Tropa de Elite
Jaldes Reis de Meneses.
Professor dos Programas de Pós-Graduação em História e Serviço Social (UFPB).
e-mail: jaldesm@uol.com.br.
Blog: http://jaldes-campodeensaio.blogspot.com/
O SUCESSO do filme Tropa de Elite começou como contravenção: a distribuição e venda no mercado negro de milhões de cópias piratas, cada uma delas sintoma de uma doença mais grave: o aumento exponencial da ilegalidade no Brasil, a nossa definitiva emersão em um capitalismo de tipo mafioso, nos melhores moldes russos, mexicanos e colombianos.
Encontramo-nos no limiar da consolidação de uma estrutura de longo prazo: na vigência de deterioração de um Estado Democrático de Direito, passa a valer a cruel realidade de um Estado pré-Hobbesiano, carregado de “zonas liberadas” a soldo de tiranetes locais. Triste sina: atravessamos o umbral civilizatório da coerção legítima, do contrato social que instituiu aquilo que Max Weber (autor clássico da sociologia alemã) intitulava de “monopólio da violência legal” pelo Estado, beirando assim o abismo da barbárie. Nos comparte uma vida cotidiana que mais parece um inferno, principalmente nas periferias das grandes cidades, onde, na ausência de políticas públicas universais e permanentes (o bolsa-família tem a evanescência de uma moeda), o espaço dos serviços tem sido preenchido pelas igrejas evangélicas, as milícias paramilitares e a mais antiga e conhecida das redes alternativas de poder implantadas no Brasil: o jogo do bicho e depois o tráfico de drogas.
Porém, há um lenitivo: quando a situação extrapola dos limites tacitamente negociados entre o poder legal (os executivos estaduais) e o poder real das “zonas liberadas” (quando é assassinado, por exemplo, um jornalista); nesta circunstância, entra em ação a força bruta, total, dissuasória, de uma tropa de choque. Não por acaso, os acontecimentos mostrados em Tropa de Elite acontecem nos dias que antecedem a uma visita do Papa João Paulo II ao Rio de Janeiro, em 1996. O Estado precisava de uma calmaria.
A ciência social contemporânea, especialmente o italiano Giorgio Agamben, a partir de um mote proposto em 1940 por Walter Benjamin em Sobre o conceito de história – “o estado de exceção em que vivemos é na verdade regra geral” – vem tematizando a respeito da formação de um “Estado de exceção”. Trata-se de uma forma política na qual o Estado abre mão de muita coisa, menos de duas: o simbolismo da corte e o poder soberano de agir. E age sem pestanejar. A ação militar aparece sob a forma de uma ocupação profilática. Contudo, sem inverter as linhas estruturais da realidade social sob a qual se intervém. Simplesmente, exerce-se um controle. O Iraque sob a ocupação americana transformou-se na melhor ilustração mundial deste Estado de exceção, mas, no Brasil, pode-se afirmar, longe de exagero, que a vida de milhões também tem sido afligida por uma constelação política semelhante.
Aqui está uma novidade. Em tempos recentes, mesmo no Brasil, o exercício da política, da parte das classes populares, conseguia fazer brotar uma expectativa de melhores dias que, embora longe de pleno êxito, ao menos conseguia impor um solo de negociação entre as partes do conflito. Este dispositivo funcionou, bem ou mal, durante toda a “era Vargas”, teve um eclipse na época da ditadura, mas retornou com força no processo da constituinte. Hoje, tais esperanças faleceram, criando uma situação crítica. A esperança de melhores dias se afastou da política, embora, como compensação, reste à crença no mecanismo econômico desatado pelas liberdades individuais. Enfim, neste vazio das expectativas emancipatórias, a política transformou-se numa forma autista, os mecanismos de participação popular foram profissionalizados (o orçamento participativo, a ficar somente em um exemplo, presentemente, transformou-se numa mera tecnologia de poder).
Mais além das classes populares, o estágio de irresolução dos conflitos e aumento vertiginoso da violência afeta a todas demais classes da sociedade (principalmente a classe média), levando à exasperação. Causa espécie em certos críticos de cinema que o Capitão Nascimento – protagonista de Tropa de Elite – seja aplaudido de pé ao término das sessões ou gritado em estádios de futebol. Qual rigorosamente a novidade? O caldo de cultura de transformação do Capitão Nascimento em herói estava fervido.
Pois bem, Tropa de Elite possui um mérito inegável, ao fazer emergir o complexo de questões do Brasil contemporâneo, a cada dia que passa uma sociedade cínica e insalubre. Apesar disso, no mesmo movimento, contribui com o aumento da exasperação, ao entregar a narrativa às confissões do Capitão Nascimento, produzindo um resultado funesto distante da ingenuidade. Quem se responsabiliza pelas escolhas morais da narrativa é um personagem de ficção, que passa a ditar sem contraponto sua concepção de mundo bipolar e simplória: para ele, os principais responsáveis pela escalada das drogas na sociedade são os filhinhos do papai da classe média; a ação das ONGs na favela acoberta o crime; e, por último, embora desagradável, a tortura pode ser imprescindível em determinadas circunstâncias.
Decerto, a escolha do diretor José Padilha e dos roteiristas (junto com Padilha, o premiado Bráulio Mantovani, de Cidade de Deus, e Rodrigo Pimentel, ex-capitão do BOPE) é de fundamental importância para a compreensão dos cordéis internos do filme. Nos debates polêmicos sobre Tropa de Elite tem ocorrido uma situação no mínimo inusitada, com base decisão de entrega da narrativa do filme a um “eu”, os autores como que se desresponsabilizam dos resultados subseqüentes da ação. Põe tudo no cartório do Capitão Nascimento, coitado. Seria como se Machado de Assis nada tivesse a ver com Brás Cubas. Bem compreendido: obviamente, existe autonomia entre autor e personagem – talvez quando mais autônomo do autor mais rico em determinações o personagem. Não é esta a questão em exame, mas outra mais simples. Invocamos, digamos assim, a uma espécie de “ética da responsabilidade” na qual, em última instância, cabe ao criador um pronunciamento sobre a criatura.
Neste sentido, consentir a narrativa aos cuidados do Capitão Nascimento (no jargão dos bandidos, um bicho-solto que tortura e arrebenta) tem se constituído um salvo-conduto da direção e dos roteiristas, um tanto acuados pelo debate sobre o filme: acaso cobrado pela “glamorização” da violência, o diretor, os roteiristas e mesmo os atores (Wagner Moura tem dado várias entrevistas a respeito), via de regra, afirmam que o mostrado na tela não se trata do ponto de vista pessoal.
Um blefe duplo: em primeiro lugar, pouco nos interessa a opinião pessoal de José Padilha ou Wagner Moura, mas as opções dos criadores, e em segundo, o argumento apresenta uma manha mais cavilosa – a tentativa furada de certo realismo de corte conformista em apresentar a versão da saga narrada pelo protagonista como uma espécie de “espelho” da realidade.
Anteriormente, em Cidade de deus (filme do qual indubitavelmente Tropa de Elite é tributário) aconteceu algo parecido com a figura do narrador. No filme, o diretor Fernando Meireles e o roteirista Bráulio Mantovani pinçaram um personagem relativamente discreto do livro originário do filme – Buscapé –, e o colocou no proscênio, possibilitando “amarrar” o fluxo da ação. O filme ganhou dinamismo. Mas produziu-se um efeito contrário ao livro homônimo de Paulo Lins, cuja estrutura narrativa, baseada em Fogo morto, de José Lins do Rego, assentava na história de três bandidos em épocas subseqüentes (anos 60, 70 e 80), de maneira a contar a evolução do tráfico no circuito fechado da favela. Focado inteiro no circuito fechado da favela, no romance, os protagonistas, todos bandidos, pereceram numa espécie de guerra maldita. Havia algo de instrutivo nesta tragédia absoluta, que fazia pensar: a simulação da impossibilidade de porta de saída no mundo darwnista do tráfico.
No caso do cinema, arte de massas, a dura mensagem foi amaciada: Buscapé conseguiu subir na vida como fotógrafo, realizar um final feliz. A mensagem, no fundo, conformista, é a seguinte: mesmo na barbárie, as saídas individuais funcionam (possíveis, é claro, sempre o são). Quem diria... Frank Capra (clássico diretor do cinema americano famoso pela fabulação moral e os finais felizes) no tráfico de drogas da favela... Por isso, o livro de Paulo Lins é melhor que o filme de Fernando Meireles.
Em certo sentido, feito Cidade de Deus, Tropa de Elite também tem, apesar de tudo, um “final feliz”. O Capitão Nascimento consegue fazer o sucessor, o jovem aspirante Matias, que passa no teste de todas as provas animalescas do BOPE (dormir ao relento, comer como um porco, torturar, matar a sangue frio, etc.). O tiro em frente para a câmara, nos últimos instantes da fita, celebra a esta espécie de final feliz, sintetizando todo o séqüito de violências pesadas do filme. Doravante, os expectadores podem dormir sossegados e tranqüilos – o Capitão Nascimento recolher-se-á aos dilemas privados, mas encontrou um sucessor à altura.
Jaldes Reis de Meneses.
Professor dos Programas de Pós-Graduação em História e Serviço Social (UFPB).
e-mail: jaldesm@uol.com.br.
Blog: http://jaldes-campodeensaio.blogspot.com/
O SUCESSO do filme Tropa de Elite começou como contravenção: a distribuição e venda no mercado negro de milhões de cópias piratas, cada uma delas sintoma de uma doença mais grave: o aumento exponencial da ilegalidade no Brasil, a nossa definitiva emersão em um capitalismo de tipo mafioso, nos melhores moldes russos, mexicanos e colombianos.
Encontramo-nos no limiar da consolidação de uma estrutura de longo prazo: na vigência de deterioração de um Estado Democrático de Direito, passa a valer a cruel realidade de um Estado pré-Hobbesiano, carregado de “zonas liberadas” a soldo de tiranetes locais. Triste sina: atravessamos o umbral civilizatório da coerção legítima, do contrato social que instituiu aquilo que Max Weber (autor clássico da sociologia alemã) intitulava de “monopólio da violência legal” pelo Estado, beirando assim o abismo da barbárie. Nos comparte uma vida cotidiana que mais parece um inferno, principalmente nas periferias das grandes cidades, onde, na ausência de políticas públicas universais e permanentes (o bolsa-família tem a evanescência de uma moeda), o espaço dos serviços tem sido preenchido pelas igrejas evangélicas, as milícias paramilitares e a mais antiga e conhecida das redes alternativas de poder implantadas no Brasil: o jogo do bicho e depois o tráfico de drogas.
Porém, há um lenitivo: quando a situação extrapola dos limites tacitamente negociados entre o poder legal (os executivos estaduais) e o poder real das “zonas liberadas” (quando é assassinado, por exemplo, um jornalista); nesta circunstância, entra em ação a força bruta, total, dissuasória, de uma tropa de choque. Não por acaso, os acontecimentos mostrados em Tropa de Elite acontecem nos dias que antecedem a uma visita do Papa João Paulo II ao Rio de Janeiro, em 1996. O Estado precisava de uma calmaria.
A ciência social contemporânea, especialmente o italiano Giorgio Agamben, a partir de um mote proposto em 1940 por Walter Benjamin em Sobre o conceito de história – “o estado de exceção em que vivemos é na verdade regra geral” – vem tematizando a respeito da formação de um “Estado de exceção”. Trata-se de uma forma política na qual o Estado abre mão de muita coisa, menos de duas: o simbolismo da corte e o poder soberano de agir. E age sem pestanejar. A ação militar aparece sob a forma de uma ocupação profilática. Contudo, sem inverter as linhas estruturais da realidade social sob a qual se intervém. Simplesmente, exerce-se um controle. O Iraque sob a ocupação americana transformou-se na melhor ilustração mundial deste Estado de exceção, mas, no Brasil, pode-se afirmar, longe de exagero, que a vida de milhões também tem sido afligida por uma constelação política semelhante.
Aqui está uma novidade. Em tempos recentes, mesmo no Brasil, o exercício da política, da parte das classes populares, conseguia fazer brotar uma expectativa de melhores dias que, embora longe de pleno êxito, ao menos conseguia impor um solo de negociação entre as partes do conflito. Este dispositivo funcionou, bem ou mal, durante toda a “era Vargas”, teve um eclipse na época da ditadura, mas retornou com força no processo da constituinte. Hoje, tais esperanças faleceram, criando uma situação crítica. A esperança de melhores dias se afastou da política, embora, como compensação, reste à crença no mecanismo econômico desatado pelas liberdades individuais. Enfim, neste vazio das expectativas emancipatórias, a política transformou-se numa forma autista, os mecanismos de participação popular foram profissionalizados (o orçamento participativo, a ficar somente em um exemplo, presentemente, transformou-se numa mera tecnologia de poder).
Mais além das classes populares, o estágio de irresolução dos conflitos e aumento vertiginoso da violência afeta a todas demais classes da sociedade (principalmente a classe média), levando à exasperação. Causa espécie em certos críticos de cinema que o Capitão Nascimento – protagonista de Tropa de Elite – seja aplaudido de pé ao término das sessões ou gritado em estádios de futebol. Qual rigorosamente a novidade? O caldo de cultura de transformação do Capitão Nascimento em herói estava fervido.
Pois bem, Tropa de Elite possui um mérito inegável, ao fazer emergir o complexo de questões do Brasil contemporâneo, a cada dia que passa uma sociedade cínica e insalubre. Apesar disso, no mesmo movimento, contribui com o aumento da exasperação, ao entregar a narrativa às confissões do Capitão Nascimento, produzindo um resultado funesto distante da ingenuidade. Quem se responsabiliza pelas escolhas morais da narrativa é um personagem de ficção, que passa a ditar sem contraponto sua concepção de mundo bipolar e simplória: para ele, os principais responsáveis pela escalada das drogas na sociedade são os filhinhos do papai da classe média; a ação das ONGs na favela acoberta o crime; e, por último, embora desagradável, a tortura pode ser imprescindível em determinadas circunstâncias.
Decerto, a escolha do diretor José Padilha e dos roteiristas (junto com Padilha, o premiado Bráulio Mantovani, de Cidade de Deus, e Rodrigo Pimentel, ex-capitão do BOPE) é de fundamental importância para a compreensão dos cordéis internos do filme. Nos debates polêmicos sobre Tropa de Elite tem ocorrido uma situação no mínimo inusitada, com base decisão de entrega da narrativa do filme a um “eu”, os autores como que se desresponsabilizam dos resultados subseqüentes da ação. Põe tudo no cartório do Capitão Nascimento, coitado. Seria como se Machado de Assis nada tivesse a ver com Brás Cubas. Bem compreendido: obviamente, existe autonomia entre autor e personagem – talvez quando mais autônomo do autor mais rico em determinações o personagem. Não é esta a questão em exame, mas outra mais simples. Invocamos, digamos assim, a uma espécie de “ética da responsabilidade” na qual, em última instância, cabe ao criador um pronunciamento sobre a criatura.
Neste sentido, consentir a narrativa aos cuidados do Capitão Nascimento (no jargão dos bandidos, um bicho-solto que tortura e arrebenta) tem se constituído um salvo-conduto da direção e dos roteiristas, um tanto acuados pelo debate sobre o filme: acaso cobrado pela “glamorização” da violência, o diretor, os roteiristas e mesmo os atores (Wagner Moura tem dado várias entrevistas a respeito), via de regra, afirmam que o mostrado na tela não se trata do ponto de vista pessoal.
Um blefe duplo: em primeiro lugar, pouco nos interessa a opinião pessoal de José Padilha ou Wagner Moura, mas as opções dos criadores, e em segundo, o argumento apresenta uma manha mais cavilosa – a tentativa furada de certo realismo de corte conformista em apresentar a versão da saga narrada pelo protagonista como uma espécie de “espelho” da realidade.
Anteriormente, em Cidade de deus (filme do qual indubitavelmente Tropa de Elite é tributário) aconteceu algo parecido com a figura do narrador. No filme, o diretor Fernando Meireles e o roteirista Bráulio Mantovani pinçaram um personagem relativamente discreto do livro originário do filme – Buscapé –, e o colocou no proscênio, possibilitando “amarrar” o fluxo da ação. O filme ganhou dinamismo. Mas produziu-se um efeito contrário ao livro homônimo de Paulo Lins, cuja estrutura narrativa, baseada em Fogo morto, de José Lins do Rego, assentava na história de três bandidos em épocas subseqüentes (anos 60, 70 e 80), de maneira a contar a evolução do tráfico no circuito fechado da favela. Focado inteiro no circuito fechado da favela, no romance, os protagonistas, todos bandidos, pereceram numa espécie de guerra maldita. Havia algo de instrutivo nesta tragédia absoluta, que fazia pensar: a simulação da impossibilidade de porta de saída no mundo darwnista do tráfico.
No caso do cinema, arte de massas, a dura mensagem foi amaciada: Buscapé conseguiu subir na vida como fotógrafo, realizar um final feliz. A mensagem, no fundo, conformista, é a seguinte: mesmo na barbárie, as saídas individuais funcionam (possíveis, é claro, sempre o são). Quem diria... Frank Capra (clássico diretor do cinema americano famoso pela fabulação moral e os finais felizes) no tráfico de drogas da favela... Por isso, o livro de Paulo Lins é melhor que o filme de Fernando Meireles.
Em certo sentido, feito Cidade de Deus, Tropa de Elite também tem, apesar de tudo, um “final feliz”. O Capitão Nascimento consegue fazer o sucessor, o jovem aspirante Matias, que passa no teste de todas as provas animalescas do BOPE (dormir ao relento, comer como um porco, torturar, matar a sangue frio, etc.). O tiro em frente para a câmara, nos últimos instantes da fita, celebra a esta espécie de final feliz, sintetizando todo o séqüito de violências pesadas do filme. Doravante, os expectadores podem dormir sossegados e tranqüilos – o Capitão Nascimento recolher-se-á aos dilemas privados, mas encontrou um sucessor à altura.
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