Fidelidade Partidária: O Brasil entre a estabilidade econômica e a crise institucional permanente (I)

Perguntam-me sobre a decisão de ontem (04/10) do Supremo Tribunal Federal, que reiterou o princípio já votado em março pelo TSE: o cargo eletivo no sistema partidário brasileiro, é do partido e não propriedade do parlamentar, à primeira vista, assentando alguma regra de estabilidade na bagunça. Melhor como vai ficar do que como estava. Entretanto, nem tanto ao mar nem tanto a terra.

Como de costume na tradição brasileira à conciliação nas camadas superiores, a decisão dos ministros do Supremo, aprovou um princípio (a fidelidade); porém, ato contínuo, concedeu uma espécie de anistia branca, decidindo que só haverá possibilidade de processo dos partidos prejudicados pelo troca-troca partidário nos casos ocorridos depois de 27 de março, data da consulta ao TSE, e mesmo assim após de um demorado processo de provas e contra provas. Em resumo, ninguém terá o mandato cassado. Sequer falei novidades: quem acompanha o monótono dia-a-dia da política sabe dessas meras informações, bagatelas.

Eis o problema: muita informação e pouca análise consistente, que aborde a fundo a teia de relações estruturais e históricas do sistema político brasileiro, e faça o cotejo com o nosso passado, desmontando algumas armadilhas do senso comum e falsos consensos.

Em primeiro lugar, é falsa a afirmação, repetida a sobeja, de que a infidelidade partidária dimana de uma prática antiga, arraigada na história do país. Ora, a análise histórica demonstra exatamente o contrário. Entre nós, a não ser recentemente, a fidelidade sobrepujou a infidelidade. Senão, vejamos.

O parlamentarismo imperial constava de apenas dois partidos, o liberal e o conservador, e depois do período das regências, demonstrou uma impressionante estabilidade política para um regime escravocrata. Na velha república, vigorou um sistema de partido único, epiderme sob a qual se praticava as acomodações do conflito oligárquico de base estadual. Enfim, também o sistema partidário erigido com o fim do Estado Novo de Vargas (1945), pluripartidário, mas com base em três grandes agremiações (PSD, UDN e PTB), e mais uma clandestina, embora influente (o PCB), a tendência das forças políticas, em geral, era pela fidelidade à legenda, embora a partir de uma margem, garantida na lei, de efetuar amplas coalizões. Durante a ditadura, tivemos somente a ARENA e o MDB. Embora tenhamos alguns casos celebres de mudança de partido, ela se dava como mutação ideológica, era mais exceção do que regra.


A infidelidade e o troca-troca generalizado, cotidiano, portanto, são características recentes, motivadas pela natureza do regime político presidencialista erigido a partir do marco legal da Constituição de 1988. Significa um índice, um dos sinais exteriores, da complexa e prolongada crise institucional brasileira, por seu turno, componente, ela mesma, da crise da mais importante forma de representação política moderna – o partido. Porque a crise política atual é complexa, estrutural e de longo prazo, aliás, as análises menos informadas, via de regra, presas à conjuntura, tendem a patinar. Em vez de olhar de frente e atravessar por dentro os problemas, procuram contornos e apontam soluções jurisdicionais, com foco nas mudanças de regras. Tentarei explicar.

Quando surgiu a chamada “crise do mensalão”, em 2005, algumas vozes vaticinaram até o fim do governo Lula. Afirmei que a análise era apressada e errada. O governo Lula não acabaria – poderia até ganhar fôlego -, contudo, a crise, mais que do núcleo de poder, era de toda a institucionalidade do aparelho republicano (executivo, legislativo, judiciário). Ainda mais. Antecipei que a crise percorreria sem descanso próximo o governo, fosse petista ou tucano. É o que está acontecendo, embora no chato compasso de um processo monótono, reiterado nas mesmices de figuras da estatura de Renan Calheiros. Em suma, uma crise que não derruba governos nem afeta os vetores fundamentais da estabilidade econômica, a curto prazo, conquanto siga, paulatinamente, corroendo as bases da política institucional. Qual o resultado disso?


Na verdade, o capitalismo brasileiro atual, desde o plano real (1994), com base na conquista da estabilidade da moeda, logrou ditar as novas regras da política, superar a instabilidade do período dos governos Sarney e Collor (não por acaso, a esquerda e os movimentos sociais acumularam força durante este período), formando inclusive um regime novo, um modo político e de acumulação (para usar uma nomenclatura da escola da regulação francesa).

Doravante, passamos a assistir um inegável crescimento econômico, embora módico, distante de cifras asiáticas, mas contínuo. Concomitante ao crescimento obteve-se relativo sucesso no movimento, nada ingênuo e adrede preparado, de “insulamento” da economia face às peripécias da política, a cada dia mais irrelevante, numa aguda crise de representação social. Este “insulamento” da economia face à política tornou-se factível, em última instância, porque, no chão do aparelho do executivo, desde o governo de FHC e fiado por Lula, houve um acordo direto entre as forças econômicas. Se houve uma novidade no governo Lula, foi a de que um setor que, até então, estava de fora da grande concertação, o PT, os movimentos sociais, a CUT, etc., dali em diante, passou a compor o bloco de forças do poder. A política foi resolvida, mais uma vez, pelo alto. Sem novidades fundamentais: este é o padrão histórico brasileiro, nosso original modo de regulação. (Continua, certamente, amanhã). Jaldes Reis ds Meneses.


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