Coisas Nossas

Raramente publico material alheio neste blog. Nenhum dogma, tudo aleatório, decidido no calor da hora. Pelo que lembro, publiquei um poema de Bandeira, uma canção de Adriana Calcanhoto e Antonio Cicero, um poema de Jaiel de Assis. Na pequena análise de conjuntura (o post de ontem) cito uma irônica letra de Noel Rosa, "Coisas Nossas". Na maioria das vezes, letra de música perde dissociada da melodia. Novamente, o fenômeno é repetido. Mesmo assim, a crítica social de Noel tem a leveza de uma pena, a ironia, sei lá, de um Swift. Cabe a analogia, que me passou na cabeça agora? Acredito que sim, pois corre nas veias de Noel a crueza do satirista inglês. Ao mesmo tempo, há o Noel lírico, o amante de Cici, tão talentoso quanto o sátiro. A propósito: a sátira noelina, embora seja vista como um clássico destoa completamente do politicamente correto vigente, da discussão sobre as cotas sociais, da noção do samba como coisa exclusiva de negro ou de pessoas nascidas no morro (este é o pano de fundo, aliás, da famosa polêmica musical entre Noel e Wilson Batista, o estudante de medicina branco e o negro do morro, mostrado no filme). A ironia de Noel, portanto, é extemporânea, por isso cada vez mais atual? Pena, o filme Noel (Ricardo Van Steen), que assisti semana passada, não estar à altura da riqueza do personagem, a matéria prima é de primeira, tão de primeira que poderia até gerar um grande drama: a história social do samba. Poderia, ainda pode. “Noel” é um filme curioso, no qual os personagens entram e saem à vontade, aparecem e desaparecem da tela sem grande explicação. O filme "Madame Satã" (Karim Aïnouz), que trata de acontecimentos na mesma época e lugar do cenário de "Noel" (os cabarés da Lapa e Vila Isabel) é muito superior; nele, vemos sem retoques e com crueza a vida da malandragem, o preconceito contra o negro e o homossexual, a revolta cega e sem projeto dos que estão no fundo do posso social. Madame Satã, malandro bandido, travesti, durou muito tempo, amargou cadeia, virou uma lenda; se fosse hoje, teria uma vida breve, ceifado nas lutas do tráfico ou no ritmo de uma pedra de crack. A malandragem, o romantismo de sua dialética, na questionável análise de Antonio Cândido (noutra data, por demorado, trato do assunto), caso tenha havido mesmo um dia, hoje é inviável (ou ao menos datada), entre outras coisas pelo curto prazo de validade. O malandro morreu, mas o samba continua, assumindo novos ethos, desde os novos jovens da Lapa, aos estudiosos do Japão. Nada demais: o protestantismo barroco de Bach desapareceu como socialidade, mas o contraponto e o cravo temperado encontraram outros suportes. Estamos a aguardar, ainda, o grande escritor e o grande cineasta da história do samba (o escritor da saga de Ismael Silva e de Cartola, por exemplo), mais ou menos como José Lins do Rego foi o grande narrador da decadência dos engenhos de açúcar. Em breve aparecerá o escritor e o cineasta do samba. Quem? (Jaldes Reis de Meneses).

São coisas Nossas

(Noel Rosa - 1932)

Queria ser pandeiro
Pra sentir o dia inteiro
A tua mão na minha pele a batucar...
Saudade do violão e da palhoça...
Coisa nossa...
coisa nossa...

O samba, a prontidão
E outras bossas
São coisas nossas...
São coisas nossas...
Menina que namora na esquina
E no portão
Rapaz casado com dez filhos
Sem tostão
Se o pai descobre o truque
Dá uma coça
Coisa nossa...
coisa nossa...
O samba, a prontidão
E outras bossas
São coisas nossas...

São coisas nossas...
Baleiro, jornaleiro, motorneiro
Condutor e passageiro
Prestamista e vigarista...
E o bonde que parece uma carroça
Coisa nossa... muito nossa
O samba, a prontidão
E outras bossas
São coisas nossas...
São coisas nossas...

Malandro que não bebe
Que não come
Que não abandona o samba
Pois o samba mata a fome
Morena bem bonita lá da roça
Coisa nossa... coisa nossa...
O samba, a prontidão
E outras bossas
São coisas nossas...
São coisas nossas...

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