidade. Há males que vêem para bem: quem conhece as bizarrices da formação social brasileira, algumas espantosamente produtivas, sabe do que estou falando.
Há dois grandes temas coligados na obra filosófica, ainda em curso, de Antonio Cicero: o conceito de modernidade e, por extensão, a estética ou, melhor dizendo, as presumíveis configurações de uma estética da modernidade.
No tocante à modernidade, ele opera com a tentativa de formular um conceito rigoroso, trans-histórico, desbordando do meramente descritivo, o que não chega a ser precisamente um ineditismo, pois assim agindo, na verdade, ele está resgatando as melhores tradições ilustradas do iluminismo do século XVIII.
Costumo expor em sala de aula que alguns conceitos, como cidadania e modernidade se banalizaram – viraram o que chamo de “conceito-saco” (todo mundo, especialmente a ignorância acadêmica, a mais danosa de todas, coloca no “saco” o que bem entende). Alguns pensam, por exemplo, que modernidade significa o culto ao novo – esta definição caberia melhor aposto ao conceito de vanguarda. A modernidade veio a constituir um tempo histórico que incorporou, efetuando recortes e atualizações (incorporamos o espírito trágico, mas abrimos mão dos rituais sagrados de sacrifício), elementos arcaicos e do cânon clássico ocidental, sem problemas nem preconceitos, à maneira de uma grande válvula de sucção. Queremos ser modernos e helênicos e não anacronicamente helênicos. Neste sentido, em dois exemplos escolhidos ao acaso, a poética de Homero ou a teoria da graça de Santo Agostinho podem conter elementos de modernidade e, através de um saudável revisionismo histórico, serem trazidos ao terreno do contemporâneo e valorizados como criações de um espírito universal. Memória, autoconsciência do desenvolvimento da humanidade, na acepção de Lukács.[3]
A questão central, para além do basbaque culto ao novo, foi levantada por Kant em seus ensaios sobre o iluminismo[4]: a modernidade estabelece uma relação horizontal (Sérgio Paulo Rouanet chama de sagital, [5] em seta, repetindo, neste caso, o seminal Foucault da fase pouco antes de morrer) entre tempo e cultura, ao passo que em outros tempos históricos a relação era vertical, no sentido passado-presente. Conforme Foucault, o dado novo da modernidade consistiria, a partir de Kant, em não conceber mais a relação ao presente em termos de relação de valor (estamos em um período de “decadência” ou de “prosperidade”), não longitudinalmente, mas como uma relação sagital à própria atualidade. Escreve Foucault: “a filosofia como problematização de uma atualidade e como interrogação da qual faz parte e em relação à qual tem que se situar, poderia caracterizar a filosofia como discurso da modernidade e sobre a modernidade”.[6] Dessa maneira, a originalidade do espírito de tempo estaria no reconhecimento da modernidade como um agora permanente, ou seja, um ethos calcado na transitoriedade das coisas como a essência do mundo. Por isso, aliás, que o primeiro iluminismo nomeou a si mesmo, mais que um acontecimento histórico, como um evento na história do pensamento.
A propósito de uma glosa sobre a especificidade dos tempos modernos, na conceituação de Hegel, Habermas, afirma que “a modernidade não pode e não quer tomar dos modelos de outra época os seus critérios de orientação, ela tem de extrair de si mesma a sua normatividade.” [7] É verdade que encontramo-nos diante de um paradoxo – a efemeridade como o absoluto. Ser moderno seria admitir a priori a transitoriedade das coisas e o subjetivismo das interpretações, a consciência do caráter subjetivo e negativo da sociedade. Rigorosamente, a modernidade sempre é um processo em aberto, devir. Cicero parte de uma fundamentação parecida com a de Habermas visando indagar o que intitula de “concepção de mundo” da modernidade. Buscando apoio em Hegel, ele vai afirmar que os fundamentos das concepções do mundo anteriores à modernidade eram objetos exteriores e positivos, como nação, raça, Deus, internalizados no processo de socialização de fora para dentro do indivíduo. Em suma, objetos de domínio em vez de objetos de liberdade. Na visão de mundo do autor, não deve haver mais lugar, na concepção de mundo da modernidade, para “utopias positivas” – no sentido de exteriores ao indivíduo.
Ora, ao admitir o absoluto, mesmo sob a forma do transitório, o filósofo escapa das tentações relativistas e nominalistas dos cultores da pós-modernidade, que adotam a posição do agora, porém – e esta diferença é fundamental, divisora de campos – como a ausência do absoluto. Nada disso: em Antonio Cicero, o absoluto é a transitoriedade. Operação demarcadora de campos, como se vê: conceituar a modernidade como o fundamento de um absoluto vislumbra a possibilidade de pensar uma ética da modernidade, inclusive em seus aspectos normativos. Neste aspecto, ao postular na continuidade da racionalidade (na acepção de Kant), a razão no começo dos tempos revelou-se privada, como, digamos, uma (proto)modernidade, e depois se espraiou para a vida pública o caráter trans-histórico da modernidade, Antonio Cicero assesta o alvo contra os vários relativismos e historicismos. Recordo, aqui, da polêmica de Thomas Paine (Os direitos do homem) contra Edmund Burke (Reflexões sobre a revolução na França), no alvorecer da Revolução Francesa de 1789, no manifesto Os direitos do homem, no qual o primeiro afirma, contra o segundo, que o fundamento do direito não é o costume ou a história pretérita da nação, mas o absoluto.[8] Conforme o filósofo carioca, conceitos historicistas como nação, raça, costumes – ou mesmo a idéia ancestral de Deus –, embora vigentes, não devem ser aceitos como modernos, posto que desloque a formação da subjetividade da consciência de si (Hegel) ou do aparentado cuidado de si (Foucault), do autocontrole, da autonomia, para objetos exteriores e positivos, fixados na força opressora do passado e da norma imposta.[9]
Por outro lado, em sendo o agora um absoluto, não somente nos tempos modernos esta percepção se manifestou, daí a postulação trans-histórica de Antonio Cicero: podem-se encontrar elementos de modernidade em tempos remotos. Para ele, de alguma maneira, modernidade significa processo de racionalização (Weber e Habermas, entre muitos, também pensaram a modernidade como racionalização), autorizando o sentido mais abrangente dado ao termo, posto que racionalização, em ultima instância, constitui uma característica ontopsíquica do homem. Vem daí a distinção, tornada célebre por Horkheimer e Adorno, em nota pessimista (discrepante do otimismo trágico que imputamos à démarche de Cicero), entre esclarecimento (processo geral de racionalização) e iluminismo (movimento intelectual do século XVIII).[10]
O pensamento mágico racionaliza, por dentro do mito há um núcleo duro racional, eis a dialética do esclarecimento. Nem sempre ocorre o desvelamento do “núcleo duro” do mito, fenômeno histórico ocorrido somente nas sociedades que lograram possuir o que estou chamando, neste momento, de relação de abertura diante do mito. Os gregos tiveram este tipo de relação, por isso, dali saiu a filosofia e a história, discursos que em linhas gerais tratavam da mesma temática do mito – a natureza e a épica. A diferença fundamental entre o mito, a filosofia e a história, contudo, dizia respeito ao registro do verdadeiro em contraponto ao especulativo puro e simples, ou ao simbólico expressivo, tão somente. Tome-se o exemplo de Heródoto, o chamado “pai da história”: preocupado com a verdade, descontente com a parcialidade heróica das epopéias, ele foi verificar os resíduos culturais dos adversários dos gregos nas guerras médicas (os persas) e também valorizar um adversário à altura dos gregos. Ou seja, na medida em que procurou narrar o verdadeiro, o estor encontrou-se com a possibilidade de reconhecimento do outro. Havia já certa modernidade grega.[11] Evidentemente, neste caso, discrepamos da hipótese oferecida por Nietzsche, de tanta fortuna crítica: no filósofo alemão, a relação entre mito e razão é de antagonismo, um interdito sem dialética da razão; caso tenha havido passagem, ela ocorreu como queda.[12]
Decerto, somente a atual fase histórica é realmente de modernidade, significando o tempo histórico no qual a percepção do agora se generalizou. Obviamente, se deduz que Antonio Cicero, embora lhe dando o crédito da originalidade, não é primeiro a pensar nestes termos, conquanto ele tenha a virtude de assentar no debate contemporâneo brasileiro, em tempos de maré montante conservadora (até disfarçado, em alguns casos, de esquerda) um bem-vindo racionalismo legatário das melhores tradições do iluminismo.
No desdobramento de buscar um conceito rigoroso de modernidade, estão as preocupações estéticas do nosso autor, privilegiadas no segundo livro de ensaios Finalidades sem fim. O título remete à estética kantiana, expressa no clássico das terceira das três críticas, a Crítica da faculdade do juízo.[13] Kant afirmou que o juízo estético-expressivo desliga-se, por um momento, de qualquer determinação prévia de utilidade ou moralidade, instaurando uma esfera particular de julgamento, e busca apreender subjetivamente o belo. Escreve Cicero, resumindo Kant e a motivação do título do livro: “Ora, para considerarmos bela uma flor, não sabemos nem precisamos saber que tipo de coisa ela deve ser objetivamente, de modo que não a julgamos segundo a sua relativa aproximação a qualquer fim dado: não a consideramos enquanto técnica. Embora, quando a julgamos bela, a flor nos pareça dotada da forma da finalidade, ou, em outras palavras, ela nos pareça ter sido feita de propósito, tal finalidade ou propósito nada tem a ver com qualquer fim extrínseco ao próprio juízo estético: trata-se justamente por isso de uma finalidade sem fim”.[14]
Ou seja, a capacidade da obra de arte comunicar sem basear-se em conceitos pelo fato de constituir um juízo singular. Rios de tintas já foram derramados sobre a estética kantiana, ademais ainda muito influente, por exemplo, na teoria social da ação comunicativa de Habermas, não sendo caso de enveredar em seu comentário, desde a ampliação da estética do belo para outros elementos, como a fealdade, até a crítica do acento da estética na esfera do espectador, em lugar do objeto artístico. Poucos dos problemas desentranhados a partir da estética kantiana são abordados por Cicero – ele já a descreve e a toma no exame de seus objetos de estudo, ficando a dever um ensaio específico sobre o assunto e, principalmente, a evolução de sua fortuna crítica, impasses, problemas e soluções, ao menos ao longo do século XX. O autor já demonstrou ter erudição para uma obra desse fôlego. De pronto, é curioso observar que embora tenha como uma de suas principais preocupações a relação entre filosofia e poesia, sugerindo uma demarcação de campos entre as duas formas de conhecimento (posicionamento o qual concordo plenamente), o autor passe praticamente ao largo de todo o rico debate, no interior do idealismo alemão, que se segue à Kant; especialmente, em se tratando das figuras de Schelling e Schlegel, filósofos que propuseram uma “nova mitologia” que introduzia a poesia como nova educadora da humanidade, em contraponto à filosofia.
O livro conta de múltiplos ensaios, embora mantendo a unidade conceitual. O ensaio de abertura, Paisagens urbanas, e ou outro do miolo, Poesia e filosofia, discorrem principalmente sobre as relações entre poesia e filosofia (e o novelo de questões daí desentranhadas). Talvez aí esteja o núcleo teórico do livro, somado ao ensaio sobre o crítico de arte norte-americano, bastante conhecido na área, Clement Greenberg (A época da crítica: Kant, Greenberg e o modernismo). Três poetas são dissecados em ensaios específicos: Waly Salomão (A falange de máscaras de Waly Salomão), Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto (Drummond e a modernidade). Há ainda um importante ensaio sobre o tropicalismo (O tropicalismo e a MPB) e uma nota crítica sobre o conceito (anti-moderno) de modernidade em Mário de Andrade. Por último, dois ensaios sobre a poética grega (Proteu e Epos e mythos em Homero, respectivamente).
Adianto que vou me prender doravante, na presente resenha, por questão de espaço, a resenhar os dois ensaios sobre os três poetas brasileiros (Drummond, João Cabral e Waly Salomão), ademais porque testam em ato as intenções teóricas gerais do livro. É sempre um risco escrever sobre autores consagrados como Drummond e João Cabral, de larga fortuna crítica. Contudo, Cícero sai-se muito bem. Novamente, o tema privilegiado é a modernidade. É quase um truísmo afirmar que Drummond constitui o mais moderno de nossos grandes poetas, o criador de um personagem simples do mundo (o poeta mesmo) às voltas com os dilemas contemporâneos. Curiosa, é a escolha de Cicero: um dos poemas da chamada, por certo consenso crítico, como a “segunda fase” de Drummond, considerada mais mística, introspectiva, menos participativa engajada – A máquina do mundo, 32 tercetos em decassílabos (96 versos) – o que já desborda uma diferença formal com o verso livre modernista.[15] Dá-se no poema a seguinte narrativa visionária: uma “máquina do mundo” topa diante do poeta, prometendo uma espécie de nirvana, na fruição de uma “ciência sublime e formidável, mas hermética”, a “total explicação da vida”, o “nexo primeiro e singular” das coisas. O poeta recusa. Começa a análise do poeta carioca sobre o mineiro: “O que a máquina do mundo oferecia ao poeta era o equivalente moderno do que se oferecia a Dante, na ‘Selva obscura’: ‘essa total explicação da vida’ (...) O poeta recusa esse dom e prossegue, como ele dizia no começo do poema, na escuridão do seu próprio ser desenganado. Desenganado, é claro, porque sem mais engano (...) Só os mundos pré-modernos nos podiam pretender uma ‘total explicação da vida’”.[16]
Elucida-se, com isso, a recusa de Drummond aos dons da “máquina do mundo”. Mas Cicero crítica também Drummond, condenando o tom de “resignação e luto” com o qual o poeta aceita o mundo moderno, vendo uma atitude parecida ao estoicismo de Max Weber, na passagem em que ele disse que é preciso ser “viril” para saber suportar a modernidade. Enfim, Cícero confronta Drummond contra Drumonnd flagrando outros versos mais ativos e menos resignados. De todo modo, o autor desmonta alguns equívocos de leitura do Drummond da chamada “segunda fase”: não há ali “misticismo”, pode haver descrença e somente como resíduo uma discreta nostalgia dos tempos místicos.
Imerso no corpo do ensaio sobre Drummond por meio de um rápido comentário, vale a pena dar crédito às digressões de Antonio Cicero a propósito de João Cabral de Melo Neto, entre outros motivos, porque revela elementos do pensamento do autor de Finalidades sem fim a propósito das vanguardas artísticas do século XX. Conforme ele, o trabalho das vanguardas foi o de realizar a modernidade artística, desmistificar os lugares e as formas convencionais, acadêmicas, nos quais o senso comum espera encontrar as obras de arte. Contudo o programa já se completou. Sempre houve uma contradição imanente ao trabalho das vanguardas: ela foi salutar quando abriu o leque das possibilidades formais e ruim quando as fechou, dogmatizando o programa da busca incessante do novo.
Ora, posto que o programa das vanguardas já se cumprisse, a questão de hoje já não é precisamente a da novidade, mas a da permanência. Em síntese, sobre a poética de João Cabral, especialmente o texto de testemunho teórico-analítico do poeta pernambucano, o conhecido ensaio chamado Poesia e composição,[17] escreve o autor carioca: “aplica-se às teses de Cabral o que se pode dizer das teses da vanguarda em geral: que são verdadeiras na medida em que abrem caminhos, e falsas na medida em que os fecham. Assim, ele julga inferior a ‘poesia que fale das coisas já poéticas’, pois crê que a poesia deve procurar ‘elevar o não-poético à categoria do poético’. Essas teses se tornaram dogmas entre muitos jovens poetas. Ora, já ‘ in limine’ é questionável a tentativa de tomar a temática de uma obra de arte como base para pronunciar juízos estéticos sobre ela. É, portanto, evidente que tais teses não são verdadeiras senão pela metade, isto é, que são verdadeiras na medida em significam que a poesia não precisa falar de coisas já poéticas; por outro lado, na medida em que implicam proibir a poesia de falar de coisas já poéticas, são falsas (...) E por que não poderia um poeta fazer excelente poesia ao falar de algo que muitos outros poetas já tenham falado”.[18]
Evidentemente, as baterias de Cicero não se dirigem ao poeta de o Cão sem plumas, mas a generalização novidadeira de certa dicção cabralina, a uma recepção equívoca, da parte de muitos, de questões internas da poesia e da conjuntura poética que João Cabral de Melo Neto viveu, figurando uma vanguarda sem prumo.
Por seu turno, o desafio de enfrentar a poesia de Waly Salomão, um poeta brasileiro contemporâneo recém-falecido (1943-2003), é totalmente diverso do relativo aos poetas consagrados. Trata-se de percorrer terreno quase virgem, assentar para o futuro balizas críticas. Antonio Cicero realiza, em minha opinião, uma crítica sintomal, quase genealógica, pelas margens, do texto de Salomão, visando explicitar o feixe de suas intenções cifradas (a falange de máscaras), donde que conclui pela complexidade da escritura do antigo tropicalista baiano, para mim dono de alguns dos mais belos e versos sonoros da língua portuguesa contemporânea (um exemplo, em Mel: “provo do favo do teu mel/ cavo a direta claridade do céu”).
Circula muita mitologia e pouca crítica cercando a polêmica figura de Waly Salomão. Cicero, de pronto, rebate versões estereotipadas, que também não eram do agrado do poeta criticado, do tipo “poeta marginal” e “carnavalização”. Nada disso, a poesia de Waly Salomão, era muito pensada, elaborada, resultando numa reescrita intensiva, aliás, destoando do improviso prosaísta dos ditos marginais; e quanto à “carnavalização” (Bakthin), também não se aplica, porque o falecido poeta baiano negava visar o grotesco ou o paródico, ou mesmo trazer o registro do popular para o erudito, atributos da “carnavalização”. O ensaísta carioca, em contraponto, sugere um movimento de “teatralização” na poesia de Waly Salomão. O que significa isto? O simples fato social de que somos todos, de alguma maneira, teatro. Explica o autor: “se tudo já é teatro, se até o fato é teatro, qual o sentido da teatralização? É que o ‘fato’ social é o teatro que desconhece o seu caráter social”.[19]
Antonio Cicero defende que Waly Salomão cismou com os princípios de identidade e contradição, nas figuras de uma identidade fixa, que não conduz senão ao si próprio, que não se modifica. Por seu turno, a radicalização da idéia de identidade fixa resulta, em conseqüência, na negação da contradição. Penso que, ao questionar os princípios da identidade e da contradição, Salomão talvez tenha se aproximado da dialética negativa adorniana, no sentido de que de buscar uma, digamos, não- identidade. É uma hipótese de trabalho a examinar. Porém, é claro, a busca da não-identidade, era mais simples no poeta baiano, configurando um projeto mais viável, pois se dava do terreno da linguagem poética, ao passo que Adorno visava surpreender a não-identidade por meio da própria identidade, através de um paciente trabalho por dentro da razão.
Gostaria de comentar, ainda, um dos versos mais conhecidos de Waly Salomão, analisado pelo ensaísta carioca: “a memória é uma ilha de edição” (Carta aberta a John Ashbery).[20] Conquanto a análise não cite, creio que Cicero não deve discordar que encontramo-nos diante de um poeta, neste caso, aproximado também, talvez involuntariamente (não é exigido à poesia pensar teoricamente suas intuições), da matriz benjaminiana: a memória não é um processo simplesmente unilinear e apaziguado de trazer à tona o passado, mas um complexo trabalho de seleção e montagem, aparecimento e desaparecimento.
Em suma, é muito rica a abordagem de Antonio Cicero sobre a modernidade e a estética, aqui reconstruído, a título de comentário crítico e aberto, de maneira tópica.
[1] Professor Adjunto do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História (UFPB). E-mail: jaldesm@uol.com.br. Web: http://jaldes-campodeensaio.blogspot.com.
[2] Afora o livro resenhado, pode-se aquilatar a ensaística do autor em, CICERO, Antonio. O mundo desde o fim. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995; quanto à poesia, veja-se: CICERO, Antonio. Guardar. Rio de Janeiro: Record, 1996; CICERO, Antonio. A cidade e os homens. Rio de Janeiro: Record, 2002.
[3] LUKÁCS, Georg. Introdução a uma estética marxista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 282-298.
[4] KANT, Immanuel. Textos seletos. Petrópolis: Vozes, 1974.
[5] ROUANET, Sérgio Paulo. As razões do iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 193-200.
[6] FOUCAULT, Michel. “Qu’est que les Lumières ?”. In: FOUCALT, Michel. Dits et écrits. Paris: Gallimard, 1994: p. 679-688.
[7] HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 12.
[8] PAINE, Thomas. Os direitos do homem. Petrópolis: Vozes, 1989. ; BURKE, Edmund. Reflexões sobre a revolução em França. Brasília: UnB, 1997.
[9] HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do espírito. Petrópolis: Vozes, 2002; FOUCALT, Michel. História da sexualidade – o cuidado de si (vol. 3). Rio de Janeiro: Graal, 1985.
[10] HORKHEIMER, Max e ADORNO, Theodor. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.
[11] HEDÓDOTO. História. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.
[12] NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
[13] KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998.
[14] CICERO, Finalidades..., p. 198.
[15] DRUMMOND de Andrade, Carlos. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003, p. 301-305.
[16] CICERO, Finalidades..., p. 87-89.
[17] CABRAL de Melo Neto, João. Poesia e composição. In: Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 103-116.
[18] CICERO, Finalidades..., p. 75.
[19] CICERO, Finalidades..., p. 15.
[20] SALOMÃO, Waly. Algaravias. São Paulo: Ed. 34, 1996, p. 43.
Jaldes Reis de Meneses[1]
CICERO, Antonio. Finalidades sem fim. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. 354 p.
Os espaços de debates de idéias têm escasseado na imprensa diária brasileira. De alguns anos para cá, sumiram os suplementos literários, e com eles quase desapareceu um gênero literário. A moderna crítica de cinema e literatura, o ensaio livre a meio caminho entre a nota jornalística e a tese acadêmica, por muito tempo do século passado uma tradição brasileira, praticada por intelectuais do porte de Alceu Amoroso Lima, Álvaro Lins, Agripino Grieco, Juarez da Gama Batista e Antonio Candido, entre muitos, praticamente desapareceu. Aconteceu no Brasil um movimento de passagem de uma critica cultural refinada, mas escrita legivelmente, a rápidos comentários sobre as novidades do mercado cultural, de Paulo Coelho a Gabriel Garcia Marquez. Aprendemos pouco, hoje, na imprensa cultural, reduzida a um papel de bússola e de termômetro do consumo. Foi-se embora a dimensão de formação, Paidéia. Ainda bem, em contrapartida, que começam a frutificar interessantes iniciativas editoriais no âmbito do mercado, como as revistas mensais de história, filosofia, literatura e principalmente – eis aí de fato a novidade –, na contraditória babel gerada pela internet, a disseminação dos blogs de poesias, crônicas e ensaios feitos por desconhecidos.
Fala-se muito, com acerto, em crise e decadência da imprensa, a primeira esfera realmente pública do mundo moderno. A circulação de idéias preparava as barricadas da revolução. No começo histórico da modernidade, no dizer de Hegel, o jornal era uma leitura necessária como o pão matinal, ou de Keynes, que aconselhava aos alunos somente duas leituras, a economia política de Marshall e The Times. Era o suficiente; o excedente, erudição. Por absurdo, acaso fossem vivos, certamente, Hegel e Keynes riscariam os jornais de suas predileções, e talvez recomendassem a navegação em portais da internet. Abusando da imaginação, seria difícil a Sartre, caso vigorasse em 1968 as condições de hoje, sair em praça pública distribuindo em protesto jornais maoístas ou alternativos (La Cause du Peuple e Libération), visto que as idéias alternativas migraram do papel imprenso e das rotativas para o suporte dos bits e dos chips. Enfim, a imprensa tradicional, formadora de opinião pública democrática, infelizmente e sintoma dos tempos, mais parece uma frágil cidadela sitiada por forças poderosas, a exemplo dos próprios interesses corporativos empresariais do ramo, do Estado e do grande capital. Decerto, ainda resta, sem dúvida, vida inteligente na imprensa brasileira, e são bem-vindos os espaços de qualidade nos jornais, como a coluna do filósofo e poeta Antonio Cicero no jornal de Folha de S. Paulo.
Antonio Cicero trata-se de um caso bem brasileiro de fusão da mais fina erudição e música popular, nesta terra em que sambistas pobres do morro, da estripe de Cartola, Elton Medeiros e Guilherme de Brito cuidaram com especial elegância da maltratada língua portuguesa. Qualquer letra desses grandes sambistas é superior em qualidade estética e literária às muitas toneladas de poesia prosaica brasileira contemporânea, ressalvadas as exceções de praxe, tipo o sentimento à flor da pele de Ana Cristina César. Música popular no Brasil é assunto sério. Ao contrário de outros países, aqui, desde cedo, houve contactos e influências entre o erudito e o popular – entre Sinhô e Villa-Lobos. De sorte que uma pessoa como Cicero, evidentemente mais conhecida como letrista da cantora Marina Lima, sua irmã, e de compositores como João Bosco, Lulu Santos e Adriana Calcanhoto, seja, ao mesmo tempo, filósofo, com dois importantes livros de ensaios na praça, e poeta.[2] Talvez a circunstância semelhante de um poeta, letrista de música popular e concomitantemente filósofo só possa ocorrer nos Estados Unidos, pois aqui como lá, a música popular e erudita não se fechou, abriu-se a influências e confluências. Claro que, no caso brasileiro, ocorre a outra face perversa da moeda: na tradicional ausência de um espaço público cultural consistente de trocas, as referências da cultura erudita migraram para o campo popular (os nichos acadêmicos funcionam em circuito especializado), motivo pelo qual talvez um erudito como Cicero tenha escolhido trabalhar intelectualmente fora da Universidade. Há males que vêem para bem: quem conhece as bizarrices da formação social brasileira, algumas espantosamente produtivas, sabe do que estou falando.
Há dois grandes temas coligados na obra filosófica, ainda em curso, de Antonio Cicero: o conceito de modernidade e, por extensão, a estética ou, melhor dizendo, as presumíveis configurações de uma estética da modernidade.
No tocante à modernidade, ele opera com a tentativa de formular um conceito rigoroso, trans-histórico, desbordando do meramente descritivo, o que não chega a ser precisamente um ineditismo, pois assim agindo, na verdade, ele está resgatando as melhores tradições ilustradas do iluminismo do século XVIII.
Costumo expor em sala de aula que alguns conceitos, como cidadania e modernidade se banalizaram – viraram o que chamo de “conceito-saco” (todo mundo, especialmente a ignorância acadêmica, a mais danosa de todas, coloca no “saco” o que bem entende). Alguns pensam, por exemplo, que modernidade significa o culto ao novo – esta definição caberia melhor aposto ao conceito de vanguarda. A modernidade veio a constituir um tempo histórico que incorporou, efetuando recortes e atualizações (incorporamos o espírito trágico, mas abrimos mão dos rituais sagrados de sacrifício), elementos arcaicos e do cânon clássico ocidental, sem problemas nem preconceitos, à maneira de uma grande válvula de sucção. Queremos ser modernos e helênicos e não anacronicamente helênicos. Neste sentido, em dois exemplos escolhidos ao acaso, a poética de Homero ou a teoria da graça de Santo Agostinho podem conter elementos de modernidade e, através de um saudável revisionismo histórico, serem trazidos ao terreno do contemporâneo e valorizados como criações de um espírito universal. Memória, autoconsciência do desenvolvimento da humanidade, na acepção de Lukács.[3]
A questão central, para além do basbaque culto ao novo, foi levantada por Kant em seus ensaios sobre o iluminismo[4]: a modernidade estabelece uma relação horizontal (Sérgio Paulo Rouanet chama de sagital, [5] em seta, repetindo, neste caso, o seminal Foucault da fase pouco antes de morrer) entre tempo e cultura, ao passo que em outros tempos históricos a relação era vertical, no sentido passado-presente. Conforme Foucault, o dado novo da modernidade consistiria, a partir de Kant, em não conceber mais a relação ao presente em termos de relação de valor (estamos em um período de “decadência” ou de “prosperidade”), não longitudinalmente, mas como uma relação sagital à própria atualidade. Escreve Foucault: “a filosofia como problematização de uma atualidade e como interrogação da qual faz parte e em relação à qual tem que se situar, poderia caracterizar a filosofia como discurso da modernidade e sobre a modernidade”.[6] Dessa maneira, a originalidade do espírito de tempo estaria no reconhecimento da modernidade como um agora permanente, ou seja, um ethos calcado na transitoriedade das coisas como a essência do mundo. Por isso, aliás, que o primeiro iluminismo nomeou a si mesmo, mais que um acontecimento histórico, como um evento na história do pensamento.
A propósito de uma glosa sobre a especificidade dos tempos modernos, na conceituação de Hegel, Habermas, afirma que “a modernidade não pode e não quer tomar dos modelos de outra época os seus critérios de orientação, ela tem de extrair de si mesma a sua normatividade.” [7] É verdade que encontramo-nos diante de um paradoxo – a efemeridade como o absoluto. Ser moderno seria admitir a priori a transitoriedade das coisas e o subjetivismo das interpretações, a consciência do caráter subjetivo e negativo da sociedade. Rigorosamente, a modernidade sempre é um processo em aberto, devir. Cicero parte de uma fundamentação parecida com a de Habermas visando indagar o que intitula de “concepção de mundo” da modernidade. Buscando apoio em Hegel, ele vai afirmar que os fundamentos das concepções do mundo anteriores à modernidade eram objetos exteriores e positivos, como nação, raça, Deus, internalizados no processo de socialização de fora para dentro do indivíduo. Em suma, objetos de domínio em vez de objetos de liberdade. Na visão de mundo do autor, não deve haver mais lugar, na concepção de mundo da modernidade, para “utopias positivas” – no sentido de exteriores ao indivíduo.
Ora, ao admitir o absoluto, mesmo sob a forma do transitório, o filósofo escapa das tentações relativistas e nominalistas dos cultores da pós-modernidade, que adotam a posição do agora, porém – e esta diferença é fundamental, divisora de campos – como a ausência do absoluto. Nada disso: em Antonio Cicero, o absoluto é a transitoriedade. Operação demarcadora de campos, como se vê: conceituar a modernidade como o fundamento de um absoluto vislumbra a possibilidade de pensar uma ética da modernidade, inclusive em seus aspectos normativos. Neste aspecto, ao postular na continuidade da racionalidade (na acepção de Kant), a razão no começo dos tempos revelou-se privada, como, digamos, uma (proto)modernidade, e depois se espraiou para a vida pública o caráter trans-histórico da modernidade, Antonio Cicero assesta o alvo contra os vários relativismos e historicismos. Recordo, aqui, da polêmica de Thomas Paine (Os direitos do homem) contra Edmund Burke (Reflexões sobre a revolução na França), no alvorecer da Revolução Francesa de 1789, no manifesto Os direitos do homem, no qual o primeiro afirma, contra o segundo, que o fundamento do direito não é o costume ou a história pretérita da nação, mas o absoluto.[8] Conforme o filósofo carioca, conceitos historicistas como nação, raça, costumes – ou mesmo a idéia ancestral de Deus –, embora vigentes, não devem ser aceitos como modernos, posto que desloque a formação da subjetividade da consciência de si (Hegel) ou do aparentado cuidado de si (Foucault), do autocontrole, da autonomia, para objetos exteriores e positivos, fixados na força opressora do passado e da norma imposta.[9]
Por outro lado, em sendo o agora um absoluto, não somente nos tempos modernos esta percepção se manifestou, daí a postulação trans-histórica de Antonio Cicero: podem-se encontrar elementos de modernidade em tempos remotos. Para ele, de alguma maneira, modernidade significa processo de racionalização (Weber e Habermas, entre muitos, também pensaram a modernidade como racionalização), autorizando o sentido mais abrangente dado ao termo, posto que racionalização, em ultima instância, constitui uma característica ontopsíquica do homem. Vem daí a distinção, tornada célebre por Horkheimer e Adorno, em nota pessimista (discrepante do otimismo trágico que imputamos à démarche de Cicero), entre esclarecimento (processo geral de racionalização) e iluminismo (movimento intelectual do século XVIII).[10]
O pensamento mágico racionaliza, por dentro do mito há um núcleo duro racional, eis a dialética do esclarecimento. Nem sempre ocorre o desvelamento do “núcleo duro” do mito, fenômeno histórico ocorrido somente nas sociedades que lograram possuir o que estou chamando, neste momento, de relação de abertura diante do mito. Os gregos tiveram este tipo de relação, por isso, dali saiu a filosofia e a história, discursos que em linhas gerais tratavam da mesma temática do mito – a natureza e a épica. A diferença fundamental entre o mito, a filosofia e a história, contudo, dizia respeito ao registro do verdadeiro em contraponto ao especulativo puro e simples, ou ao simbólico expressivo, tão somente. Tome-se o exemplo de Heródoto, o chamado “pai da história”: preocupado com a verdade, descontente com a parcialidade heróica das epopéias, ele foi verificar os resíduos culturais dos adversários dos gregos nas guerras médicas (os persas) e também valorizar um adversário à altura dos gregos. Ou seja, na medida em que procurou narrar o verdadeiro, o estor encontrou-se com a possibilidade de reconhecimento do outro. Havia já certa modernidade grega.[11] Evidentemente, neste caso, discrepamos da hipótese oferecida por Nietzsche, de tanta fortuna crítica: no filósofo alemão, a relação entre mito e razão é de antagonismo, um interdito sem dialética da razão; caso tenha havido passagem, ela ocorreu como queda.[12]
Decerto, somente a atual fase histórica é realmente de modernidade, significando o tempo histórico no qual a percepção do agora se generalizou. Obviamente, se deduz que Antonio Cicero, embora lhe dando o crédito da originalidade, não é primeiro a pensar nestes termos, conquanto ele tenha a virtude de assentar no debate contemporâneo brasileiro, em tempos de maré montante conservadora (até disfarçado, em alguns casos, de esquerda) um bem-vindo racionalismo legatário das melhores tradições do iluminismo.
No desdobramento de buscar um conceito rigoroso de modernidade, estão as preocupações estéticas do nosso autor, privilegiadas no segundo livro de ensaios Finalidades sem fim. O título remete à estética kantiana, expressa no clássico das terceira das três críticas, a Crítica da faculdade do juízo.[13] Kant afirmou que o juízo estético-expressivo desliga-se, por um momento, de qualquer determinação prévia de utilidade ou moralidade, instaurando uma esfera particular de julgamento, e busca apreender subjetivamente o belo. Escreve Cicero, resumindo Kant e a motivação do título do livro: “Ora, para considerarmos bela uma flor, não sabemos nem precisamos saber que tipo de coisa ela deve ser objetivamente, de modo que não a julgamos segundo a sua relativa aproximação a qualquer fim dado: não a consideramos enquanto técnica. Embora, quando a julgamos bela, a flor nos pareça dotada da forma da finalidade, ou, em outras palavras, ela nos pareça ter sido feita de propósito, tal finalidade ou propósito nada tem a ver com qualquer fim extrínseco ao próprio juízo estético: trata-se justamente por isso de uma finalidade sem fim”.[14]
Ou seja, a capacidade da obra de arte comunicar sem basear-se em conceitos pelo fato de constituir um juízo singular. Rios de tintas já foram derramados sobre a estética kantiana, ademais ainda muito influente, por exemplo, na teoria social da ação comunicativa de Habermas, não sendo caso de enveredar em seu comentário, desde a ampliação da estética do belo para outros elementos, como a fealdade, até a crítica do acento da estética na esfera do espectador, em lugar do objeto artístico. Poucos dos problemas desentranhados a partir da estética kantiana são abordados por Cicero – ele já a descreve e a toma no exame de seus objetos de estudo, ficando a dever um ensaio específico sobre o assunto e, principalmente, a evolução de sua fortuna crítica, impasses, problemas e soluções, ao menos ao longo do século XX. O autor já demonstrou ter erudição para uma obra desse fôlego. De pronto, é curioso observar que embora tenha como uma de suas principais preocupações a relação entre filosofia e poesia, sugerindo uma demarcação de campos entre as duas formas de conhecimento (posicionamento o qual concordo plenamente), o autor passe praticamente ao largo de todo o rico debate, no interior do idealismo alemão, que se segue à Kant; especialmente, em se tratando das figuras de Schelling e Schlegel, filósofos que propuseram uma “nova mitologia” que introduzia a poesia como nova educadora da humanidade, em contraponto à filosofia.
O livro conta de múltiplos ensaios, embora mantendo a unidade conceitual. O ensaio de abertura, Paisagens urbanas, e ou outro do miolo, Poesia e filosofia, discorrem principalmente sobre as relações entre poesia e filosofia (e o novelo de questões daí desentranhadas). Talvez aí esteja o núcleo teórico do livro, somado ao ensaio sobre o crítico de arte norte-americano, bastante conhecido na área, Clement Greenberg (A época da crítica: Kant, Greenberg e o modernismo). Três poetas são dissecados em ensaios específicos: Waly Salomão (A falange de máscaras de Waly Salomão), Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto (Drummond e a modernidade). Há ainda um importante ensaio sobre o tropicalismo (O tropicalismo e a MPB) e uma nota crítica sobre o conceito (anti-moderno) de modernidade em Mário de Andrade. Por último, dois ensaios sobre a poética grega (Proteu e Epos e mythos em Homero, respectivamente).
Adianto que vou me prender doravante, na presente resenha, por questão de espaço, a resenhar os dois ensaios sobre os três poetas brasileiros (Drummond, João Cabral e Waly Salomão), ademais porque testam em ato as intenções teóricas gerais do livro. É sempre um risco escrever sobre autores consagrados como Drummond e João Cabral, de larga fortuna crítica. Contudo, Cícero sai-se muito bem. Novamente, o tema privilegiado é a modernidade. É quase um truísmo afirmar que Drummond constitui o mais moderno de nossos grandes poetas, o criador de um personagem simples do mundo (o poeta mesmo) às voltas com os dilemas contemporâneos. Curiosa, é a escolha de Cicero: um dos poemas da chamada, por certo consenso crítico, como a “segunda fase” de Drummond, considerada mais mística, introspectiva, menos participativa engajada – A máquina do mundo, 32 tercetos em decassílabos (96 versos) – o que já desborda uma diferença formal com o verso livre modernista.[15] Dá-se no poema a seguinte narrativa visionária: uma “máquina do mundo” topa diante do poeta, prometendo uma espécie de nirvana, na fruição de uma “ciência sublime e formidável, mas hermética”, a “total explicação da vida”, o “nexo primeiro e singular” das coisas. O poeta recusa. Começa a análise do poeta carioca sobre o mineiro: “O que a máquina do mundo oferecia ao poeta era o equivalente moderno do que se oferecia a Dante, na ‘Selva obscura’: ‘essa total explicação da vida’ (...) O poeta recusa esse dom e prossegue, como ele dizia no começo do poema, na escuridão do seu próprio ser desenganado. Desenganado, é claro, porque sem mais engano (...) Só os mundos pré-modernos nos podiam pretender uma ‘total explicação da vida’”.[16]
Elucida-se, com isso, a recusa de Drummond aos dons da “máquina do mundo”. Mas Cicero crítica também Drummond, condenando o tom de “resignação e luto” com o qual o poeta aceita o mundo moderno, vendo uma atitude parecida ao estoicismo de Max Weber, na passagem em que ele disse que é preciso ser “viril” para saber suportar a modernidade. Enfim, Cícero confronta Drummond contra Drumonnd flagrando outros versos mais ativos e menos resignados. De todo modo, o autor desmonta alguns equívocos de leitura do Drummond da chamada “segunda fase”: não há ali “misticismo”, pode haver descrença e somente como resíduo uma discreta nostalgia dos tempos místicos.
Imerso no corpo do ensaio sobre Drummond por meio de um rápido comentário, vale a pena dar crédito às digressões de Antonio Cicero a propósito de João Cabral de Melo Neto, entre outros motivos, porque revela elementos do pensamento do autor de Finalidades sem fim a propósito das vanguardas artísticas do século XX. Conforme ele, o trabalho das vanguardas foi o de realizar a modernidade artística, desmistificar os lugares e as formas convencionais, acadêmicas, nos quais o senso comum espera encontrar as obras de arte. Contudo o programa já se completou. Sempre houve uma contradição imanente ao trabalho das vanguardas: ela foi salutar quando abriu o leque das possibilidades formais e ruim quando as fechou, dogmatizando o programa da busca incessante do novo.
Ora, posto que o programa das vanguardas já se cumprisse, a questão de hoje já não é precisamente a da novidade, mas a da permanência. Em síntese, sobre a poética de João Cabral, especialmente o texto de testemunho teórico-analítico do poeta pernambucano, o conhecido ensaio chamado Poesia e composição,[17] escreve o autor carioca: “aplica-se às teses de Cabral o que se pode dizer das teses da vanguarda em geral: que são verdadeiras na medida em que abrem caminhos, e falsas na medida em que os fecham. Assim, ele julga inferior a ‘poesia que fale das coisas já poéticas’, pois crê que a poesia deve procurar ‘elevar o não-poético à categoria do poético’. Essas teses se tornaram dogmas entre muitos jovens poetas. Ora, já ‘ in limine’ é questionável a tentativa de tomar a temática de uma obra de arte como base para pronunciar juízos estéticos sobre ela. É, portanto, evidente que tais teses não são verdadeiras senão pela metade, isto é, que são verdadeiras na medida em significam que a poesia não precisa falar de coisas já poéticas; por outro lado, na medida em que implicam proibir a poesia de falar de coisas já poéticas, são falsas (...) E por que não poderia um poeta fazer excelente poesia ao falar de algo que muitos outros poetas já tenham falado”.[18]
Evidentemente, as baterias de Cicero não se dirigem ao poeta de o Cão sem plumas, mas a generalização novidadeira de certa dicção cabralina, a uma recepção equívoca, da parte de muitos, de questões internas da poesia e da conjuntura poética que João Cabral de Melo Neto viveu, figurando uma vanguarda sem prumo.
Por seu turno, o desafio de enfrentar a poesia de Waly Salomão, um poeta brasileiro contemporâneo recém-falecido (1943-2003), é totalmente diverso do relativo aos poetas consagrados. Trata-se de percorrer terreno quase virgem, assentar para o futuro balizas críticas. Antonio Cicero realiza, em minha opinião, uma crítica sintomal, quase genealógica, pelas margens, do texto de Salomão, visando explicitar o feixe de suas intenções cifradas (a falange de máscaras), donde que conclui pela complexidade da escritura do antigo tropicalista baiano, para mim dono de alguns dos mais belos e versos sonoros da língua portuguesa contemporânea (um exemplo, em Mel: “provo do favo do teu mel/ cavo a direta claridade do céu”).
Circula muita mitologia e pouca crítica cercando a polêmica figura de Waly Salomão. Cicero, de pronto, rebate versões estereotipadas, que também não eram do agrado do poeta criticado, do tipo “poeta marginal” e “carnavalização”. Nada disso, a poesia de Waly Salomão, era muito pensada, elaborada, resultando numa reescrita intensiva, aliás, destoando do improviso prosaísta dos ditos marginais; e quanto à “carnavalização” (Bakthin), também não se aplica, porque o falecido poeta baiano negava visar o grotesco ou o paródico, ou mesmo trazer o registro do popular para o erudito, atributos da “carnavalização”. O ensaísta carioca, em contraponto, sugere um movimento de “teatralização” na poesia de Waly Salomão. O que significa isto? O simples fato social de que somos todos, de alguma maneira, teatro. Explica o autor: “se tudo já é teatro, se até o fato é teatro, qual o sentido da teatralização? É que o ‘fato’ social é o teatro que desconhece o seu caráter social”.[19]
Antonio Cicero defende que Waly Salomão cismou com os princípios de identidade e contradição, nas figuras de uma identidade fixa, que não conduz senão ao si próprio, que não se modifica. Por seu turno, a radicalização da idéia de identidade fixa resulta, em conseqüência, na negação da contradição. Penso que, ao questionar os princípios da identidade e da contradição, Salomão talvez tenha se aproximado da dialética negativa adorniana, no sentido de que de buscar uma, digamos, não- identidade. É uma hipótese de trabalho a examinar. Porém, é claro, a busca da não-identidade, era mais simples no poeta baiano, configurando um projeto mais viável, pois se dava do terreno da linguagem poética, ao passo que Adorno visava surpreender a não-identidade por meio da própria identidade, através de um paciente trabalho por dentro da razão.
Gostaria de comentar, ainda, um dos versos mais conhecidos de Waly Salomão, analisado pelo ensaísta carioca: “a memória é uma ilha de edição” (Carta aberta a John Ashbery).[20] Conquanto a análise não cite, creio que Cicero não deve discordar que encontramo-nos diante de um poeta, neste caso, aproximado também, talvez involuntariamente (não é exigido à poesia pensar teoricamente suas intuições), da matriz benjaminiana: a memória não é um processo simplesmente unilinear e apaziguado de trazer à tona o passado, mas um complexo trabalho de seleção e montagem, aparecimento e desaparecimento.
Em suma, é muito rica a abordagem de Antonio Cicero sobre a modernidade e a estética, aqui reconstruído, a título de comentário crítico e aberto, de maneira tópica.
[1] Professor Adjunto do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História (UFPB). E-mail: jaldesm@uol.com.br. Web: http://jaldes-campodeensaio.blogspot.com.
[2] Afora o livro resenhado, pode-se aquilatar a ensaística do autor em, CICERO, Antonio. O mundo desde o fim. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995; quanto à poesia, veja-se: CICERO, Antonio. Guardar. Rio de Janeiro: Record, 1996; CICERO, Antonio. A cidade e os homens. Rio de Janeiro: Record, 2002.
[3] LUKÁCS, Georg. Introdução a uma estética marxista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 282-298.
[4] KANT, Immanuel. Textos seletos. Petrópolis: Vozes, 1974.
[5] ROUANET, Sérgio Paulo. As razões do iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 193-200.
[6] FOUCAULT, Michel. “Qu’est que les Lumières ?”. In: FOUCALT, Michel. Dits et écrits. Paris: Gallimard, 1994: p. 679-688.
[7] HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 12.
[8] PAINE, Thomas. Os direitos do homem. Petrópolis: Vozes, 1989. ; BURKE, Edmund. Reflexões sobre a revolução em França. Brasília: UnB, 1997.
[9] HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do espírito. Petrópolis: Vozes, 2002; FOUCALT, Michel. História da sexualidade – o cuidado de si (vol. 3). Rio de Janeiro: Graal, 1985.
[10] HORKHEIMER, Max e ADORNO, Theodor. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.
[11] HEDÓDOTO. História. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.
[12] NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
[13] KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998.
[14] CICERO, Finalidades..., p. 198.
[15] DRUMMOND de Andrade, Carlos. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003, p. 301-305.
[16] CICERO, Finalidades..., p. 87-89.
[17] CABRAL de Melo Neto, João. Poesia e composição. In: Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 103-116.
[18] CICERO, Finalidades..., p. 75.
[19] CICERO, Finalidades..., p. 15.
[20] SALOMÃO, Waly. Algaravias. São Paulo: Ed. 34, 1996, p. 43.
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