Boaventura de Sousa Santos

Fizemos, eu e Cida, a entrevista seguinte com o sociólogo Boaventura de Sousa Santos, há precisamente um ano. Em seguida, a entrevista foi publicada na revista acadêmica “Serviço Social e Sociedade” (São Paulo: Cortez, 89, março/2007, p. 177-189). A entrevista não requer preâmbulos longos, tanto porque Boaventura talvez seja, depois de José Saramago, o intelectual português mais conhecido no Brasil como já a acompanha uma apresentação. Embora sucinta, a entrevista é bastante rica, creio. No momento, chamo a atenção do leitor para o conceito de “fascismo social” esposado na entrevista, quando há um debate em torno do sucesso do filme “Tropa de Elite” (um sucesso estranho, clandestino, com base na reprodução de milhões de cópias piratas, cada uma delas, índice do aumento exponencial da ilegalidade no Brasil), louvando as ações de violência de um batalhão especial da polícia do Rio de Janeiro. Na deterioração de um Estado Democrático de Direito, a cruel realidade de um Estado pré-hobbesiano. Voltarei ao assunto.

SOTAQUE LUSITANO, CIDADÃO DO MUNDO

Entrevista concedida aos professores Jaldes Reis de Meneses
e Maria Aparecida Ramos de Meneses*


RESUMO: Entrevista com o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, na qual ele discorre sobre temas políticos de seu pensamento, tais como a noção de fascismo social, as regulações do Estado de Bem-Estar social na Europa ocidental, o pensamento crítico, um “novo senso comum”, e as relações raciais no Brasil.
Palavras-chave: fascismo social, regulação social, pensamento crítico, relações raciais.


Sotaque lusitano, cidadão do mundo. Talvez seja esta a melhor maneira de definir o pensamento de Boaventura de Sousa Santos, um intelectual que faz jus à melhor tradição histórica portuguesa: o espírito aventureiro de despegar da Europa por algum tempo e ganhar as ondas incertas do mar oceano. As melhores metáforas de Portugal têm a haver com o mar e a viagem, desde a épica lírica de Os Lusíadas de Luiz de Camões até a ode anti-épica premonitória e inspirada de Mensagem de Fernando Pessoa, este moderno poema de fuga visando dissipar o fogo-fátuo da melancolia sem fim e o espesso nevoeiro em que se transformou a desencantada realidade lusitana em tempos de Salazar. Idos tempos de tristeza, rompidos sem dúvida pela Revolução dos Cravos, significativa clivagem na história portuguesa contemporânea: desde daí Portugal abandonou o projeto de ser um país colonialista de segunda categoria, visto da Europa do pós-guerra como um lugar estranho, destoante do resto do continente, se quiserem uma comparação, com uma imagem semelhante a do “doente” Império Otomano no século XIX. A notação do senso comum europeu talvez fosse preconceituosa, mas reproduzia com certa fidelidade descontada o paradeiro da glória nacional portuguesa sob a ditadura. Coisas do passado, conquanto reminiscências sejam imorredouras, algumas delas na expressão de grupos de opinião e frações de partidos políticos de vocação conservadora, atuantes no cenário político português. Porém, a história recente renovou Portugal. Resultante do novo bloco histórico da Revolução dos Cravos, a “Ibéria” passou a participar da União Européia sem se desligar da vocação atlântica – uma bela síntese possível –, embora este seja hoje um dos pontos de conflito nos debates atuais sobre a identidade portuguesa. Ocioso debate, pois se pode ser concomitantemente europeu e atlântico, por que não?
Intelectual de um novo Portugal, sobrevivente da ditadura colonialista de Salazar e construtor de um novo país, imergimos a empreitada teórica de Boaventura de Sousa Santos – Professor Catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Diretor do Centro de Estudos Sociais (CES) daquela Universidade, com doutorado em Sociologia do Direito em Yale (EUA), e Professor Visitante na London School of Economics, Wisconsin, USP, PUC-RJ, entre outras –, na continuidade da aventura marítima e transcontinental portuguesa; neste caso, agora, a viagem não ocorre nas sendas do verso (Camões e Pessoa), mas, na do direito, da economia, da sociologia e da política. Enganam-se os que pensam que o drama português é provinciano ou regional. Caso estejamos mesmo em uma época de transição pós-moderna, uma démarche pós-moderna crítica, e não simplesmente celebratória, deve cuidar de tratar com afinco uma angulação possível – e fundamental – no estudo da modernidade e sua transição atual: o drama português, e o nosso, brasileiro, são universais – o drama da modernidade capitalista e colonial. Todavia, avesso a qualquer etnocentrismo do passado, a angulação de Boaventura respeita as demais culturas, pregando um aprendizado mutuo no qual só ganhamos em civilidade. Eis um resumo possível do projeto de vida de Boaventura de Sousa Santos.
Nos anos recentes, o professor Boaventura organizou um mastodôntico projeto de pesquisa envolvendo intelectuais de seis países em quatro continentes, Portugal (Europa), América Latina (Colômbia e Brasil, país no qual o projeto foi coordenado por Maria Célia Paoli e contou com as colaborações de Francisco de Oliveira, Laymert Garcia dos Santos, etc.), Ásia (Índia) e África (Moçambique e África do Sul) – As vozes do mundo –, com dois objetivos ambiciosos: fazer uma cartografia dos novos movimentos sociais situados fora do contexto do centro econômico e cultural capitalista e formular elementos de uma nova teoria social, a partir da rica experiência da periferia. Formalmente, o projeto foi concluído em 2001, mas, no fundo, ele foi somente um momento privilegiado de uma reflexão que já vinha de antes e continua depois.
Nas regiões da Europa peninsular, América Latina e África, em meio à dominação e exploração, está a ocorrer um sem-número de experiências moleculares inéditas em ações de democracia participativa, gestão ecológica da biodiversidade, assentamentos de reforma agrária, produção de conhecimento novo e sistematização de sabedorias de culturas situadas à margem da racionalidade ocidentalizante. Atento, o projeto de Boaventura de Sousa Santos pretende narrar tais experiências, não somente constatar (o que já seria muito), mas também examiná-las criticamente. Novo e velho são fundidos em uma reflexão aberta, porém visando à emancipação humana, para recordar esta expressão tão cara tanto ao Boaventura de hoje quanto ao jovem Marx nos idos de 1843. Projeto ambicioso, necessariamente coletivo, que já resultou em vários livros, a exemplo do recente A gramática do tempo: para uma nova cultura política (Cortez, 2006). Entrevistamos o professor Boaventura de Sousa Santos numa de suas viagens, durante o lançamento deste livro, na Faculdade de Direito da UFPB, quando da realização do Seminário Internacional de Direitos Humanos pelo Programa de Pós-Graduação em Direito (UFPB), em 04/09/2006. Solícito e instigante, a fala do professor faz pensar, algo raro de encontrar no meio acadêmico. (Jaldes Reis de Meneses e Maria Aparecida Ramos de Meneses).

Pergunta: Prezado professor Boaventura de Sousa Santos, vamos à primeira pergunta, que pode ser uma boa embocadura para analisar o seu pensamento político: No âmbito de uma criativa arquitetura teórica, o senhor tem alertado que estamos começando a ver engendrado, contemporaneamente, a um novo regime de fascismo social, bem diferente do antigo fascismo político “clássico” (Mussolini) ou regimes católicos autoritários conservadores (Franco, Espanha; Salazar, Portugal). Explique-nos.

Resposta: É uma excelente pergunta e agradeço que me tenha feito. Ela, fundamentalmente, significa o seguinte: a democracia, no seu melhor momento, a democracia social democrática européia foi uma democracia que procurou fazer a distribuição social através do grande papel que os sindicatos desenvolveram no sentido de conquistarem os direitos sociais dos trabalhadores. À medida que os direitos sociais dos trabalhadores foram conquistados, como se sabe, esse dinheiro foi tirado de algum lugar. Foi tirado dos impostos. Impostos dos empresários e dos grandes proprietários que, àquela altura, achavam que os impostos eram confisco. Eles não concordavam em serem tributados. A verdade é que com essa tributação se conseguiu fazer uma redistribuição social e as relações entre os cidadãos ficaram mais equilibradas no sentido de que uma família que não tenha dinheiro para educação não fica analfabeta. Seus filhos não ficam analfabetos. Tem uma escola pública que é gratuita, ou que é muito barata, para onde seus filhos podem ir. E isto, a meu entender, foi o que permitiu o mínimo de coesão social. O que está a suceder, neste momento, é que este lado redistributivo da democracia está a diminuir. Ou seja, está a se privatizar a saúde, está a se privatizar a educação, estão a se privatizar as políticas de previdência e, portanto, os aspectos redistributivos da democracia perdem, neste caso concreto. Quando a redistribuição, que foi o cerne da política e do conflito contemporâneo até a pouco, como é que ficam as relações entre os cidadãos? As relações entre os cidadãos ficam entre os que têm mais poder e os que têm menos poder direto.
Veja, por exemplo: se há o trabalhador e se há o empresário, das duas, uma: ou se tem um código trabalhista que regula a relação do mais fraco com o mais forte e dá direitos ao mais fraco, para compensar, ou não se tem. Tivemos no século XX um longo processo de constitucionalização do trabalho, a criação de uma justiça trabalhista e a legitimação dos sindicatos que protegem o trabalho. Suponhamos que nada disso exista. E o projeto atual é que nada disso exista. Que desapareça o direito trabalhista e que desapareça a justiça trabalhista. Nesta altura, se tem o mais fraco e o mais forte – um perante o outro. Ora bem, se o mais forte oferece “cinco” quando deveria oferecer “dez”, mas o mais fraco se não aceitar os “cinco”, morre de fome junto com a sua família, e assim ele aceita os “cinco”. E, portanto, a relação entre eles não é uma relação democrática porque não é uma relação entre iguais. É uma relação em que o mais forte tem o poder de veto sobre a vida do mais fraco. Ele tem direito de decidir se aquela pessoa vai comer amanhã ou não vai comer amanhã. É esse poder de veto, que significa relações de poder muito desiguais, assimétricas, na sociedade que eu chamo de fascismo social. Por que fascismo social? Porque tem as mesmas características do autoritarismo – do mais forte sobre o mais fraco. Só que não é político no sentido corrente do termo. Não é feito pelo Estado. O estado tem uma dimensão bem prática. Todos têm diferentes partidos. O empresário tem um partido e o trabalhador tem outro. Mas, sem a mediação estatal, a relação entre eles é uma relação de poder puro e duro. Ora, é exatamente essa a minha idéia de fascismo social. E eu costumo dizer que realmente caminhamos para sociedades que são politicamente democráticas e socialmente fascistas.

Pergunta: As regulações do antigo Estado de Bem-Estar social estão todas se exaurindo, tendemos a concordar com esta afirmação. Curiosamente, porém, nos anos 60 e 70, talvez as críticas mais duras a essas regulações vieram de uma nova esquerda teórica (Adorno, Marcuse, Foucault, Deleuze, etc.), que denunciaram, de diferentes modos, processos de controle social e o desaparecimento dos sujeitos coletivos da modernidade, em notação pessimista, precisamente nos Estados de Bem-Estar Social. Como situar: e aproveitar a contribuição teórica desses autores quando se visa a estabelecer novas formas de regulação social, como no caso de seu trabalho intelectual?

Resposta: É outra excelente pergunta e que aponta para outra coisa que eu venho a trabalhar intensamente que é o fato de nós precisarmos daquilo que eu chamo de uma ‘’epistemologia do Sul’’, onde estão os conhecimentos a partir da realidade do Sul. Essa teoria crítica, essa política de esquerda de que você falou, foi toda ela construída na Europa, em países ricos, que tinham um Estado de Bem-Estar e que estavam habituados a ter um nível de conforto que a esmagadora maioria da população do mundo nunca teve e nunca terá. E, portanto, é quase um privilégio que essas populações puderam dar-se ao luxo, nestas teorias, de criticar o que em Portugal chamamos de ‘’Estado Providência’’, embora fundamentalmente, por uma razão que, em parte, era uma razão justa. Ou seja, o Estado de Bem-Estar é uma forma de continuar o capitalismo de forma a que os trabalhadores não se revoltem. Portanto, como teorizava Adorno e muitas das teorias críticas, de alguma maneira, queriam o socialismo, e o Estado de Bem-Estar era um obstáculo. Acontece que também era a garantia, a segurança, a qualidade de vida e sustentabilidade da vida é muita gente, muitos trabalhadores. Acontece que este Estado tinha políticas ativas de controle como, por exemplo, Foucault analisou muito bem. Acontece que é preferível esse controle a termos pessoas a morrer na rua, cheias de fome, a morrerem de doenças curáveis, como no caso das desigualdades brutais hoje no mundo. Bem, em suma, eu acho que mesmo que o Estado Providência tenha um elemento repressivo – e tem –, eu prefiro o Estado Providência, o Estado de Bem-Estar a esse que vigora hoje. A este que “deixa seguir”, realmente não controla tanto, mas permite que prolifere o fascismo social. Portanto, o que os nossos colegas europeus esqueceram é que ao criticar este Estado, sem oferecer uma alternativa, iríamos cair no fascismo social.

Pergunta: No primeiro artigo de seu livro “Pela mão de Alice” – Cinco desafios à imaginação sociológica –, antes de passar em revista as surpresas do mundo de hoje, o senhor adverte que “devemos exercitar a perplexidade sem sofrer”. Há no senhor, apesar de tudo, aliás, destoante de outros autores que analisam as mesmas questões (a exemplo dos intelectuais mencionados na pergunta anterior), certo otimismo, uma atitude de contribuir na configuração de uma nova ética, uma nova política, um outro mundo. Fale-nos um pouco sobre isso.

Resposta: No meu trabalho, eu tenho caracterizado a minha posição como de “otimismo trágico”. Com isso eu quero dizer que estou consciente das dificuldades. Há hoje, é verdade, todo um pensamento massificatório, avesso ao pensamento crítico e à construção de um mundo melhor. Por outro lado, é evidente que houve um período em que houve uma alternativa mais definida, socialista – boa ou má, não vamos discutir agora –, mas que estava no terreno como uma alternativa a esta sociedade que ai está. Essa alternativa, neste momento, não está na agenda política e isso tem conseqüências muito importantes no sentido de fazer com que as pessoas se adaptem àquilo que têm. Portanto, eu reconheço as dificuldades e recuso-me a negar a possibilidade de uma saída. Um outro mundo é possível. A minha crítica em relação a muitos dos autores que você acabou de referir – e eu acho que eles foram muito populares na América Latina e isso não foi uma coisa boa, em muitos aspectos – é que eles se fecharam muito na crítica da sociedade capitalista, mas nos ofereceu muito pouco como resistência contra ela. Como eu costumo dizer, no caso de Foucault, se tudo é sempre um esquema de disciplina, de disciplinar o sujeito, a própria resistência é um ato de disciplina. Portanto, eu não posso sequer resistir porque a minha resistência é uma formulação de poder. É isto que me leva a crer, dizer, e tenho dito, que é por estas e por outras que o Fórum Social Mundial de 2001 ocorreu aqui no Brasil, não por causa das teorias de esquerda, mas apesar das teorias das esquerdas.
Se fossemos confiar nos teóricos do pensamento crítico, nunca aceitariam o Fórum Social Mundial. Nunca aceitariam. Não estava nos livros. Então, eu penso que a minha posição é um pouco por aí.

Pergunta: O senhor tem insistido que vivemos um tempo de transição pós-moderna, o que do ponto de vista do conhecimento, conduz à emersão de uma nova sensibilidade, um novo “senso comum”, uma nova ética, um novo direito, uma nova ciência. Uma coincidência interessante: Gramsci, nos Cadernos do cárcere, principalmente naqueles dedicados à análise da obra de Croce (cadernos 10 e 11), escreve precisamente a mesma coisa, só que em uma circunstância totalmente diferente, no começo dos anos 30, prisioneiro do regime fascista. Porém, o novo “sendo comum” deveria vir do que o comunista italiano intitulava de filosofia da práxis (o marxismo). Tendo em conta as complicadas vicissitudes do marxismo no século XX, qual a relação possível de estabelecer entre as suas formulações e as formulações que estão nos Cadernos de Gramsci?

Resposta: Há, sem dúvida, afinidades. A grande diferença é que Gramsci está fundamentalmente convencido de que este senso comum é um senso comum que vai emergir das práticas da classe operária e eu penso que nós hoje temos uma subjetividade bastante mais ampla. De maneira nenhuma, não descartando a importância da classe operária. Mas ela hoje é muito fragmentada, e assistimos, nos últimos 50 anos, à emergência de muitos movimentos sociais, de movimentos de mulheres, de movimentos ambientalistas, de movimentos indígenas, de movimentos de direitos humanos. Passamos a conhecer muitas formas de discriminação – discriminação racial, de discriminação sexual, que não entravam nestas teorias, ou entravam lateralmente. Portanto, se Gramsci estivesse aqui hoje, ou Marx, certamente que eles dariam conta dessas coisas. Naquela altura, não eram muito visíveis. Também, a idéia de criar uma nova hegemonia através de um novo senso comum não é ancorada numa idéia de práxis, digamos assim, da própria classe operária – a formulação de Gramsci -, mas numa práxis muito mais ampla onde se envolve, naturalmente, a classe operária como todos os demais oprimidos. Nós hoje temos uma visão mais ampla dos sistemas de opressão e de poder na sociedade. Parece-me ser esta a diferença.

Pergunta: O senhor tem afirmado, recentemente, que o Brasil parece, enfim, começar a viver uma fase pós-colonial, aludido à possibilidade de emersão de um novo padrão nas relações raciais praticadas em nossa sociedade. Com ênfase na economia, na encruzilhada dos anos 60, 70 do século passado, Fernando Henrique Cardoso e alguns outros postularam, a partir da análise do que se chamava situação de dependência à superação do colonialismo, porém, acompanhado de uma situação de desenvolvimento associado. Havia, é claro, uma estratégia política implícita nas formulações de FHC: aceitamos as vicissitudes do desenvolvimento associado, porém, ao talante de erguer o regime político democrático no Brasil. Bem ao molde dos anos 70, o centro do debate era econômico, diferente de seu escopo mais largo; porém, falava-se em saída do colonialismo. Há pontos de contacto entre uma coisa e outra?

Resposta: Bom, eu acho que a pergunta tem toda a razão de ser, mas talvez seja bom nós distinguirmos as questões. A teoria da dependência não foi uma teoria que procurasse resolver aquele problema que eu identifico neste livro que é lançado hoje – A gramática do tempo: para uma nova cultura política “–, e que recentemente também é referido num artigo que escrevi na Folha de S. Paulo (As dores do pós-colonialismo, 21/08/2006), que é a entrada numa fase pós-colonial”. Rigorosamente, a teoria da dependência é, fundamentalmente, uma teoria que visa analisar de uma forma nova o caráter global do capitalismo e o lugar dos países em desenvolvimento intermédio – como é o caso do Brasil – nesse capitalismo global e as possibilidades, as “brechas”, que existiriam nesse tipo de desenvolvimento que seria um desenvolvimento dependente-associado, que iria trazer consigo uma fortíssima industrialização e o Brasil não ficaria preso à exportação dos países primários. Bem, esse é um modelo que surge numa altura, numa conjuntura depois da Segunda Guerra Mundial, nos anos 60, que é uma fase distinta entre aquela que nos encontramos hoje – de capitalismo neoliberal, no qual as especificidades dos países tendem a ser recusadas e, portanto, são associadas, de uma maneira global, e não com as especificidades que a teoria da dependência, de algum modo, proclamava. Esta teoria, portanto, diz respeito, fundamentalmente, às vicissitudes do capitalismo num país como o Brasil. O meu trabalho diz respeito, não ao lado capitalista, mas ao lado colonialista. Fundamentalmente, a idéia de que o país, depois da independência, ao contrário do que se crê, não eliminou totalmente o colonialismo. Eliminou, naturalmente, a remissão política colonial que tinha com Portugal, contudo, do modo como a independência foi concedida – ela foi concedida aos descendentes dos colonos portugueses e de outros países que aqui estavam e não aos povos originários –, permitiu-se que, apesar da independência, continuasse a existir no Brasil muitos fenômenos próprios do colonialismo. É evidente que houve toda uma escola neste país que analisou o que se chamou de “colonialismo interno” – Rui Mauro Marini, Theotônio dos Santos, etc. Vários autores analisaram como é que as relações de poder no Brasil tinham, por vezes, aspectos de colonialismo regional, por exemplo, as articulações do Norte, do Nordeste, etc., com o centro-sul. Mas nenhum deles remeteu precisamente àquela questão que eu estou a tentar referir que é a seguinte: como o colonialismo permaneceu como relação social. O Brasil é uma sociedade racista. Mas não quis admitir isso nunca, porque o racismo do colonialismo português é muito diferente do colonialismo britânico. O colonialismo britânico assentou o racismo às leis – lei de Apartheid, as leis de segregação racial, como acontecia nos Estados Unidos. O colonialismo português é menos formal. Não estabeleceu essas leis discriminatórias, mas a discriminação está na rua, está na casa, está nos elevadores, está nos restaurantes, está nas formas de sociabilidade, que fez com que nós possamos ter hoje, naturalmente, um problema social, que é a desigualdade social no Brasil que é bastante elevada. Mas não me parece correto que se reduza a desigualdade racial à desigualdade social. Ou seja, a idéia de matriz liberal de que os negros são pobres e acabou-se. São mais pobres e só esse é o problema da pobreza. Não. Nós temos, no Brasil, dados que nos mostram, claramente, que 95% dos negros são pobres e a percentagem, no que diz respeito aos brancos é muito inferior. Sendo assim, eu penso que há um problema de raças no Brasil, que o Brasil estaria melhor se pudesse reconhecê-lo.

Pergunta: A propósito, qual a opinião do senhor sobre as políticas de ação afirmativa em geral e de “cotas” raciais nas universidades públicas brasileiras?

Resposta: Eu apóio a política do governo neste momento no que diz respeito às cotas e até mesmo por pensar que não há nada de mal em reconhecer o racismo se for para eliminá-lo. Se for para eliminar, que fique bem claro. É evidente que há toda uma ideologia, atrás de nós, de que o Brasil é não-racial; Gilberto Freyre, por exemplo, foi uma personalidade muito influente no sentido de definir as formas de miscigenação que existem. Quer dizer, não vamos recusar que houve mistura, que houve miscigenação, mestiçagem. É evidente que tudo isso é verdade. Porém, quando a gente vai a uma escola de oficiais do Exército e olha para uma sala de 300 jovens, nesta escola de formação de futuros generais, e apenas há um negro em 300 pessoas, é evidente que há um problema que não é exclusivamente social. E se formos olhar para os soldados, digamos assim, aí vemos muito mais negros proporcionalmente do que propriamente oficiais generais. Eu tenho uma aluna da Bahia que está fazendo doutoramento comigo em Coimbra e que é negra. Foi babá durante muitos anos. Trabalhava na cozinha de uma família da Bahia de Salvador e dizia-nos ela: “Nunca tive dificuldades de emprego. Sempre havia emprego para mim. Entretanto, eu fui para a escola. Depois da escola, fui para a universidade. Cursei a universidade. Fiz o meu curso universitário e agora quero fazer meu doutoramento. Desde que eu me formei em Direito na Bahia não encontrei emprego”. Não tem problema de emprego como babá. Mas tem problema de emprego como jurista. Portanto, aí está a discriminação, que eu penso que está no terreno e, portanto, a minha análise que faço, sobretudo, neste livro, da questão do pós-colonial é, fundamentalmente, para dar a conhecer que nós vivemos ainda em sociedades coloniais e que é bom que se reconheça para que se elimine. Claro que depois há os detalhes de como isso pode ser feito de muitas maneiras. As cotas... Nunca ninguém pensou que as cotas são umas panacéias para resolver todos os problemas. É uma questão conjuntural como houve, também, nos Estados Unidos, como houve na África do Sul, como há em outras sociedades para tentar resolver alguns problemas conjunturais de desigualdade estrutural.


* Jaldes Reis de Meneses é Doutor em Teoria Política (UFRJ) e Professor dos Programas de Pós-Graduação em História e Serviço Social da UFPB. E-mail: jaldesm@uol.com.br
Maria Aparecida Ramos de Meneses é Doutora em Serviço Social (UFRJ) Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UFPB. E-mail: maparame@uol.com.br


Comentários

veronica nolasco disse…
Adorei a entrevista com Boaventura de Sousa Santos, estou fazendo um trabalho na faculdade sobre o caitulo 7 do livro pela mão de Alice e estou curtindo bastante.

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