Tropicalismo

Jaldes Reis de Meneses.
Professor dos Programas de Pós-Graduação em História e Serviço Social (UFPB).
e-mail: jaldesm@uol.com.br.
coluna: http://www.wscom.com.br/


Neste mês de outubro que chega ao término, uma das efemérides comemoradas, junto com a paixão e morte de Che Guevara e a revolução russa, são os quarenta anos do tropicalismo.

Entre o outono e a primavera do recuado ano de 1967, no auditório da Rua da Consolação (SP), quando do terceiro festival da canção da Record, eram classificadas, sob aplausos e vaias, duas canções repletas de inovação em arranjo, instrumentação e atitude, hoje clássicos do cancioneiro brasileiro: “Domingo no Parque” (Gilberto Gil e “Os Mutantes”, segundo lugar) e “Alegria, Alegria” (Caetano Veloso e os Beat Boys, quarto). O primeiro lugar coube a uma canção que, se bem que musicalmente densa, seguia os cânones da MPB da época: a bela toada modal Ponteio (Edu Lobo e Capinam, Marilia Medalha e Momento 4). Guitarras elétricas ou uma suposta tradição? Começava a polêmica do tropicalismo.

Em um tempo de imaginação histórica escassa como o nosso, resta-nos comemorar as datas do passado, e se possível aprender. Marx e Nietzsche, dois grandes poetas, escreveram que os tribunos, no ocaso do processo da revolução francesa, desnorteados, sem saber bem o que fazer nem para onde ir, se vestiam sob a capa protetora de um tribuno romano, enganando a si mesmos. Robespierre e Saint-Just se acreditavam vestidos na túnica de um César moderno. Precisavam do consolo do passado porque não conseguiam arrancar poesia do futuro. Na falta do que fazer (perigosa reminiscência leninista) retome-se, pois, aos “contra-relevos” de Lygia Clark, aos “parangolés” de Hélio Oiticica, ao cinema barroco de Glauber Rocha, à agora teatral de Zé Celso, enfim, há um tempo sem medo de ousar.

Com o tropicalismo, sucedem dois lances interessantes. Primeiro, a comemoração vai durar, em vez de um, dois anos, o atual e o próximo. Já em agosto, houve a abertura de uma exposição no Museu de Arte Moderna (MAM), Rio de Janeiro, comemorativa da obra de Hélio Oiticica, aproveitando os quarenta anos de apresentação da instalação “Tropicália”, um dos divisores de águas da arte brasileira. No próximo ano, acoplado às águas da revolta estudantil de maio/68, seguramente será lembrado o disco-manifesto coletivo (Caetano, Gil, Rogério Drupat, Tom Zé, Nara Leão, Gal Costa, Capinam, Torquato Neto, Os Mutantes), “Panis et Circenses” (nota: reparem no título em latim truncado e provocativo do disco, que faz as vezes do “Sgt. Pepper’s” brasileiro, em plena época da ditadura militar). Datas a mancheia, comemoremos. Em segundo lugar – mais importante –, as pombas das festividades e as instituições envolvidas – Fundação Itaú, Banco do Brasil, Petrobrás etc., as coroas do capitalismo brasileiro –, desvendam que o tropicalismo conseguiu chegar ao pódio do poder cultural. Nada mais ilustrativo que o simbolismo de Gilberto Gil ocupando o cargo de Ministro da Cultura (e, justiça se faça, apesar de problemas, realizando uma boa gestão). Ademais, vale ressaltar que as comemorações extrapolam o território brasileiro, com ressonância internacional: desde alguns anos, artistas e intelectuais como Arto Lindsay, David Byrne e Christopher Dunn, entre outros, buscam fazer uma apreciação contemporânea do tropicalismo, na qual o movimento emerge na qualidade de uma manifestação, até inaugural, do pós-moderno, em vez de ser simplesmente uma curiosidade vinda da periferia do mundo.

Há uma tendência dos que chegam a algum tipo de poder só rememorar as flores, esquecendo as tensões. Em qualquer movimento, muitos tombaram no caminho, muitas expectativas foram frustradas. Movimento, na acepção cultural das vanguardas modernistas, sempre quis dizer geração, amizade, agregação e dispersão. O tropicalismo está longe de constituir um monólito, assemelha mais a uma colagem. De repente, foi produzida uma agregação de gente e realizações artísticas vindas das mais diversas origens, que, quem sabe, em outras circunstâncias não dessem vetor. Por exemplo, Hélio Oiticica vinha do grupo neoconcreto carioca e Glauber Rocha do cinema novo. Produziam com independência do núcleo central do tropicalismo. Talvez faça sentido, por isso, comemorar vários tropicalismos. Coube sem dúvida às antenas de Caetano Veloso fazer a colagem, dar o conceito. Dessa maneira, embora o núcleo duro, digamos assim, do tropicalismo esteja na música popular, a sua importância extrapola o terreno musical.

Recordo de uma página de um depoimento literário do poeta Raul Bopp (Vida e Morte da Antropofagia), de que gosto muito, a propósito da diáspora política do primeiro modernismo brasileiro: durante o Estado Novo, amigos chegaram ao poder e outros comeram o pão que o diabo amassou, enxotados do coro dos contentes. Bopp afirma em nota cheia de graça: os membros do movimento antropofágico, os que aderiram ao Partido Comunista, ou a um e a outro (Oswald de Andrade e Pagú, por exemplo), as duas alternativas mais radicais do processo, mais que enxotados, foram literalmente caçados. Amargaram o ostracismo, a prisão e a tortura. Por isso, figuras participantes de um tropicalismo de primeira hora, como o diretor teatral José Celso Martinez Correia – encenou o Rei da vela (Oswald de Andrade) e depois Roda viva (Chico Buarque) no verão tropicalista –, em tom provocativo, vem falando, nos debates comemorativos, de uma mutação no DNA do tropicalismo. Passamos a conhecer o momento de assombração de um “tropicapitalismo”, e as comemorações atuais funcionam como índice da perda do antigo teor subversivo. Sem concordar totalmente com a provocação de Zé Celso, contudo, ela é criativa, ajuda a pensar e a tirar as comemorações do tropicalismo do solo de uma retórica reiterativa. Provocar, muitas vezes, constitui uma forma de desacatar o senso comum.

Uma dentre muitas perguntas a se fazer em um debate sério sobre o tropicalismo em artes deve ser a seguinte: Quais foram seus pontos cegos e porque despertou a ira de tanta gente? Qual tipo de tara persecutória despertou em seus inimigos (e foram muitos!)?

Tive o prazer de escrever recentemente um sucinto parecer de concessão do título de Professor Emérito na UFPB a Jomard Muniz de Brito – uma das figuras históricas do tropicalismo nordestino, a exemplo de Carlos Aranha, aqui na Paraíba –, no qual, entremeado numa descrição do trajeto intelectual de Jomard, começo a pensar o fio da meada de elucidação dessas perguntas. Em certo sentido, elas foram enunciadas, todavia não desenvolvidas por Caetano Veloso, no livro "Verdade Tropical".

O compositor baiano indaga porque os militares eram tão inimigos da tropicália e porque um capitão diz a ele, preso e próximo a uma câmara de tortura (Caetano sofreu tortura psicológica, mas não física no cárcere), que o tropicalismo era tão ou mais subversivo do que a esquerda armada. Delírio do capitão? Penso que não. Depois de citar o episódio do capitão no livro, o próprio Caetano afirma que, embora se aproveitando dos espaços da cultura de massas, o tropicalismo ao mesmo tempo flertava com uma ultra-esquerda política e principalmente filosófica. O tropicalismo, neste sentido, tinha uma ambigüidade. Objetivamente, estabelecia ligas em duas vertentes (a cultura de massas e a ultra-esquerda), tanto que, digamos assim, o pessoal da vertente do tropicalismo paraibano – talvez em um caso de politização mais explícita –, nutria simpatias pelo PCBR.

Ainda mais: no palco da cultura de massas, o tropicalismo era provocação em cena aberta: afinal, não é fácil, nem digestivo, divulgar frases como "seja marginal, seja herói", de Hélio Oiticica, ou simular um suicídio em pleno programa dominical de TV, a exemplo de Caetano Veloso, na extinta Rede Tupi.

Para mim, o motivo central de preocupação dos militares com os tropicalistas não foi a tentativa de desmonte do realismo estético do nacional-popular, que tinha guarida política no PCB, PCdoB e AP. Esse debate tinha a cifra de polêmica interna. Na verdade, o tropicalismo foi uma espécie de explosão dionisíaca, compondo o mesmo caudal com os movimentos culturais mais radicais dos anos 60. Concordo plenamente com o Maestro Júlio Medaglia, em artigo recente, publicado em a Folha de S. Paulo (28/11), quando afirma que o tropicalismo foi mais um fenômeno de “linguagem” que de “língua”. Qual o significado disso? Embora se abstenha de citar, é evidente que Medaglia tem em mente uma série de referências do debate de 1968, entre as quais a distinção efetuada por Jacques Derrida no livro Gramatologia (1967). O filósofo francês alude a duas estruturas de linguagem: uma exterior, formal, com base na fala, no consciente, e outra interior, poética, com base no inconsciente.

Pois bem, o tropicalismo significou a tradução em arte da dobra de linguagem mencionada por Derrida na filosofia, quando tenta desentranhar o chamado “plano poético” da linguagem. Por isso, o renitente recurso tropicalista a linguagem da alegoria, em Glauber, em Caetano, em Zé Celso. Aliás, Antonio Risério (antropólogo baiano) e Gilberto Gil parecem ter plena consciência dessa questão, ao lançar, nos idos da década de oitenta, um livro, nem sempre bem realizado, sintomaticamente intitulado “O poético e o político”. A passagem a uma linguagem alegórica em política tem revelado um problema de fundo: embora tenhamos, de quando em quando, explosões do “poético” no “político” (Maio/68 na França foi um exemplo), a primavera logo passa... Desde a vigência do barroco pós-renascentista (século XVI), para além da poética, o recurso á alegoria pode ser substrato de poder e domínio, embora, no caso de alguns “tropicapitalismos” (o neologismo de Zé Celso é ótimo), despido de gravata, paletó e “caretice”. O mundo é complicado.

Passada a explosão primaveril, mudaram os tropicalistas. Alguns morreram cedo (Torquato Neto) e outros viraram ídolos da cultura de massas de gerações passadas, sobreviventes. Caetano Veloso e Gilberto Gil abandonaram o brinquedo de fogo, mas, talentosos, fizeram, antes e depois da agregação tropicalista, obras fundamentais do cancioneiro brasileiro.

Porém, de vez em quando, em lampejos, o fogo volta a atiçar...

ADEILDO VIEIRA E LAU SIQUEIRA


Dois eventos culturais merecem ser prestigiados em João Pessoa na próxima semana: o show do compositor Adeildo Vieira no Teatro Santa Rosa (06/11) e o lançamento do livro do poeta Lau Siqueira, “Texto Sentido” (08/11), no Paraíba Café.

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