Travessuras, de Carlos Anísio
Jaldes Reis de Meneses.
Professor do Departamento de História da UFPB.
e-mail: jaldesm@uol.com.br
blog: http://jaldes-campodeensaio.blogspot.com/
Compositor de trilhas sonoras para teatro e balé, maestro, arranjador, produtor, musicólogo, professor, e agora, descobrimos, um cantor de voz grave, Carlos Anísio acaba de lançar um disco – Travessuras – com dez canções infantis de sua pena musical. Abre-se a lona de um circo repleto de simbolismos. Parafraseando a singela apresentação de Eleonora Montenegro, na parte interna do CD, a partir do aproveitamento de motivos principalmente circenses, Anísio convida-nos a uma viagem, pelas mãos de um personagem, o “Palhaço Chulé” e seus amigos, todos dotados de mimetismo, uma propriedade que ao mesmo tempo individualiza e naturaliza, o “Urso Guloso”, o “Índio Curumim”, o “Elefante”, entre outros. Ao contrário do camaleão, cujo processo de mimetismo é orgânico, o dos humanos precisa dispor ao seu alcance da experiência social, esta, aliás, a origem da importância da forma em arte – não podemos dispor dos materiais da natureza tal-como-são. Nossa ontologia reside em recriar, reelaborar, a natureza. Em arte, até mais que isso: inventar uma nova forma. A particularidade da atividade artística, portanto, reside no trabalho de criação da forma. No caso específico da música infantil, precisamos contar com a experiência social da infância, um terreno repleto de ciladas, as quais o novo trabalho de Carlos Anísio enfrenta e se sai muito bem.
Há uma série de paradoxos cercando os trabalhos artísticos dirigidos ao público infantil. Em primeiro lugar, embora nem sempre, claro, esses trabalhos são realizados pelo que chamamos de adultos, pessoas que têm para com a infância uma relação de passado, ou seja, de reminiscência, desatada a partir de um complexo processo de esquecimento e lembrança. A segunda possibilidade de abordagem é a observação indireta, pelo adulto, da vida dos infantes. Contudo, ouso dizer, processo de memória ou observação direita, por seu turno, a arte dirigida a crianças visa especialmente o trabalho educativo e de formação, internalizados através da arte infantil. Aparentemente espontânea – na verdade um trunque de sedução da fábula –, a dimensão moral, elemento objetivo presente em todas as manifestações artísticas –, em vez de se diluir, ao contrário, é adensada nos trabalhos infantis.
As coisas se complicam quando sabemos que o próprio conceito de infância, tal qual concebemos hoje – uma idade do homem datada de originalidade –, é historicamente datado, correspondendo a uma forma de organização das relações socais. O historiador francês Philippe Áriès (L’enfant et la vie familiale sous l’Ancien Régime), por exemplo, sustentou uma polêmica tese sobre história da infância na Europa: para ele, simplesmente a idéia (ou o sentimento) de infância dificilmente existiu na idade média. O grupo etário que chamamos de criança era visto, mais ou menos, como animais até a idade de sete anos e como adultos em miniatura daí por diante. Somente na altura do século XVII, na França, é que passamos a ter uma representação social afirmativa da criança. Evidentemente, a tese de Áriès sofreu uma trovoada de contestações. Tema complexo, sequer disponho em mãos de material empírico, e até erudição filológica, de abordá-lo. Mas há um elemento na tese da historicidade moderna da infância ainda imune à contestação historiográfica: a verificação de que se busca a uma criança autônoma na arte sacra e medieval e não se a encontra. Assim acontece também na origem remota da religião cristã: a própria infância de Cristo narrada na Bíblia parece uma elipse, uma longa viagem de José com a família ao Egito. Ou seja: o processo de representação da criança trata-se de um atributo da vida moderna, somente tornada efetiva com o processo de dessacralização da arte. Antes e para haver a idéia libertação da mulher, das etnias, etc., na representação artística, houve a libertação da criança.
Coligado à idéia de liberação da forma de representação da infância, existe, na educação de hoje, a idéia de ir formando o espírito criativo das crianças através das oficinas de dimensão lúdica – às vezes com exagero. O movimento de associar a infância como a idade do ludismo tem um lado interessante: dispor a criança de um espaço de exercício da liberdade de criação; basta lápis, tinta, papel e, doravante, a imaginação passa a voar... Que pretendemos afirmar? Entrevemos aí uma pista de analisar o disco de Carlos Anísio, pois ele tentou (e conseguiu) mimetizar como forma artístico-musical, como estética, em suma, elementos da criatividade direta, exalada da idade infantil. Várias outras escolhas estéticas seriam possível, inclusive certo “realismo” vitoriano, presente nas bonecas com a quais as avós presenteavam nossas mães, ou mesmo o hiper-realismo hedonista da Barbie, até o devaneio pós-moderno da Xuxa, por exemplo.
As escolhas principiam pelo nome escolhido para o CD – Travessuras –, acompanhado das ilustrações diretamente infantis da capa e contracapa, até o tom circense da maioria das canções e arranjos. Se quisermos apontar uma filiação para o trabalho infantil de Carlos Anísio, lembremos dos poemas infantis de Vinícius de Moraes (Casa de Brinquedo) e o trabalho feito por Chico Buarque na adaptação da peça infantil italiana Os saltimbancos. Alguém poderia sugerir as canções folclóricas do repertório de Villa-Lobos (O castelo; Có, có, có; Pai Francisco; Que lindos olhos, tantas, tantas). Com certeza, mas o CD do compositor paraibano se afasta, certamente de caso pensado, das orquestrações do velho Villa, da sonoridade dos violinos e cellos – e principalmente do grande coro de vozes infantis – adotando uma formação semelhante a que se usa atualmente em música popular (guitarra, bateria, percussão, teclados, etc.). Cremos que haja uma sutileza na escolha: de alguma maneira, as canções infantis de Villa-Lobos buscam na audição o feitio de uma espécie de reverência quase erudita (as modulações das vozes infantis, os timbres dos instrumentos), ao passo que Carlos Anísio deseja uma aproximação mais direta, face a face, com o público infantil: fazer uma travessura musical esteticamente bem realizada.
Jaldes Reis de Meneses.
Professor do Departamento de História da UFPB.
e-mail: jaldesm@uol.com.br
blog: http://jaldes-campodeensaio.blogspot.com/
Compositor de trilhas sonoras para teatro e balé, maestro, arranjador, produtor, musicólogo, professor, e agora, descobrimos, um cantor de voz grave, Carlos Anísio acaba de lançar um disco – Travessuras – com dez canções infantis de sua pena musical. Abre-se a lona de um circo repleto de simbolismos. Parafraseando a singela apresentação de Eleonora Montenegro, na parte interna do CD, a partir do aproveitamento de motivos principalmente circenses, Anísio convida-nos a uma viagem, pelas mãos de um personagem, o “Palhaço Chulé” e seus amigos, todos dotados de mimetismo, uma propriedade que ao mesmo tempo individualiza e naturaliza, o “Urso Guloso”, o “Índio Curumim”, o “Elefante”, entre outros. Ao contrário do camaleão, cujo processo de mimetismo é orgânico, o dos humanos precisa dispor ao seu alcance da experiência social, esta, aliás, a origem da importância da forma em arte – não podemos dispor dos materiais da natureza tal-como-são. Nossa ontologia reside em recriar, reelaborar, a natureza. Em arte, até mais que isso: inventar uma nova forma. A particularidade da atividade artística, portanto, reside no trabalho de criação da forma. No caso específico da música infantil, precisamos contar com a experiência social da infância, um terreno repleto de ciladas, as quais o novo trabalho de Carlos Anísio enfrenta e se sai muito bem.
Há uma série de paradoxos cercando os trabalhos artísticos dirigidos ao público infantil. Em primeiro lugar, embora nem sempre, claro, esses trabalhos são realizados pelo que chamamos de adultos, pessoas que têm para com a infância uma relação de passado, ou seja, de reminiscência, desatada a partir de um complexo processo de esquecimento e lembrança. A segunda possibilidade de abordagem é a observação indireta, pelo adulto, da vida dos infantes. Contudo, ouso dizer, processo de memória ou observação direita, por seu turno, a arte dirigida a crianças visa especialmente o trabalho educativo e de formação, internalizados através da arte infantil. Aparentemente espontânea – na verdade um trunque de sedução da fábula –, a dimensão moral, elemento objetivo presente em todas as manifestações artísticas –, em vez de se diluir, ao contrário, é adensada nos trabalhos infantis.
As coisas se complicam quando sabemos que o próprio conceito de infância, tal qual concebemos hoje – uma idade do homem datada de originalidade –, é historicamente datado, correspondendo a uma forma de organização das relações socais. O historiador francês Philippe Áriès (L’enfant et la vie familiale sous l’Ancien Régime), por exemplo, sustentou uma polêmica tese sobre história da infância na Europa: para ele, simplesmente a idéia (ou o sentimento) de infância dificilmente existiu na idade média. O grupo etário que chamamos de criança era visto, mais ou menos, como animais até a idade de sete anos e como adultos em miniatura daí por diante. Somente na altura do século XVII, na França, é que passamos a ter uma representação social afirmativa da criança. Evidentemente, a tese de Áriès sofreu uma trovoada de contestações. Tema complexo, sequer disponho em mãos de material empírico, e até erudição filológica, de abordá-lo. Mas há um elemento na tese da historicidade moderna da infância ainda imune à contestação historiográfica: a verificação de que se busca a uma criança autônoma na arte sacra e medieval e não se a encontra. Assim acontece também na origem remota da religião cristã: a própria infância de Cristo narrada na Bíblia parece uma elipse, uma longa viagem de José com a família ao Egito. Ou seja: o processo de representação da criança trata-se de um atributo da vida moderna, somente tornada efetiva com o processo de dessacralização da arte. Antes e para haver a idéia libertação da mulher, das etnias, etc., na representação artística, houve a libertação da criança.
Coligado à idéia de liberação da forma de representação da infância, existe, na educação de hoje, a idéia de ir formando o espírito criativo das crianças através das oficinas de dimensão lúdica – às vezes com exagero. O movimento de associar a infância como a idade do ludismo tem um lado interessante: dispor a criança de um espaço de exercício da liberdade de criação; basta lápis, tinta, papel e, doravante, a imaginação passa a voar... Que pretendemos afirmar? Entrevemos aí uma pista de analisar o disco de Carlos Anísio, pois ele tentou (e conseguiu) mimetizar como forma artístico-musical, como estética, em suma, elementos da criatividade direta, exalada da idade infantil. Várias outras escolhas estéticas seriam possível, inclusive certo “realismo” vitoriano, presente nas bonecas com a quais as avós presenteavam nossas mães, ou mesmo o hiper-realismo hedonista da Barbie, até o devaneio pós-moderno da Xuxa, por exemplo.
As escolhas principiam pelo nome escolhido para o CD – Travessuras –, acompanhado das ilustrações diretamente infantis da capa e contracapa, até o tom circense da maioria das canções e arranjos. Se quisermos apontar uma filiação para o trabalho infantil de Carlos Anísio, lembremos dos poemas infantis de Vinícius de Moraes (Casa de Brinquedo) e o trabalho feito por Chico Buarque na adaptação da peça infantil italiana Os saltimbancos. Alguém poderia sugerir as canções folclóricas do repertório de Villa-Lobos (O castelo; Có, có, có; Pai Francisco; Que lindos olhos, tantas, tantas). Com certeza, mas o CD do compositor paraibano se afasta, certamente de caso pensado, das orquestrações do velho Villa, da sonoridade dos violinos e cellos – e principalmente do grande coro de vozes infantis – adotando uma formação semelhante a que se usa atualmente em música popular (guitarra, bateria, percussão, teclados, etc.). Cremos que haja uma sutileza na escolha: de alguma maneira, as canções infantis de Villa-Lobos buscam na audição o feitio de uma espécie de reverência quase erudita (as modulações das vozes infantis, os timbres dos instrumentos), ao passo que Carlos Anísio deseja uma aproximação mais direta, face a face, com o público infantil: fazer uma travessura musical esteticamente bem realizada.
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