A Greve Francesa
Jaldes Reis de Meneses.
Professor dos Programas de Pós-Graduação de História e Serviço Social (UFPB).
e-mail: jaldesm@uol.com.br
Paris, maio/1968, Paris, novembro/2007, tão perto, tão longe.
No movimento do século passado, tínhamos a circunstância da irrupção de surpresa de um protesto juvenil, nascido nas Universidades, que se espalhou como um barril de pólvora para muito próximo de uma classe operária fabril compacta, massiva e sindicalizada. Mais ainda: a aliança entre operários e estudantes estava acompanhada de um audacioso projeto de emancipação social e humana – a imaginação histórica estava funcionando a pleno vapor –, no qual os intelectuais tiveram um papel de destaque, sem comparação em nenhum movimento político recente, na Europa ocidental.
Não devemos fantasiar 1968, até porque tínhamos a outra face da moeda, afinal vitoriosa. Do ponto de vista político, rememorando as melhores tradições bonapartistas francesas, tivemos a atuação do General de Gaulle, que sabia ser fundamental que o aparelho de Estado e as elites agissem sob um comando único (o seu) durante a crise, sem apresentar sequer nesgas de dissidências. Todos deram carta branca ao comando unipessoal do general, que agiu em dois flancos: não pestanejou no uso dos instrumentos constitucionais de exceção ao seu dispor; porém, a dissuasão aos movimentos de rua foi dura, mas a repressão policial seguinte relativamente branda, poucas pessoas foram presas e ninguém condenado – “não se pode prender Sartre, não se pode prender Voltaire” disse o general em plena crise, uma frase de efeito que denota uma estratégia. Resultado: o movimento deixou poucas cicatrizes (é lembrado até com bom humor e saudosismo), e algumas bandeiras do movimento foram sendo paulatinamente absorvidas pelo establishment – ao menos em sua dinâmica cultural e comportamental –, contíguo com boa parte das lideranças estudantil e os intelectuais, perfeitamente integradas ao sistema.
Nicolas Sarkozy, presidente recém eleito, estava ao lado do Estado e contra as barricadas do desejo em 1968, ao menos não mudou de lado. Mas a greve atual, ao contrário da irrupção de surpresa do passado, que paralisa os transportes públicos, as escolas, os hospitais, a Ópera de Paris, enfim, a maioria dos serviços estatais, era uma queda de braço anunciada desde a campanha eleitoral. Sarkozy trabalha com o tempo. Sabe que depois de um ápice, em algum momento, a greve dos servidores públicos vai arrefecer. Talvez negocie algumas reivindicações secundárias dos grevistas, sem abrir mão do essencial: o aumento no tempo de aposentadoria dos servidores públicos. Esta, a cláusula pétrea, o elemento da negociação que significará a vitória ou a derrota de uma das partes em litígio, o novo governo ou os sindicatos.
Em começo de governo, o simbolismo de derrotar a forte estruturação dos sindicatos públicos, uma cabeça ceifada a ser exibida ao mundo dos negócios, e aos consortes chefes de Estado da União Européia, dos Estados Unidos (George W. Bush, o novo aliado – quem diria?, em se tratando de um político de origem gaullista), é muita coisa. Sarkozy visa aparecer como uma espécie de durão, uma Thatcher de gravata e paletó – inclusive na relação um tanto truculenta com a mídia.
Embora pareça que a greve tenha força interna, a situação objetiva dos sindicatos é de defensiva. É muito difícil, hoje, explicar aos usuários dos serviços públicos, prejudicados diretos com a greve, que a manutenção dos modestos privilégios de uma corporação, em geral qualificada, como os médicos, professores universitários ou encenadores da ópera de Paris, devem contar com o seu apoio. A população tende a não se reconhecer no espelho dos interesses específicos do funcionalismo dos serviços públicos. Nada mais distante deste conflito entre os interesses imediatos, dos usuários, e particulares, dos servidores públicos, que os cenários de 1968. Perversamente, hoje, se há uma instância que exprime de fato interesses políticos com capacidade hegemônica, na contenda de curto e médio prazo, esta instância vem a ser a proposta estatal de Sarkozy. Favor não confundir esta capacidade em ditar, momentaneamente que seja, as regras do jogo com interesse em praticar os valores da justiça social ou da igualdade, ao contrário. O discurso de alcançar a igualdade e a justiça nivelando por baixo somente revela demagogia e cinismo, instrumentos de trabalho do maquiavelismo de fancaria, empregados com abuso na política contemporânea, aqui e alhures.
No acontecimento francês, o interesse estratégico de Sarkozy é destravar as relações sociais do setor público no sentido de elevar o coeficiente da acumulação de capital. Neste sentido, como se diz no jargão corrente, pretende-se, através de redução de custos sociais, diminuir o tamanho do Estado de Bem-Estar Social, contudo, em detrimento das políticas sociais de corte universalistas, uma esfera na qual a excelência francesa é exemplo civilizatório para o mundo. Sequer se pretende o aumento da produtividade, o aumento da mais-valia absoluta ou relativa, conquanto obviamente a lucratividade privada tenda, certamente, a aumentar com a eventual vitória do governo francês. Lucratividade elevada, produtividade estacionada. Caso o alvo imediato fosse mesmo a produtividade – distinto da esfera reprodutiva dos serviços sociais –, o presidente francês estaria, por exemplo, mexendo na jornada de trabalho privada, que na França é de 36 horas, desde os tempos do mandato do ex Primeiro Ministro Lionel Jospin (1997-2002). De maneira esperta, Sarkozy começa seu projeto pelo mais fácil: satanizando os privilégios relativos do funcionalismo público. Depois, deve partir para mostrar seus dentes aos trabalhadores do setor privado. Como Jack, o Extirpador, o bom político (boçal) age por partes.
Embora aos servidores públicos franceses e suas organizações sindicais somente reste à resistência imediata (é correto resistir), trata-se de um movimento sem sonho, com imaginação histórica em déficit. Nada se quer de mais, somente garantir o que se tem. Por outro lado, nas margens, na periferia de Paris, encontramos os primeiros adversários encarniçados de Sarkozy em fogo brando: os imigrantes das antigas colônias, os islâmicos do Magreb e os negros do Saara Ocidental, somente integrados à sociedade francesa pelo futebol de Zidane e Thierry Henry. No mais, inteiramente distantes da vida do Sena. Outro mundo – nômade – se refletirmos o cotidiano – sedentário – dos servidores públicos, para usar o binômio de Giles Deleuze. A política do nosso tempo é assim: resistências de mundos incomunicáveis por todos os lados. Até quando?
Jaldes Reis de Meneses.
Professor dos Programas de Pós-Graduação de História e Serviço Social (UFPB).
e-mail: jaldesm@uol.com.br
Paris, maio/1968, Paris, novembro/2007, tão perto, tão longe.
No movimento do século passado, tínhamos a circunstância da irrupção de surpresa de um protesto juvenil, nascido nas Universidades, que se espalhou como um barril de pólvora para muito próximo de uma classe operária fabril compacta, massiva e sindicalizada. Mais ainda: a aliança entre operários e estudantes estava acompanhada de um audacioso projeto de emancipação social e humana – a imaginação histórica estava funcionando a pleno vapor –, no qual os intelectuais tiveram um papel de destaque, sem comparação em nenhum movimento político recente, na Europa ocidental.
Não devemos fantasiar 1968, até porque tínhamos a outra face da moeda, afinal vitoriosa. Do ponto de vista político, rememorando as melhores tradições bonapartistas francesas, tivemos a atuação do General de Gaulle, que sabia ser fundamental que o aparelho de Estado e as elites agissem sob um comando único (o seu) durante a crise, sem apresentar sequer nesgas de dissidências. Todos deram carta branca ao comando unipessoal do general, que agiu em dois flancos: não pestanejou no uso dos instrumentos constitucionais de exceção ao seu dispor; porém, a dissuasão aos movimentos de rua foi dura, mas a repressão policial seguinte relativamente branda, poucas pessoas foram presas e ninguém condenado – “não se pode prender Sartre, não se pode prender Voltaire” disse o general em plena crise, uma frase de efeito que denota uma estratégia. Resultado: o movimento deixou poucas cicatrizes (é lembrado até com bom humor e saudosismo), e algumas bandeiras do movimento foram sendo paulatinamente absorvidas pelo establishment – ao menos em sua dinâmica cultural e comportamental –, contíguo com boa parte das lideranças estudantil e os intelectuais, perfeitamente integradas ao sistema.
Nicolas Sarkozy, presidente recém eleito, estava ao lado do Estado e contra as barricadas do desejo em 1968, ao menos não mudou de lado. Mas a greve atual, ao contrário da irrupção de surpresa do passado, que paralisa os transportes públicos, as escolas, os hospitais, a Ópera de Paris, enfim, a maioria dos serviços estatais, era uma queda de braço anunciada desde a campanha eleitoral. Sarkozy trabalha com o tempo. Sabe que depois de um ápice, em algum momento, a greve dos servidores públicos vai arrefecer. Talvez negocie algumas reivindicações secundárias dos grevistas, sem abrir mão do essencial: o aumento no tempo de aposentadoria dos servidores públicos. Esta, a cláusula pétrea, o elemento da negociação que significará a vitória ou a derrota de uma das partes em litígio, o novo governo ou os sindicatos.
Em começo de governo, o simbolismo de derrotar a forte estruturação dos sindicatos públicos, uma cabeça ceifada a ser exibida ao mundo dos negócios, e aos consortes chefes de Estado da União Européia, dos Estados Unidos (George W. Bush, o novo aliado – quem diria?, em se tratando de um político de origem gaullista), é muita coisa. Sarkozy visa aparecer como uma espécie de durão, uma Thatcher de gravata e paletó – inclusive na relação um tanto truculenta com a mídia.
Embora pareça que a greve tenha força interna, a situação objetiva dos sindicatos é de defensiva. É muito difícil, hoje, explicar aos usuários dos serviços públicos, prejudicados diretos com a greve, que a manutenção dos modestos privilégios de uma corporação, em geral qualificada, como os médicos, professores universitários ou encenadores da ópera de Paris, devem contar com o seu apoio. A população tende a não se reconhecer no espelho dos interesses específicos do funcionalismo dos serviços públicos. Nada mais distante deste conflito entre os interesses imediatos, dos usuários, e particulares, dos servidores públicos, que os cenários de 1968. Perversamente, hoje, se há uma instância que exprime de fato interesses políticos com capacidade hegemônica, na contenda de curto e médio prazo, esta instância vem a ser a proposta estatal de Sarkozy. Favor não confundir esta capacidade em ditar, momentaneamente que seja, as regras do jogo com interesse em praticar os valores da justiça social ou da igualdade, ao contrário. O discurso de alcançar a igualdade e a justiça nivelando por baixo somente revela demagogia e cinismo, instrumentos de trabalho do maquiavelismo de fancaria, empregados com abuso na política contemporânea, aqui e alhures.
No acontecimento francês, o interesse estratégico de Sarkozy é destravar as relações sociais do setor público no sentido de elevar o coeficiente da acumulação de capital. Neste sentido, como se diz no jargão corrente, pretende-se, através de redução de custos sociais, diminuir o tamanho do Estado de Bem-Estar Social, contudo, em detrimento das políticas sociais de corte universalistas, uma esfera na qual a excelência francesa é exemplo civilizatório para o mundo. Sequer se pretende o aumento da produtividade, o aumento da mais-valia absoluta ou relativa, conquanto obviamente a lucratividade privada tenda, certamente, a aumentar com a eventual vitória do governo francês. Lucratividade elevada, produtividade estacionada. Caso o alvo imediato fosse mesmo a produtividade – distinto da esfera reprodutiva dos serviços sociais –, o presidente francês estaria, por exemplo, mexendo na jornada de trabalho privada, que na França é de 36 horas, desde os tempos do mandato do ex Primeiro Ministro Lionel Jospin (1997-2002). De maneira esperta, Sarkozy começa seu projeto pelo mais fácil: satanizando os privilégios relativos do funcionalismo público. Depois, deve partir para mostrar seus dentes aos trabalhadores do setor privado. Como Jack, o Extirpador, o bom político (boçal) age por partes.
Embora aos servidores públicos franceses e suas organizações sindicais somente reste à resistência imediata (é correto resistir), trata-se de um movimento sem sonho, com imaginação histórica em déficit. Nada se quer de mais, somente garantir o que se tem. Por outro lado, nas margens, na periferia de Paris, encontramos os primeiros adversários encarniçados de Sarkozy em fogo brando: os imigrantes das antigas colônias, os islâmicos do Magreb e os negros do Saara Ocidental, somente integrados à sociedade francesa pelo futebol de Zidane e Thierry Henry. No mais, inteiramente distantes da vida do Sena. Outro mundo – nômade – se refletirmos o cotidiano – sedentário – dos servidores públicos, para usar o binômio de Giles Deleuze. A política do nosso tempo é assim: resistências de mundos incomunicáveis por todos os lados. Até quando?
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