Mário Quintana
Jaldes Reis de Meneses.
Professor dos Programas de Pós-Graduação em História e Serviço Social (UFPB).
e-mail: jaldesm@uol.com.br
coluna: http://www.wscom.com.br/
No turbilhão de leituras sobre política, filosofia e história no qual me assoberbo no cotidiano, uma pequena nota escondida publicada numa das páginas da revista “EntreLivros” (outubro) me despertou a curiosidade: o resultado de uma enquete realizada na internet pela editoria da revista com a seguinte e audaciosa pergunta: - qual foi o grande poeta brasileiro do século XX?
Numa lista de cinco grandes poetas, a eleição coube ao gaúcho de Alegrete Mário Quintana, seguido, em um resultado equilibrado, de Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Moraes e Manuel Bandeira (empatados), e João Cabral de Melo Neto. Caso a lista fosse entre críticos especializados em literatura, conjeturo que jamais Quintana venceria uma enquete, até diria que a disputa recairia sobre Drummond e João Cabral, talvez Bandeira (certamente Vinicius ficaria de lado). Quais os motivos da preferência do leitor comum de poesia, digamos assim, por Mário Quintana?
Pode-se dar de ombros e não levar consultas pela internet a sério. É preciso ter cuidado. Embora pouco tenha a dizer sobre as propriedades intrínsecas de um poema, no entanto a opinião geral revela sobre aquilo que Kant, no clássico livro “Crítica da Faculdade do Juízo” designou de “gosto”, ou seja, a natureza do interesse que a experiência do belo desperta no leitor de um poema, que não é do tipo moral nem utilitário. Acontece no caso da experiência do gosto estético, ao contrário, uma “suspensão” momentânea tanto da moral como da utilidade. Com isso, o pensamento é liberado para um julgamento de outro tipo, estético-expressivo, em virtude da capacidade da obra de arte comunicar sem basear-se em conceitos, pelo fato de constituir um juízo singular. A obra de arte é o próprio reino da particularidade, aqui posto no sentido de singular.
Dessa maneira, a adesão a Mário Quintana aflora o “gosto”; mais ainda, a subjetividade do leitor de poesia brasileiro. Por aqui também se explicam eventuais divergências entre o público leitor e a crítica especializada. Igualmente, a crítica é portadora de “gosto” – o que significa o “cânone literário” (o relativo consenso sobre os “clássicos da literatura”: Dante, Camões, Shakespeare, etc.), senão manifestação de gosto erudita? Entretanto, a tendência normal da crítica recai na análise focada no objeto, distante do puro julgamento subjetivo (para ficar somente em um exemplo didático ao leitor: a estética de Walter Benjamin, ao inverso de Kant, era toda focada na obra e não no juízo). Na verdade, a melhor crítica deve saber reunir tanto o estudo consciencioso do objeto como estar atenta às mutações do gosto, pena que a maioria de nossas faculdades de letras eduque principalmente “técnicos da linguagem”, analistas preparados na sintaxe estrutural do discurso da obra, mas padeçam de formação, mesmo suplementar, em estética ou filosofia da arte.
Qualquer grande poeta vira também uma figura pública. É como se o recato da personalidade (Drummond, João Cabral, Quintana) ou a vida fulgurante, muitas vezes o destino trágico (Vinicius, Waly Salomão, Allem Ginsberg), tivesse o carisma de transmitir admiração e até certo tipo de santidade profana. Para mim, a preferência por Mário Quintana reside, mais além dos méritos poéticos inegáveis, por ele ter involuntariamente formado uma personalidade pública de simpática aparência frágil, solitária (viveu anos a fio em um quarto de hotel), lírica (nos últimos anos, aposentado da profissão de tradutor, estava inteiramente dedicado à poesia), mas ao mesmo tempo irônica e corrosiva.
Sucede que a poesia de Quintana é inteiramente coerente com a sua biografia, duas faces da mesma moeda. Em ambas, encontramos, sem artificialismos, o lúdico e o coloquial – duas preferências do leitor contemporâneo –, abrigados em uma visão de mundo cética. Se quiserem um elogio, o poeta sempre me aparentou uma criança crescida que, descrente do mundo, dos conflitos, das ideologias, só pode brincar com ele, feito um jogo de cabra cega. Tudo isso em versos curtos, sensíveis, fáceis de guardar na memória. Assim, pode-se chegar ao segredo da popularidade poética de Mário Quintana.
Jaldes Reis de Meneses.
Professor dos Programas de Pós-Graduação em História e Serviço Social (UFPB).
e-mail: jaldesm@uol.com.br
coluna: http://www.wscom.com.br/
No turbilhão de leituras sobre política, filosofia e história no qual me assoberbo no cotidiano, uma pequena nota escondida publicada numa das páginas da revista “EntreLivros” (outubro) me despertou a curiosidade: o resultado de uma enquete realizada na internet pela editoria da revista com a seguinte e audaciosa pergunta: - qual foi o grande poeta brasileiro do século XX?
Numa lista de cinco grandes poetas, a eleição coube ao gaúcho de Alegrete Mário Quintana, seguido, em um resultado equilibrado, de Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Moraes e Manuel Bandeira (empatados), e João Cabral de Melo Neto. Caso a lista fosse entre críticos especializados em literatura, conjeturo que jamais Quintana venceria uma enquete, até diria que a disputa recairia sobre Drummond e João Cabral, talvez Bandeira (certamente Vinicius ficaria de lado). Quais os motivos da preferência do leitor comum de poesia, digamos assim, por Mário Quintana?
Pode-se dar de ombros e não levar consultas pela internet a sério. É preciso ter cuidado. Embora pouco tenha a dizer sobre as propriedades intrínsecas de um poema, no entanto a opinião geral revela sobre aquilo que Kant, no clássico livro “Crítica da Faculdade do Juízo” designou de “gosto”, ou seja, a natureza do interesse que a experiência do belo desperta no leitor de um poema, que não é do tipo moral nem utilitário. Acontece no caso da experiência do gosto estético, ao contrário, uma “suspensão” momentânea tanto da moral como da utilidade. Com isso, o pensamento é liberado para um julgamento de outro tipo, estético-expressivo, em virtude da capacidade da obra de arte comunicar sem basear-se em conceitos, pelo fato de constituir um juízo singular. A obra de arte é o próprio reino da particularidade, aqui posto no sentido de singular.
Dessa maneira, a adesão a Mário Quintana aflora o “gosto”; mais ainda, a subjetividade do leitor de poesia brasileiro. Por aqui também se explicam eventuais divergências entre o público leitor e a crítica especializada. Igualmente, a crítica é portadora de “gosto” – o que significa o “cânone literário” (o relativo consenso sobre os “clássicos da literatura”: Dante, Camões, Shakespeare, etc.), senão manifestação de gosto erudita? Entretanto, a tendência normal da crítica recai na análise focada no objeto, distante do puro julgamento subjetivo (para ficar somente em um exemplo didático ao leitor: a estética de Walter Benjamin, ao inverso de Kant, era toda focada na obra e não no juízo). Na verdade, a melhor crítica deve saber reunir tanto o estudo consciencioso do objeto como estar atenta às mutações do gosto, pena que a maioria de nossas faculdades de letras eduque principalmente “técnicos da linguagem”, analistas preparados na sintaxe estrutural do discurso da obra, mas padeçam de formação, mesmo suplementar, em estética ou filosofia da arte.
Qualquer grande poeta vira também uma figura pública. É como se o recato da personalidade (Drummond, João Cabral, Quintana) ou a vida fulgurante, muitas vezes o destino trágico (Vinicius, Waly Salomão, Allem Ginsberg), tivesse o carisma de transmitir admiração e até certo tipo de santidade profana. Para mim, a preferência por Mário Quintana reside, mais além dos méritos poéticos inegáveis, por ele ter involuntariamente formado uma personalidade pública de simpática aparência frágil, solitária (viveu anos a fio em um quarto de hotel), lírica (nos últimos anos, aposentado da profissão de tradutor, estava inteiramente dedicado à poesia), mas ao mesmo tempo irônica e corrosiva.
Sucede que a poesia de Quintana é inteiramente coerente com a sua biografia, duas faces da mesma moeda. Em ambas, encontramos, sem artificialismos, o lúdico e o coloquial – duas preferências do leitor contemporâneo –, abrigados em uma visão de mundo cética. Se quiserem um elogio, o poeta sempre me aparentou uma criança crescida que, descrente do mundo, dos conflitos, das ideologias, só pode brincar com ele, feito um jogo de cabra cega. Tudo isso em versos curtos, sensíveis, fáceis de guardar na memória. Assim, pode-se chegar ao segredo da popularidade poética de Mário Quintana.
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