Anjo azul, o bloco iconográfico da diversidade

Temos, na Paraíba, a vocação e a volição das ruínas, da destruição criativa e da criação destrutiva, no que somos, desde sempre, do passado colonial até hoje, absolutamente modernos. Os monumentos históricos que melhor nos definem passam pela construção e destruição, sucedidos por uma nova construção, de A União à Assembléia Legislativa, na Praça João Pessoa, da Rádio Tabajara ao "novo" conforto do Fórum da Justiça, na Rodrigues de Aquino. Matamos simbolicamente os velhos jornalistas de A União e os cantores do rádio. O altar-mor da Igreja São Francisco - destruído sem dó no começo do século passado -, é apenas um retrato na parede e a Casa de Engenho de Zé Lins serve de morada ao capim dos vermes.

Gostamos de extrair o lado bom das coisas ruins: Darcy Ribeiro afirmava, no belo livro O povo brasileiro, que somos um povo tabula rasa, ou seja, explicando melhor, os escaninhos da tradição brasileira são essencialmente abertos, de antena ligada às novidades do mundo, que assimilamos à nossa maneira, antropofágica. Passamos distante de qualquer ancestralidade cultural rígida, de qualquer narrativa mitológica impermeável. Por isso, o anauê de Plínio Salgado não deu certo, e o integralismo acabou virando uma piada de mau gosto (ou mau agouro?). Nascemos sem as pistas certas do que achar no caminho, por isso vamos procurando, acertando e muitas vezes errando. Amar só se aprende amando.

Por outro lado, retóricos, adoramos as falsas polêmicas. Agora, em 2008, há um novo debate circulando no ar sobre o carnaval: se a contribuição rítmica do carnaval paraibano ao mundo vem a ser o frevo, o samba, o axé ou a marchinha. Trata-se de uma falsa questão – até o tecno pode compor o carnaval paraibano.


No caso específico da antiga província da Paraíba do Norte, o carnaval, antes de musical, é uma manifestação cultural iconográfica e aberta à diversidade. Aristóteles, como sabemos, desentranhou o conceito estético de mimesis (ação de imitar) do teatro grego, contudo o que estava oculto no conceito de tragédia era a pulsão primitiva do ancestral humano que representava na pedra os elementos da natureza, principalmente os animais, visando à boa caça. Antes do verbo, no começo era a imagem e o som.

Glória eterna a Jackson do Pandeiro, Sivuca, Maestro Severino Araújo, Maestro Moacir Santos, Chico César, Fuba e Escurinho, mas onde estão os cenógrafos, os pintores, os arquitetos, os decoradores e os estilistas de moda do carnaval paraibano? Onde os artistas plásticos para amalgamar o barroco ao brega – irmãos no exagero, porém distintos na ilusão de absoluto do primeiro e na saudável ignorância do segundo.

Barroco e brega: o puro espírito santo do carnaval. Desenterremos as alegorias de nossas ruínas, façamos as mais estranhas misturas, mas sempre conservando algo da monumentalidade intrínseca ao espírito barroco, no salão, na avenida e na praça da capital dos tabajaras. Aprendamos com as escolas de samba do Rio de Janeiro. Nosso carnaval é sacro como a contemplação da maravilhosa nave, do adro, do cruzeiro, das portas e dos azulejos lusitanos da Igreja de São Francisco (a ocasião em que mesmo quem não acredita se sente perto de Deus na fruição da transcendência e do absoluto).

Carnaval, conceito arquitetônico, escultural, pictórico e paisagístico. O carnaval de Veneza é pura arquitetura e iconografia. A vocação do carnaval paraibano, advindo da melhor tradição veneziana, em primeiro lugar, é precisamente esta: a arquitetura e a socialidade do barroco. As máscaras, as fendas, as frestas e as festas do barroco. Uma falange de máscaras. O “Cafucú”, portanto, está coberto de razão histórica, talvez às cegas. Estamos condenados por enquanto ao barroco, somos barrocos quando nos aventuramos à modernidade e mesmo ao pós-moderno Somos barrocos, de maneira especial, quando fazemos política – o eterno e renitente cotejo de sacralização da corte, acompanhado do inevitável séqüito de tramas, conciábulos e poetas proscritos. O príncipe Hamlet vive entre nós, renitente, num misto alegre e soturno, a descer as ladeiras do centro histórico, ao ritmo de Vassourinhas, nos bailes de máscaras os quais algumas pessoas já me contaram ter divisado, noite adentro, o corvo de Poe e albatroz de Baudelaire, devidamente traduzidos nos sonetos de Augusto dos Anjos, mas ao mesmo tempo nos motes do absurdo de Zé Limeira.

Triste Paraíba, ó quão dessemelhante. Do antigo estado a máquina mercante, do rio de nome sonoro – Sanhauá – ao gemido dos escravos nas senzalas próximas aos conventos coloniais. Brindemos aos escravos das senzalas no carnaval, pois deles importamos o núcleo principal de nossa alegria. Alegria e trabalho, juntos. Já dizia o poeta maior, Vinicius de Moraes, um paraibano da gema, no magnífico Samba da benção: “o samba é a tristeza que balança”. Aduziria: também o maracatu e o caboclinho são tristezas que balançam.

A entidade metafísica que abre as prévias do carnaval paraibano, dia 25 de janeiro (sexta-feira), é o bloco “Anjo Azul”. O Anjo Azul foi fundado e todo ano é organizado com garra por uma agitadora cultural guerreira, muito querida na cidade, Ednamay Cirilo. May inventou de criar um bloco que tem sede em um ambiente histórico repleto de simbolismos, a antiga zona do chamado “baixo meretrício”, nos tempos em isso que havia: o Beco da Faculdade de Direito, na ladeira do Padre Gabriel Malagrida, um herói sacrificado numa das visitações da Inquisição do Santo Ofício ao Brasil. O espírito do padre Malagrida, que assiste impávido os dramas e comédias da cidade por séculos sem fim naquele ambiente, fez um ar de sorriso quando foi fundado o Anjo Azul, e certamente, ato contínuo, abençoou o bloco, pois o padre italiano do século XVIII, morto feito mártir, é ele mesmo um anjo verdadeiro, um querubim barroco.

O Anjo Azul é o bloco multicolor da diversidade cultural e da democracia, de todas as opções sexuais e todos os credos políticos. O nome de bloco presta uma inusitada homenagem ao filme expressionista alemão da década de 1930 – Der Blaue Engel –, adaptação do romance de Heinrich Mann (irmão de Thomas Mann) – os dois filhos ilustres da brasileira Julia Mann, nascida deitada sob o sol da arquitetura colonial de Parati (RJ) –, sobre a história de um professor que se apaixona por uma dançarina de cabaré. Mais além de um clima soturno – prenúncio da tragédia de ascensão da ditadua nazista que se daria logo em seguida, em 1933 –, o filme ficou gravado na memória principalmente por uma seqüência de fotogramas sensuais, logo transformados em um dos ícones da cultura pop contemporânea: as pernas dobradas de Marlene Dietrich, sentada num banquinho. Ah, as pernas de Marlene Dietrich: conspícua, carnuda, provocante, lúbrica, fazendo a perfeita simbiose com um rosto libidinoso, manchado a um batom da cor do pecado. Hitler não agüentou tanto charme. Assim como Malagrida foi perseguido pela inquisição, Marlene Dietrich nunca se dobrou ao nazismo e fugiu da Alemanha, se refugiando nos Estados Unidos. Dessa maneira, vão se tecendo os fios entre fatos aparentemente distantes, desvendando articulações de onde menos se espera, o conceito é transformado em imagens aparentemente aleatórias, mas dotadas de uma mensagem profunda: Malagrida, Marlene, May. Tudo a ver. (Jaldes Reis de Meneses).

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