Cê "Ao Vivo"
Recebi pelo correio "Cê ao vivo", de Caetano Veloso. Todas as canções são conhecidas, repetindo a tática mercantil de Caetano em lançar um disco ao vivo no ano subseqüente à aparição do que deu base ao show. Alguns "ao vivo" ficaram melhores do que os de gravação em estúdio. Caso de típico de "Noites do Norte, ao vivo", para mim um dos melhores momentos de Caetano, e também um CD quase didático, pois resume as idéias estéticas, bastante ricas e inovadoras (ainda escrevo, em breve, um artigo sobre este belo disco) do compositor baiano sobre o que chama, ele, de "evolução da música brasileira" - uma idéia produtiva, interessante, porém sujeita a ventos e tempestades.
Cê (o gravado em estúdio, e não este, ao vivo) é um dos meus discos favoritos de Caetano, compositor pelo qual nutro uma afeição pessoal e emotiva muito grande (detesto tietagem e procuro preservar o espírito crítico, sempre que possível), mas fui descobrindo a afeição aos poucos. Explico: quando Cida teve minhas duas filhas, Analine e Lígia, vinha sempre em minha cabeça, embalando as meninas, as canções de Cateano funcionando como canções de ninar: "Irene", "Marinheiro Só", "Lua de São Jorge", "Tempo de Estio", "Chuva, Suor e Cerveja", etc. Evidentemente, sequer são canções de ninar, mas me ninavam junto com o sono das meninas. Percebi, desde então, que tinha uma relação muito íntima com essa obra musical, fundamental, da música popular brasileira, em todos os tempos. O que estava subreptício aflorou à consciência.
Êpa, falei em consciência e inconsciente? Então vou escrever mais algumas linhas do que pretendo desvolver sobre o tropicalismo, em um artigo mais demorado, metido a acadêmico. O tropicalismo musical completa em 2008 quarenta anos. Embora a comemoração da efeméride tenha começado agora, em 2007, com a exposição sobre Hélio Oiticica no MAM. Começo a apurar sistematicamente o que tem sido escrito sobre e durante a comemoração da efeméride, e confesso desgostar.Tem muito lero lero babaca no mercado. O blog e os artigos que o brasilianista Cristopher Dunn emplacou na revista "Bravo", por exemplo, são legais, mas sequer pensam a fundo as questões ele mesmo começa a indagar, meio inadivertidamente, às vezes, a tangenciar. Qual é a grande questão, os pontos cegos, do tropicalismo em artes, penso eu? No parecer bem sucinto que escrevi, na qualidade acadêmica de membro de uma congregação universitária, para a UFPB conceder o título de professor emérito a Jomard Muniz de Brito, dou um pouco a pista do que penso, aliás, uma questão enunciada, mas não desenvolvida por Caetano Veloso, em seu belo livro "Verdade Tropical".
Caetano indaga porque os militares eram tão inimigos da tropicália e porque um capitão diz a ele, preso e próximo a uma câmara de tortura (ele sofreu tortura psicológica mas não física no cárcere), que o tropicalismo era tão ou mais subversivo do que a esquerda armada. Em outro momento, o próprio Caetano afirma que, embora utilizando e mesmo se conformando legal a esquemas da cultura de massas, o tropicalismo tinha vestes de uma ultra-esquerda política e principalmente filosófica (afinal, não é fácil, nem digestivo, divulgar frases como "seja marginal, seja herói", Hélio Oiticica, ou simular um suicídio em pleno programa dominical de TV). Os militares não estavam nada preocupados com a zorra debochada que os tropicalistas fizeram do nacional-popular, a exemplo da interpretação, no fundo, equivocada, de Roberto Schwarcz. Que nada, a questão de fundo distava do nacional-popular.
Eis a minha tese (em outro momento prometo desenvolver): na verdade, o tropicalismo foi uma explosão dionisíaca, tendo, aliás, muito a ver, compondo o mesmo caudal, por exemplo, com os movimentos culturais mais radicais dos anos 60, como a anti-psiquiatria, Bataille, Derrida, Foucault, etc. O ego foi estilhaçado nas manifestações mais radicais do tropicalismo. Quem talvez melhor representasse esta tendência seja a trajetória de Torquato Neto; como se dizia na época, ele não agüentou a barra da experiência de descentramento, de polifonia, do sujeito. "Para mim, chega!" - este o útlimo verso antes de abrir a torneira de gás de seu apartamento e cometer o último ato de descentração, o suicídio. É duro olhar no fundo os olhos da tragédia. A questão do tropicalismo foi esta: um movimento trágico, alegórico e barroco.
Por isso, realmente há uma clivagem na obra dos principais tropicalistas, antes e depois do exílio, em Londres. Caetano Veloso e Gilberto Gil abandonaram o brinquedo de fogo e fizeram, sem dúvida, obras fundamentais do cancioneiro brasileiro. Em Caetano Veloso – menos no ministro Gil -, de vez em quando, em lampejos, o fogo volta a atiçar, como em CÊ...
Segue um texto que fiz sobre CÊ (em estúdio) quando do lançamento, no ano passado.
Cê, de Caetano Veloso
Jaldes Reis de Meneses.
Professor dos programas de pós-graduação em História e Serviço Social do CCHLA- UFPB.
Tem causado espanto na crítica musical o fato de Caetano Veloso ter aposentado em seu mais recente disco (Cê) os violoncelos, as pallas e os arranjos refinados de Jacques Morelenbaum, substituído por um conjunto juvenil de guitarra, baixo, bateria e teclados. Há um ardil na composição do grupo de excelentes e jovens músicos (Pedro Sá, guitarra; Ricardo Dias Gomes, baixo e piano Rhodes; Marcelo Callado, bateria) que acompanham Caetano: eles estão disfarçados à maneira de um conjunto de rock de garagem, porém são na verdade músicos profissionais, antenados com o mundo, cientes do trabalho feito, inclusive nos discretos adicionamentos de música eletrônica justapostos aos arranjos, donde se sobressai o trabalho de produção e Pedro Sá e Moreno Veloso.
O rock ficou conhecido no século passado como um ritmo gutural de adolescentes que despertavam para a sexualidade. Neste sentido, o disco de Caetano continua fiel à tradição do rock. Considerando uma análise estritamente musical, Cê rememora discretamente as estruturas composicionais de Raul Seixas. Entretanto, no tocante a forma poética, permuta os dilemas mais simples de adolescente – ou de um brasileiro gauche pelo motivo de não ter nascido americano (representação de Caetano sobre Raul Seixas na homenagem Rock’n’Raul, uma das canções de Noites do norte, disco de 2000) – pelos complexos vividos de um sexagenário exalando uma dura sexualidade masculina, e audaciosamente não feminista – “não tenho inveja da modernidade/nem da lactação/não tenho inveja da adiposidade/ nem da menstruação/só tenho inveja da longevidade/ e dos orgasmos múltiplos” (Homem).
A festa adolescente, em Cê, cede lugar ao lamento, a uma visão melancólica de mundo (Walter Benjamin afirmava que os estados de melancolia possibilitam ver melhor). A partir do próprio título (Cê), o compositor se dirige diretamente a uma única personagem em quase todas as canções – exceção de três: Minhas lágrimas (meditação sobre uma catástrofe, em Los Angeles), Waly Salomão (oração fúnebre ao poeta e amigo recém-desaparecido) e O herói (polêmico manifesto sonoro sobre a questão racial brasileira, cuja letra, por si mesma, mereceria um artigo a parte) –, entabulando um diálogo ríspido, contudo, sempre diálogo de cumplicidade. Cê vem a ser uma musa, na melhor tradição das musas poéticas de Petrarca (Laura) e Dante (Beatriz) –, alguém que complementa e dá sentido a uma individualidade, com a diferença de que os dois poetas renascentistas cantavam a musa no começo da jornada humanista/antropocêntrica e Caetano cuida de sua musa nos estertores desta mesma jornada, em um período de crise e mutação do sujeito – “você nem vai me reconhecer/quando eu passar por você” (Outro).
O compositor baiano altera e atualizada o registro literário da musa. A antiga musa angelical, idealizada, sublimada nos momentos de enlevo, encontro e despedida, cede lugar a uma espécie de pontuação esquizofrênica, de alteração abrupta, entre o enlevo e o pesadelo da convivência cotidiana – “com você eu tenho medo de me apaixonar/eu tenho medo de não me apaixonar/tenho medo dele, tenho medo dela/ os dois juntos onde eu não posso entrar” (Deusa urbana, canção de sonoridade parecida com a dos Tribalistas). O todo é um: cantando o (des)afeto privado à sua Musa híbrida (tu onça tu/eu, jacaré eu), título de uma das poucas canções relaxantes de Cê), tem-se, no mesmo movimento, a simulação de uma época histórica em que as esperanças de transcendência do paraíso amoroso já se exauriram.
Cê (o gravado em estúdio, e não este, ao vivo) é um dos meus discos favoritos de Caetano, compositor pelo qual nutro uma afeição pessoal e emotiva muito grande (detesto tietagem e procuro preservar o espírito crítico, sempre que possível), mas fui descobrindo a afeição aos poucos. Explico: quando Cida teve minhas duas filhas, Analine e Lígia, vinha sempre em minha cabeça, embalando as meninas, as canções de Cateano funcionando como canções de ninar: "Irene", "Marinheiro Só", "Lua de São Jorge", "Tempo de Estio", "Chuva, Suor e Cerveja", etc. Evidentemente, sequer são canções de ninar, mas me ninavam junto com o sono das meninas. Percebi, desde então, que tinha uma relação muito íntima com essa obra musical, fundamental, da música popular brasileira, em todos os tempos. O que estava subreptício aflorou à consciência.
Êpa, falei em consciência e inconsciente? Então vou escrever mais algumas linhas do que pretendo desvolver sobre o tropicalismo, em um artigo mais demorado, metido a acadêmico. O tropicalismo musical completa em 2008 quarenta anos. Embora a comemoração da efeméride tenha começado agora, em 2007, com a exposição sobre Hélio Oiticica no MAM. Começo a apurar sistematicamente o que tem sido escrito sobre e durante a comemoração da efeméride, e confesso desgostar.Tem muito lero lero babaca no mercado. O blog e os artigos que o brasilianista Cristopher Dunn emplacou na revista "Bravo", por exemplo, são legais, mas sequer pensam a fundo as questões ele mesmo começa a indagar, meio inadivertidamente, às vezes, a tangenciar. Qual é a grande questão, os pontos cegos, do tropicalismo em artes, penso eu? No parecer bem sucinto que escrevi, na qualidade acadêmica de membro de uma congregação universitária, para a UFPB conceder o título de professor emérito a Jomard Muniz de Brito, dou um pouco a pista do que penso, aliás, uma questão enunciada, mas não desenvolvida por Caetano Veloso, em seu belo livro "Verdade Tropical".
Caetano indaga porque os militares eram tão inimigos da tropicália e porque um capitão diz a ele, preso e próximo a uma câmara de tortura (ele sofreu tortura psicológica mas não física no cárcere), que o tropicalismo era tão ou mais subversivo do que a esquerda armada. Em outro momento, o próprio Caetano afirma que, embora utilizando e mesmo se conformando legal a esquemas da cultura de massas, o tropicalismo tinha vestes de uma ultra-esquerda política e principalmente filosófica (afinal, não é fácil, nem digestivo, divulgar frases como "seja marginal, seja herói", Hélio Oiticica, ou simular um suicídio em pleno programa dominical de TV). Os militares não estavam nada preocupados com a zorra debochada que os tropicalistas fizeram do nacional-popular, a exemplo da interpretação, no fundo, equivocada, de Roberto Schwarcz. Que nada, a questão de fundo distava do nacional-popular.
Eis a minha tese (em outro momento prometo desenvolver): na verdade, o tropicalismo foi uma explosão dionisíaca, tendo, aliás, muito a ver, compondo o mesmo caudal, por exemplo, com os movimentos culturais mais radicais dos anos 60, como a anti-psiquiatria, Bataille, Derrida, Foucault, etc. O ego foi estilhaçado nas manifestações mais radicais do tropicalismo. Quem talvez melhor representasse esta tendência seja a trajetória de Torquato Neto; como se dizia na época, ele não agüentou a barra da experiência de descentramento, de polifonia, do sujeito. "Para mim, chega!" - este o útlimo verso antes de abrir a torneira de gás de seu apartamento e cometer o último ato de descentração, o suicídio. É duro olhar no fundo os olhos da tragédia. A questão do tropicalismo foi esta: um movimento trágico, alegórico e barroco.
Por isso, realmente há uma clivagem na obra dos principais tropicalistas, antes e depois do exílio, em Londres. Caetano Veloso e Gilberto Gil abandonaram o brinquedo de fogo e fizeram, sem dúvida, obras fundamentais do cancioneiro brasileiro. Em Caetano Veloso – menos no ministro Gil -, de vez em quando, em lampejos, o fogo volta a atiçar, como em CÊ...
Segue um texto que fiz sobre CÊ (em estúdio) quando do lançamento, no ano passado.
Cê, de Caetano Veloso
Jaldes Reis de Meneses.
Professor dos programas de pós-graduação em História e Serviço Social do CCHLA- UFPB.
Tem causado espanto na crítica musical o fato de Caetano Veloso ter aposentado em seu mais recente disco (Cê) os violoncelos, as pallas e os arranjos refinados de Jacques Morelenbaum, substituído por um conjunto juvenil de guitarra, baixo, bateria e teclados. Há um ardil na composição do grupo de excelentes e jovens músicos (Pedro Sá, guitarra; Ricardo Dias Gomes, baixo e piano Rhodes; Marcelo Callado, bateria) que acompanham Caetano: eles estão disfarçados à maneira de um conjunto de rock de garagem, porém são na verdade músicos profissionais, antenados com o mundo, cientes do trabalho feito, inclusive nos discretos adicionamentos de música eletrônica justapostos aos arranjos, donde se sobressai o trabalho de produção e Pedro Sá e Moreno Veloso.
O rock ficou conhecido no século passado como um ritmo gutural de adolescentes que despertavam para a sexualidade. Neste sentido, o disco de Caetano continua fiel à tradição do rock. Considerando uma análise estritamente musical, Cê rememora discretamente as estruturas composicionais de Raul Seixas. Entretanto, no tocante a forma poética, permuta os dilemas mais simples de adolescente – ou de um brasileiro gauche pelo motivo de não ter nascido americano (representação de Caetano sobre Raul Seixas na homenagem Rock’n’Raul, uma das canções de Noites do norte, disco de 2000) – pelos complexos vividos de um sexagenário exalando uma dura sexualidade masculina, e audaciosamente não feminista – “não tenho inveja da modernidade/nem da lactação/não tenho inveja da adiposidade/ nem da menstruação/só tenho inveja da longevidade/ e dos orgasmos múltiplos” (Homem).
A festa adolescente, em Cê, cede lugar ao lamento, a uma visão melancólica de mundo (Walter Benjamin afirmava que os estados de melancolia possibilitam ver melhor). A partir do próprio título (Cê), o compositor se dirige diretamente a uma única personagem em quase todas as canções – exceção de três: Minhas lágrimas (meditação sobre uma catástrofe, em Los Angeles), Waly Salomão (oração fúnebre ao poeta e amigo recém-desaparecido) e O herói (polêmico manifesto sonoro sobre a questão racial brasileira, cuja letra, por si mesma, mereceria um artigo a parte) –, entabulando um diálogo ríspido, contudo, sempre diálogo de cumplicidade. Cê vem a ser uma musa, na melhor tradição das musas poéticas de Petrarca (Laura) e Dante (Beatriz) –, alguém que complementa e dá sentido a uma individualidade, com a diferença de que os dois poetas renascentistas cantavam a musa no começo da jornada humanista/antropocêntrica e Caetano cuida de sua musa nos estertores desta mesma jornada, em um período de crise e mutação do sujeito – “você nem vai me reconhecer/quando eu passar por você” (Outro).
O compositor baiano altera e atualizada o registro literário da musa. A antiga musa angelical, idealizada, sublimada nos momentos de enlevo, encontro e despedida, cede lugar a uma espécie de pontuação esquizofrênica, de alteração abrupta, entre o enlevo e o pesadelo da convivência cotidiana – “com você eu tenho medo de me apaixonar/eu tenho medo de não me apaixonar/tenho medo dele, tenho medo dela/ os dois juntos onde eu não posso entrar” (Deusa urbana, canção de sonoridade parecida com a dos Tribalistas). O todo é um: cantando o (des)afeto privado à sua Musa híbrida (tu onça tu/eu, jacaré eu), título de uma das poucas canções relaxantes de Cê), tem-se, no mesmo movimento, a simulação de uma época histórica em que as esperanças de transcendência do paraíso amoroso já se exauriram.
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