O catatau a seguir, desproporcional em um blog, constitui um artigo escrito em jargão acadêmico, publicado na revista Serviço Social & Sociedade (número 80, 2004), talvez um pouco massudo, e espero não-chato, sobre dois pensadores fundamentais, Gramsci e Tocqueville, o comunista italiano e o aristocrata francês. Dois finos estilistas. A ênfase reside no conceito de revolução passiva, de Gramsci, mas reponho o artigo aqui nem por isso, mas pela discussão do conceito de sociedade civil, tanto em Gramsci como em Tocqueville. Uma mera tertúlia conceitual? Creio que não, pois, ma formulação de seus conceitos, tanto Gramsci como Tocqueville tinham as vistas voltadas tanto para o processo europeu como para a sociedade norte-americana. Tocqueville, por exemplo, concebia o vigor da sociedade civil norte-americana como se fosse uma tradução, no tempo da modernidade, dos valores altruísmo da melhor aristocracia feudal européia. Mas, como? Aristocracia e moderna sociedade civil? Leiam o artigo para entender. No momento em que ressurge, em toda riqueza, o conflito político nos Estados Unidos, sempre é importante conhecer Gramsci e Tocqueville. (Jaldes Reis de Meneses)
ENTRE GRAMSCI E TOCQUEVILLE
Jaldes Reis de Meneses
Professor do Programa de Pós-Graduação em História (UFPB)
1. Introdução: apontamentos sobre o conceito de revolução passiva
Onde e como Gramsci teve a inspiração do conceito de revolução passiva? No labor intelectual no cárcere em que foi confinado pelo fascismo até morrer (1926/1937), Gramsci se apropriou e deu um novo conteúdo à expressão "revolução passiva", do historiador italiano Vicenzo Cuoco, vendo na mesma uma tradução - para usar um termo caro a Gramsci (1999 CC11V1: 185-90) -, com antecipação no tempo, do conceito de revolução-restauração, da lavra do historiador francês Edgard Quinet [1]. Gramsci não tinha em mãos as obras de Cuoco nem Quinet, mas tomou contacto com a problemática através de um livro de Croce - La rivoluzione napoletana del 1799 -, onde é comentado o conceito de revolução passiva.
Os que conhecem a história da formação do moderno Estado Nacional italiano, no século XIX, sabem que Cuoco foi um publicista da ala radical da pequena burguesia e partícipe ativo da chamada Revolução Napolitana de 1799, sobre a qual escreveu a obra comentada por Croce, intitulada Saggio storico sulla Rivoluzione Napoletana. Na obra de Cuoco, a propósito da análise do fracasso da Revolução Napolitana, encontramos o discernimento do conteúdo histórico da revolução burguesa em países de formação nacional retardatária, como a Itália moderna.
O que foi e por que fracassou a Revolução Napolitana (ou Partenopéia)? Só podemos entender o fracasso do processo de revolução, nessa província da Itália meridional, no rastilho dos acontecimentos da Revolução Francesa e das campanhas militares napoleônicas. Em 1798, a burguesia radical napolitana, com base no apoio militar das tropas de ocupação francesa, derrubou o rei Ferdinando I, da dinastia dos Bourbons e de Castela, proclamando um regime republicano. Porém, a República Napolitana teve vida efêmera.
De alguma maneira semelhante à ocupação das tropas soviéticas na Europa Oriental, no desfecho da Segunda Guerra Mundial, a força progressista mais parecia uma força de ocupação, desprovida de simbiose popular. Tais são as raízes mais remotas do conceito de revolução passiva: a política de expansão militar napoleônica, levando, a ferro e fogo, “na lei ou na marra”, mesmo com tênues alianças internas junto às populações dos territórios ocupados, a idéia e as instituições da Revolução Burguesa.
No observatório do cárcere, escreve Gramsci (1999 CC10V1: 291-2) a propósito da saga história da revolução burguesa italiana: “[...] Deve-se ver como a fórmula crítica de Vincenzo Cuoco sobre as ‘revoluções passivas’ - que, quando foi formulada (após a trágica experiência da República Partenopéia de 1799), tinha um valor de advertência e deveria criar uma moral nacional de maior energia e de iniciativa revolucionária popular -, converteu-se, através do cérebro e do pânico social dos [...] moderados, numa concepção positiva, num programa político e numa moral que, por trás dos rutilantes ouropéis retóricos e nacionalistas [...], escondia a inquietação do ‘aprendiz de feiticeiro’ e a intenção de abdicar e capitular diante da primeira ameaça séria de uma revolução italiana profundamente popular, isto é, profundamente nacional.”
Revolução passiva, portanto, no pensamento dos ilustrados conservadores, era programa político, enquanto para Gramsci - e também Cuoco - era um critério de interpretação histórica, visando advertir e instruir as forças populares de todas as opções estratégicas e táticas possíveis no curso das revoluções burguesas.
No caso da elaboração do conceito de revolução passiva, Gramsci pode ser considerado um brilhante legatário do método de análise política in nuce de acontecimentos históricos instaurado por Marx - análise de conjuntura com base no conceito de luta de classes e das relações de força entre elas -, nas obras-primas teóricas e literárias que são seus três livros sobre a história da França - A luta de classes na França; O 18 Brumário de Luís Bonaparte; A Guerra Civil na França (Marx, sd.). Gramsci não imitou simplesmente o Marx historiador e seu método de análise política: foi além do estudo de episódios históricos situados numa linha curta do tempo - as revoluções de 1848, o golpe de Luís Bonaparte, a Comuna de Paris (os temas de Marx) -, contribuindo indelevelmente para o desenvolvimento do que chamava filosofia da práxis (a tradição marxista).
Da analítica das relações de força de Marx, temos a renovada analítica de Gramsci, não mais restrita somente à interpretação dos acontecimentos in nuce, mas projetada numa duração mais longa.
Abordar a complexa problemática histórica condensada no binômio revolução-restauração (ou na expressão “revolução passiva”) significa encarar, sob uma perspectiva de longa duração, o desafio teórico-prático lançado pelo pensamento liberal-conservador sobre o verdadeiro conteúdo histórico da obra societária das revoluções, pensamento no qual sobressaem autores da estirpe argumentativa de um Burke (1997) e um Tocqueville (1989). Temos aqui, talvez, o principal mérito do pensamento político gramsciano: ele não só foi atento aos argumentos do pensamento liberal-conservador, como promoveu, através do conceito de revolução passiva, um desmonte por dentro dos argumentos políticos, históricos e ideológicos dessa corrente de pensamento, em démarche, ao que sabemos, sem parelha até hoje no âmbito da tradição marxista.
2. Quinet e Michelet: a decepção com os resultados das revoluções burguesas
Visando escavar as raízes historiográficas da démarche gramsciana de revolução passiva, comecemos tematizando Quinet, referência textual, embora na qualidade de fonte indireta, de Gramsci. No entender de um autor brasileiro que sempre merece atenção pela inteligência e erudição, Merquior (1991: 129), a obra de Quinet foi “o mais sério trabalho historiográfico daqueles anos (além de O antigo Regime e a Revolução de Tocqueville)”. Confirmamos o veredicto de Merquior, mas, rigorosamente, Quinet não tinha um projeto político claro - o que sobrava, como veremos, em Tocqueville.
Ao elaborar o binômio revolução-restauração, Quinet situava-se nos antípodas do liberal-conservadorismo, nem poderia ser diferente para um historiador que fora um discípulo militante e republicano de Michelet (genial historiador-escritor nacionalista e democrático francês). Quinet escreveu no exílio inglês, em 1865 (começo da fase “parlamentar” do regime bonapartista de Napoleão III), um livro intitulado La révolution (2000), dedicado ao balanço desenganado de quase um século de processo da revolução francesa. Como oposição ao sobrinho de Napoleão, transformado em imperador pelas artes da farsa - visto, tanto por Quinet como por Marx, como o ridículo resultado da teleologia das revoluções burguesas -, Quinet debitou o triste resultado no processo de longo prazo.
Seguidor canino dos passos do mestre Michelet - um romantismo e um nacionalismo que libertava a escrita histórica de cânones teóricos rígidos -, a matização de esquerda de Quinet tinha um tingimento especial: o antijacobinismo doentio. Para Michelet (1979), tanto quanto para Quinet, os jacobinos foram os “jesuítas” da Revolução Francesa, os organizadores de uma perigosa “máquina diabólica de moer gente”, um aparelho. Dessa maneira, Quinet se inscreve na tradição de uma certa esquerda francesa da segunda metade do século XIX e começo do XX, onde estão, além dos dois mencionados, nomes como Proudhon e Sorel. A crítica de todos esses - dos nacionalistas radicais Michelet e Quinet aos libertários Proudhon e Sorel - satura num ponto comum: esses autores defendiam a revolução, condescendiam com alguns de seus eventuais exageros, mas temiam o poder de uma máquina partidária compacta e disciplinada - como talvez os jacobinos franceses sejam os primeiros enunciadores contemporâneos.
Conforme a própria expressão indica - revolução/restauração -, fazendo uso dela, Quinet pretende dar inteligibilidade à complexa processualidade da Revolução Francesa, fazendo uma periodização absolutamente original e até surpreendente: a chamada revolução é tida como o processo ocorrido entre 1788 e 1792, compreendido desde a convocação dos Estados Gerais por Luís XVI até a instauração do regime jacobino em 1792 - a Convenção e o Comitê de Salvação Pública contra a Nação Ameaçada; e, por seu turno, a restauração (1792-1794) é o próprio processo de domínio dos jacobinos sobre a Convenção. Onde os contemporâneos da revolução viram o aprofundamento da mesma, Quinet viu a destruição. Não há meio-termo: a obra histórica dos jacobinos foi a ressurreição do espírito do absolutismo, que comprometeu, desde então, em maior ou em menor grau, todo o processo da revolução. Em 1792, depois do último arroubo - insurreição popular em Paris, tomada do Palácio das Tulherias, queda do trono e convocação de uma Convenção eleita pelo voto universal (10 de agosto de 1792) -, o povo francês saiu de cena e deu lugar ao aparelho administrativo do Estado, para nunca mais voltar plenamente, a não ser em manifestações espasmódicas, geratrizes de ondas de otimismo logo desfeitas [2].
Há uma sutil diferença analítica entre Quinet e Michelet, merecedora de comentário. No veredicto de Quinet, do qual Michelet se afasta, embora tenha expropriado o clero, a Revolução Francesa não teve o seguimento numa reforma religiosa radical. Não houve um Lutero na Revolução Francesa. O catolicismo resistiu, em que pese todas as forças contrárias: a tradição anticlerical iluminista de Voltaire e as tentativas anticatólicas dos enragés e hebertistas.
Quinet procurou resolver um velho dilema do pensamento liberal ilustrado: como explicar o período jacobino? Como incluí-lo na saga de uma revolução liberal? A resposta era prender-se apenas em 1789, escoimando, como negativo, o processo subseqüente.
3. O “argumento” realista de Tocqueville: a revolução passiva
Tocqueville (1989; 2000a; 2000b) foi um contraponto liberal e aristocrático à tradição de republicanismo radical (embora antijacobino) de, por exemplo, Quinet [3]. Talvez tenha cabido a ele elaborar - também no seu recesso político em pleno império de Napoleão III (1851-1871), de quem tinha sido Ministro dos Negócios Estrangeiros, embora tenha se oposto ao golpe de Estado de 13 de dezembro de 1851 -, o argumento mais engenhoso e sofisticado, que deu viço a um novo tipo de pensamento conservador sobre a Revolução Francesa, para além das diatribes defensivas do reacionarismo católico. Desde então, o argumento fez fortuna e passou a ser repetido por um séquito numeroso de autores até díspares: Taine, Renan, Dilthey, Burckhardt, Lord Acton, Pareto, Croce, etc. - expressões da alta cultura européia no fin de siècle XIX e na alvorada do século XX -, ou Furet (1979: 31) e Arendt (1990: 45).
Qual, afinal, é esse argumento? Sinteticamente é o seguinte: observar que as mudanças produzidas pelas revoluções burguesas, à custa de sangue, já vinham sendo feitas, homeopaticamente, pelas monarquias absolutas, especialmente a centralização governativa necessária à formação do Estado nacional - “[...] outrora, no tempo em que tínhamos assembléias políticas na França [perceba-se a elegante estocada em Napoleão III], ouvi um orador falar na centralização administrativa, ‘esta bela conquista da Revolução que a Europa nos inveja’. Admito que a centralização é uma bela coisa, consinto que a Europa nos inveje, mas sustento que não é uma conquista da Revolução. É, ao contrário, uma conquista do antigo regime, aliás, a única parte da constituição política do antigo regime que sobreviveu à Revolução porque era a única que podia encaixar-se no novo estado social criado por esta revolução” (Tocqueville, 1989: 77).
O desenvolvimento do argumento conduz à seguinte reflexão: não teria sido a luta heróica dos jacobinos, dos sans-culottes, dos enragés, de Marat, de Saint-Just, de Condorcet, de Napoleão, de Babeuf, um sacrifício desnecessário? Não se pode apagar o passado, mas pode-se evitar a repetição no futuro. Tocqueville lançou a semente da dúvida: o melhor programa não teria sido dar uma base jurídico-constitucional às antigas monarquias, e não tentar tomar os céus de assalto? Ainda mais porque - e esse é o fundamento do sofisticado e sedutor argumento de Tocqueville (1989) -, ao final do processo, pela via cruenta ou pela via indolor, teríamos como resultado, tendo em vista as estruturas profundas do absolutismo na sociedade, no caso da formação histórica da França, a mesma centralização do Estado.
Tocqueville nem abjurou, na totalidade, a obra da Revolução, especialmente seu caráter universal - como o liberalismo de Burke (1997), temeroso de que os revolucionários franceses tivessem passado por cima das tradições do povo na tarefa de organização do Estado - nem viu nela precisamente um divisor de águas entre duas épocas históricas, mas lançou no mercado das idéias, conforme expressão de Hirschman (1995: 47) - um fino crítico de Tocqueville -, a tese da “futilidade” da revolução.
Há mais um elemento novo na tese da futilidade, ausente em Burke: a distância no tempo. A tese da futilidade só pode aparecer como o vôo noturno da coruja de Minerva: a razão interpretando, a posteriori, o trabalho realizado pela história.
No que intitula de “Segundo Livro” de O antigo regime e a revolução (1989: 71-139), Tocqueville dedica-se a tentar desfazer o “mito” das profundas transformações efetuadas pela Revolução, a fundamentar a tese da futilidade. Não se propaga que os jacobinos fizeram uma revolução agrária, distribuindo terras ao camponês sem indenização ao proprietário? “É [...] cometer um erro comum pensar que a divisão da propriedade rural data da França e da Revolução: o fato é muito mais antigo” (72). O regime capitalista de produção só penetrou na França depois da Revolução? “[...] durante os sessenta anos que antecederam a Revolução Francesa, o número de operários dobrou enquanto a população em geral da cidade [Paris] só aumentou um terço” (103). Paremos... a seqüência é enorme, envolve religião, democracia, burocracia, regime fiscal, etc. Tudo o que a Revolução fez o absolutismo estava fazendo.
Reparemos no seguinte detalhe: a tese da futilidade da revolução “clássica” - quando há uma luta encarniçada pelo poder entre as novas e as velhas classes - é uma outra maneira de intitular o conceito de “revolução passiva” - a “revolução sem revolução”. Futilidade em Tocqueville e revolução passiva em Gramsci dizem respeito à tematização de um mesmo tipo de processo histórico, com a diferença de ser, no primeiro, um programa político e, no segundo, ter um valor de advertência - lembrando a divisão quanto à intencionalidade do interprete dos processos de revolução passiva, feita por Gramsci (1999 C10V1: 291-2).
Como personagem intelectual, Tocqueville cavou uma inflexão no pensamento político francês: como os historiadores da época da Restauração (Guizot,Thierry, Thiers, Cousin e Mignet), ele era liberal, mas, ao contrário desses, também era, por origem e convicção, um aristocrata feudal - um aristocrata intelectual preparado para fazer a liga burguesia-aristocracia que Luís XVI rejeitou na fase áurea da revolução. Não que os historiadores da Restauração, ideólogos de Luís Felipe e da alta burguesia na Revolução de 1830, fossem avessos a uma aliança com a aristocracia. Porém, embora algozes a serviço da alta burguesia contra o proletariado francês - lembremos o papel de Thiers na repressão a Comuna de Paris -, os historiadores da Restauração, em seu balanço sobre as revoluções burguesas, partiam do curso dos acontecimentos revolucionários - visando a corrigi-los, aparar “excessos”, etc.; de todo modo, a positividade do processo, para eles, era ponto pacífico. A revolução não fora “fútil”.
Para encetar a aliança burguesia-aristocracia em bases sólidas, nas primícias da Revolução Francesa, teria sido preciso haver um Tocqueville com força política - ou um intelectual coletivo (um partido) forte, portador desse projeto. O ensaio da aliança esteve expresso na ação de La Fayette e Mirabeau - tribunos que tentaram encetar a aliança entre Luís XVI, a aristocracia e a burguesia. Contudo, o ensaio fora tragado. A aliança não se concretizou em 1791 e sobreveio uma luta encarniçada.
Quase um século depois do fracasso de personagens como La Fayette e Mirabeau, o papel histórico desempenhado pela démarche tocquevilliana foi, precisamente, o de auxiliar na elucidação de uma estratégia de revolução passiva para a burguesia francesa - uma burguesia que fora revolucionária um dia. Entendamos: não que Tocqueville tenha tido a chance de, em vida, de maneira prática, aplicar plenamente essa linha - até porque ele morreu em 1859, e a linha de um regime republicano com a burguesia como classe dirigente e os resquícios da aristocracia como componente suplementar do bloco no poder só se tornou plenamente possível - se Gramsci estiver correto - depois de 1871. Não, mais do que prático, Tocqueville foi profeta.
A arquitetura não está completa. Tocqueville foi profeta em relação ao passado com a tese da futilidade. Mas como ele foi profeta do futuro? A profecia em relação ao futuro foi formulada inclusive antes do estudo sobre a Revolução Francesa. Veio à lume em duas desovas - 1836 e 1840 -, nos dois volumes do clássico livro A democracia na América (1998, 2000).
O problema exposto em A democracia na América é o seguinte: Tocqueville interpretava que estava se formando na Europa, desde os tempos de apogeu do absolutismo, uma terrível combinação entre despotismo, igualitarismo e centralização do Estado, que negava o princípio da liberdade. A democracia dos modernos, somente nas aparências, negava o absolutismo. Para ele, liberdade e democracia estavam se afastando, com a radicalização da segunda - a democracia -, eliminando a primeira - a liberdade. O “peso” democracia inclinava para baixo da balança o “peso” liberdade. Vale dizer: o processo de instauração de regimes democráticos e republicanos na Europa, pela via revolucionária, não era um antídoto eficaz à tendência de despotismo manifesta subterraneamente nos novos Estados, visto que poderia se instaurar uma “ditadura da maioria”, cultora da igualdade, mas cerceadora da liberdade.
O alvo da crítica era a vertente jacobina francesa. A combinação terrível - democracia, igualitarismo e despotismo - fora radicalizada ao limite pelos jacobinos no regime da Primeira República (1792-1794). O fantasma do despotismo contemporâneo fizera aí sua primeira aparição, revivendo elementos do absolutismo.
Questão complexa, não há como bem compreendê-la se não situarmos o interesse maior do pensamento de Tocqueville: seu ponto de vista é o da nobreza, da aristocracia, mas não o do monarca absolutista. Sem compreender esse dado elementar, o pensamento de Tocqueville não passa de um agregado de sombras. Conforme Tocqueville (1998: 13), durante a vigência do absolutismo na Europa, “a força de alguns súditos erguia barreiras insuperáveis à tirania do príncipe [...] situados a uma distância imensa do povo, os nobres tinham, no entanto, pela sorte do povo, essa espécie de interesse benevolente e tranqüilo que o pastor denota ao seu rebanho; e, sem ver no pobre seu igual, velavam por seu destino, como se fosse um depósito posto pela Providência em suas mãos”.
Para Tocqueville, curiosamente, o princípio da liberdade no mundo medieval encontrava-se nas castas aristocráticas dos proprietários rurais - eles (os aristocratas) faziam a mediação entre o monarca e as populações servis e controlavam as atitudes do monarca. Tocqueville é bastante diferente, por exemplo, de um Hegel (1986: 159-200), dado que, no filósofo alemão, esse papel de mediação era feito pelas corporações de ofício, não pela aristocracia. Rigorosamente, a aristocracia era a única classe que criava indivíduos livres na sociedade feudal - guerreiros, virtuosos, devotados à causa pública.
O cerne da crítica ao absolutismo, em Tocqueville, consistiu na quebra do equilíbrio (das relações) de forças existentes na Alta Idade Média (séculos IV-XI), apelando para uma relação direta com o servo da gleba, ou seja, a crítica ao absolutismo localiza-se exatamente no lado “progressista” do mesmo, em função do qual sua vigência abriu as portas para a emergência do novo modo de produção capitalista. Clarifica-se o objetivo da sofisticada abordagem tocquevilliana ao estudar in loco as organizações da sociedade civil norte-americana: substituir, na Europa, o vácuo deixado pela perda de poder da aristocracia, formando novas instituições que cumpram o mesmo papel de zelar pela liberdade, de maneira a coibir os excessos emanados do poder estatal.
Veja-se: não se trata, no caso - como em várias passagens dos Cadernos do cárcere (Gramsci, 2000 V3C6: 223-4; V3C8: 284-5; V3C15: 326-9) -, da transferência, depois de um longo processo de lutas históricas, do poder e das funções do Estado para a sociedade civil, conforme a tríade de passagem Estado Ético, Sociedade Civil e Sociedade Regulada, projetada em Gramsci, onde as virtudes ideadas no primeiro (o Estado Ético, de Hegel) são vistas como possibilidades reais no desenvolvimento da segunda (a Sociedade Civil), até a possibilidade do papel dirigente (e regulador) do Estado no mundo contemporâneo vir a ser assumido por uma nova Sociedade Regulada (ou Comunista). Não está em cogitação, no pensar do liberal francês, qualquer veleidade programática no sentido de fazer desaparecer a diferença entre governantes e governados, dirigentes e dirigidos, ou mesmo a utopia anarquista e marxiana de extinguir o Estado. Tocqueville, tendo em mira o exemplo norte-americano, faz questão de distinguir a descentralização de governo da descentralização administrativa; para ele, o papel das associações civis e da auto-organização da sociedade radicava somente no segundo aspecto, ou seja, socializar a política mas não o poder político (duas coisas bastante distintas).
Como podemos ler na seleta dos discursos de Robespierre (2000) à Convenção, antes e durante a Primeira República francesa (1792-1794), a experiência dos jacobinos forçou os limites estabelecidos pelos princípios da revolução burguesa - o processo da Revolução Francesa tentou ampliar, de maneira prática e um pouco às cegas, os horizontes da igualdade, da liberdade e da fraternidade. Tocqueville fez o contraponto ao jacobinismo no processo da Revolução Francesa: nele, os limites da igualdade e da liberdade na sociabilidade burguesa - que se restringem à esfera da igualdade e da liberdade civis -, de caso pensado, são considerados intransponíveis - a não ser que escolhamos adentrar nas tragédias do despotismo e da anarquia. Contudo, há uma matização. O autor reconhece - como arguto observador da ordem burguesa - que existe uma tensão entre o que chama de a “igualdade como condição” (o princípio de que todos, de todas as classes sociais, são iguais perante a lei) e a “igualdade como paixão” (o desejo de transformar a igualdade de condição, cujo alcance de legalidade é a igualdade civil, em um princípio isonômico, expansivo a todas as relações sociais existentes). Não estamos longe, embora com menor brilho e densidade filosófica, das apreciações dos escritos do “jovem” Marx (1991) quanto à insuficiência da emancipação civil, lema das revoluções burgueses, e à necessidade de, para além da sociabilidade capitalista, conquistar a emancipação humana.
Mesmo reconhecendo a tensão mais bem antevista pelo “jovem” Marx, e nela o limite e a tragédia da democracia contemporânea, dado que a democracia contemporânea promete abstratamente uma coisa - a igualdade, a liberdade, a fraternidade - que não realiza praticamente, o autor francês é peremptório: não temos condições de conquistar, nem de longe, um desiderato próximo ao que Marx chamou pouco depois de emancipação humana. Trata-se, portanto, de um autor conformista em dois âmbitos: de um lado, porque entregou os pontos da aristocracia para a burguesia, reconhecendo a derrota de sua classe; de outro, porque não acreditava que ocorreria com a burguesia o que ocorreu com a sua classe - o arresto do poder.
Aplicando uma estratégia de revolução passiva, o pensamento conservador esclarecido, inclusive o da aristocracia, deixou de ser simplesmente reacionário e passou a ser progressivo (não confundir com progressista), ou seja, deseja, ao mesmo tempo, a manutenção da ordem burguesa e o desenvolvimento das forças produtivas. Essa estratégia, que tem raízes profundas ainda no começo da própria Revolução Francesa, ganhou fôlego com a derrota de Napoleão (1815) e a Restauração, mas só se tornou factível, em plano universal, a partir da segunda metade do século XIX - as revoluções de 1848 e a Comuna de Paris (1871) como as duas datas capitais -, quando a bandeira de uma nova revolução, de conteúdo proletário, passou a ter consistência programática e a aglutinação produzida no Terceiro Estado (burguesia e proletariado) não tinha mais nenhum sentido emancipacionista real.
Já vimos que Gramsci (1999 C10V1: 291-2) considerava o conceito de revolução passiva de duas maneiras: como “critério de interpretação” (política e historiográfica) e como “estratégia de ação”. Na distinção prática entre os que encaram a revolução passiva como critério de interpretação ou como estratégica de ação, reside uma diáspora de largo alcance no pensamento político e historiográfico. A revolução passiva, em Gramsci, é critério interpretativo; em Tocqueville, estratégia de ação. Simplificando - pois há inúmeras gradações no caleidoscópio político -, podemos afirmar a existência, nos processos de revolução passiva, de dois pontos fixos no caleidoscópio: o ponto dos que interpretam a revolução passiva (visando à sua reversão e ultrapassagem) e o ponto dos que fazem a ideação do prolongamento do processo, através da formulação de uma estratégia condizente com o objetivo. Se assim o for, Tocqueville tinha uma estratégica de ação de revolução passiva avant la lettre em relação à crítica de Gramsci.
Notas
[1] Precisemos a notação de tradução e tradutibilidade em Gramsci. Para o pensador italiano, conforme demonstra principalmente em uma seção do Caderno 11 (1999 V1: 185-90), existe a possibilidade de as experiências históricas importantes - pelo seu grau de universalidade - encontrar similares em outros ambientes culturais. Dessa maneira, por exemplo, em Gramsci, há sempre a possibilidade de uma determinada linguagem vocabular e cultural encontrar uma tradução em outra - “a linguagem da política francesa [...] corresponde e pode ser traduzida na linguagem da filosofia clássica alemã” (Gramsci, 1999 CC11V1: 185-8). Ou seja, a revolução filosófica de Kant e Hegel tinha uma reverberação na política prática dos revolucionários franceses; citando um verso de Carducci, assim expressa Gramsci essa tradução (revolução francesa-filosofia clássica alemã): “Emmanuel Kant decapitou Deus; Maximilien Robespierre, o rei”. Vale observar que da possibilidade da tradução advém o problema - de difícil resolução - da tradutibilidade de uma linguagem política, filosófica ou científica em outra. O problema da tradutibilidade chega a Gramsci (1999 CC11V1: 185) através de uma sentença de Lenin a propósito do fracasso da revolução no Ocidente após a Revolução Soviética - “Vilitch [Lenin] escreveu ou disse [...] o seguinte: não soubemos ‘traduzir’ nas línguas européias a nossa língua”. Traduzir não significa, portanto, repetir, mas recriar. Em Gramsci, sempre deparamos com traduções e os problemas da tradutibilidade: a reforma protestante foi o ancestral rude da filosofia clássica alemã, o proletariado da Alemanha unificada foi o portador da filosofia clássica, os jacobinos foram Kant e Hegel, etc.
[2] Não custa recordar a periodização mais corrente do binômio revolução-restauração na Revolução Francesa, totalmente subvertida por Quinet: a chamada revolução burguesa (1789-1815), compreendida nos processos contraditórios da Tomada da Bastilha, em 14 de julho de 1789, até a segunda derrocada de Napoleão I, em Waterloo, e o exílio na Ilha de Santa Helena; e a Restauração (1815-1830), compreendida pelo retorno dos Bourbons - Luís XVIII e Carlos X (Conde D’Artois) -, com as tentativas fracassadas do último em retornar à antiga ordem aristocrática, que o fizeram perder o trono através das lutas populares de 1830.
[3] Devemos à leitura de Werneck Vianna (1997: 9-10; 89-121) o brilhante insight de classificar o pensamento de Tocqueville como uma tentativa de formulação de uma estratégia de revolução passiva. No presente artigo, porém, avançamos novas hipóteses em assuntos não abordados por Werneck Vianna.
Referências bibliográficas
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FURET, F. Penser la révolution française. Paris: Gallimard, 1978.
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HEGEL, G. W. Princípios da filosofia do direito. Lisboa: Guimarães, 1986.
HIRSCHMAN, A. A retórica da intransigência. São Paulo: Cia das Letras, 1995.
MARX, K. A luta de classes na França/ O 18 Brumário de Luís Bonaparte/ A guerra civil na França. In: Id. Obras Escolhidas Marx/Engels (v. 1 e 2). São Paulo: Alfa-Omega, sd.
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WERNECK VIANNA, L. A revolução passiva. Rio de Janeiro: Revan, 1997.
ENTRE GRAMSCI E TOCQUEVILLE
Jaldes Reis de Meneses
Professor do Programa de Pós-Graduação em História (UFPB)
1. Introdução: apontamentos sobre o conceito de revolução passiva
Onde e como Gramsci teve a inspiração do conceito de revolução passiva? No labor intelectual no cárcere em que foi confinado pelo fascismo até morrer (1926/1937), Gramsci se apropriou e deu um novo conteúdo à expressão "revolução passiva", do historiador italiano Vicenzo Cuoco, vendo na mesma uma tradução - para usar um termo caro a Gramsci (1999 CC11V1: 185-90) -, com antecipação no tempo, do conceito de revolução-restauração, da lavra do historiador francês Edgard Quinet [1]. Gramsci não tinha em mãos as obras de Cuoco nem Quinet, mas tomou contacto com a problemática através de um livro de Croce - La rivoluzione napoletana del 1799 -, onde é comentado o conceito de revolução passiva.
Os que conhecem a história da formação do moderno Estado Nacional italiano, no século XIX, sabem que Cuoco foi um publicista da ala radical da pequena burguesia e partícipe ativo da chamada Revolução Napolitana de 1799, sobre a qual escreveu a obra comentada por Croce, intitulada Saggio storico sulla Rivoluzione Napoletana. Na obra de Cuoco, a propósito da análise do fracasso da Revolução Napolitana, encontramos o discernimento do conteúdo histórico da revolução burguesa em países de formação nacional retardatária, como a Itália moderna.
O que foi e por que fracassou a Revolução Napolitana (ou Partenopéia)? Só podemos entender o fracasso do processo de revolução, nessa província da Itália meridional, no rastilho dos acontecimentos da Revolução Francesa e das campanhas militares napoleônicas. Em 1798, a burguesia radical napolitana, com base no apoio militar das tropas de ocupação francesa, derrubou o rei Ferdinando I, da dinastia dos Bourbons e de Castela, proclamando um regime republicano. Porém, a República Napolitana teve vida efêmera.
De alguma maneira semelhante à ocupação das tropas soviéticas na Europa Oriental, no desfecho da Segunda Guerra Mundial, a força progressista mais parecia uma força de ocupação, desprovida de simbiose popular. Tais são as raízes mais remotas do conceito de revolução passiva: a política de expansão militar napoleônica, levando, a ferro e fogo, “na lei ou na marra”, mesmo com tênues alianças internas junto às populações dos territórios ocupados, a idéia e as instituições da Revolução Burguesa.
No observatório do cárcere, escreve Gramsci (1999 CC10V1: 291-2) a propósito da saga história da revolução burguesa italiana: “[...] Deve-se ver como a fórmula crítica de Vincenzo Cuoco sobre as ‘revoluções passivas’ - que, quando foi formulada (após a trágica experiência da República Partenopéia de 1799), tinha um valor de advertência e deveria criar uma moral nacional de maior energia e de iniciativa revolucionária popular -, converteu-se, através do cérebro e do pânico social dos [...] moderados, numa concepção positiva, num programa político e numa moral que, por trás dos rutilantes ouropéis retóricos e nacionalistas [...], escondia a inquietação do ‘aprendiz de feiticeiro’ e a intenção de abdicar e capitular diante da primeira ameaça séria de uma revolução italiana profundamente popular, isto é, profundamente nacional.”
Revolução passiva, portanto, no pensamento dos ilustrados conservadores, era programa político, enquanto para Gramsci - e também Cuoco - era um critério de interpretação histórica, visando advertir e instruir as forças populares de todas as opções estratégicas e táticas possíveis no curso das revoluções burguesas.
No caso da elaboração do conceito de revolução passiva, Gramsci pode ser considerado um brilhante legatário do método de análise política in nuce de acontecimentos históricos instaurado por Marx - análise de conjuntura com base no conceito de luta de classes e das relações de força entre elas -, nas obras-primas teóricas e literárias que são seus três livros sobre a história da França - A luta de classes na França; O 18 Brumário de Luís Bonaparte; A Guerra Civil na França (Marx, sd.). Gramsci não imitou simplesmente o Marx historiador e seu método de análise política: foi além do estudo de episódios históricos situados numa linha curta do tempo - as revoluções de 1848, o golpe de Luís Bonaparte, a Comuna de Paris (os temas de Marx) -, contribuindo indelevelmente para o desenvolvimento do que chamava filosofia da práxis (a tradição marxista).
Da analítica das relações de força de Marx, temos a renovada analítica de Gramsci, não mais restrita somente à interpretação dos acontecimentos in nuce, mas projetada numa duração mais longa.
Abordar a complexa problemática histórica condensada no binômio revolução-restauração (ou na expressão “revolução passiva”) significa encarar, sob uma perspectiva de longa duração, o desafio teórico-prático lançado pelo pensamento liberal-conservador sobre o verdadeiro conteúdo histórico da obra societária das revoluções, pensamento no qual sobressaem autores da estirpe argumentativa de um Burke (1997) e um Tocqueville (1989). Temos aqui, talvez, o principal mérito do pensamento político gramsciano: ele não só foi atento aos argumentos do pensamento liberal-conservador, como promoveu, através do conceito de revolução passiva, um desmonte por dentro dos argumentos políticos, históricos e ideológicos dessa corrente de pensamento, em démarche, ao que sabemos, sem parelha até hoje no âmbito da tradição marxista.
2. Quinet e Michelet: a decepção com os resultados das revoluções burguesas
Visando escavar as raízes historiográficas da démarche gramsciana de revolução passiva, comecemos tematizando Quinet, referência textual, embora na qualidade de fonte indireta, de Gramsci. No entender de um autor brasileiro que sempre merece atenção pela inteligência e erudição, Merquior (1991: 129), a obra de Quinet foi “o mais sério trabalho historiográfico daqueles anos (além de O antigo Regime e a Revolução de Tocqueville)”. Confirmamos o veredicto de Merquior, mas, rigorosamente, Quinet não tinha um projeto político claro - o que sobrava, como veremos, em Tocqueville.
Ao elaborar o binômio revolução-restauração, Quinet situava-se nos antípodas do liberal-conservadorismo, nem poderia ser diferente para um historiador que fora um discípulo militante e republicano de Michelet (genial historiador-escritor nacionalista e democrático francês). Quinet escreveu no exílio inglês, em 1865 (começo da fase “parlamentar” do regime bonapartista de Napoleão III), um livro intitulado La révolution (2000), dedicado ao balanço desenganado de quase um século de processo da revolução francesa. Como oposição ao sobrinho de Napoleão, transformado em imperador pelas artes da farsa - visto, tanto por Quinet como por Marx, como o ridículo resultado da teleologia das revoluções burguesas -, Quinet debitou o triste resultado no processo de longo prazo.
Seguidor canino dos passos do mestre Michelet - um romantismo e um nacionalismo que libertava a escrita histórica de cânones teóricos rígidos -, a matização de esquerda de Quinet tinha um tingimento especial: o antijacobinismo doentio. Para Michelet (1979), tanto quanto para Quinet, os jacobinos foram os “jesuítas” da Revolução Francesa, os organizadores de uma perigosa “máquina diabólica de moer gente”, um aparelho. Dessa maneira, Quinet se inscreve na tradição de uma certa esquerda francesa da segunda metade do século XIX e começo do XX, onde estão, além dos dois mencionados, nomes como Proudhon e Sorel. A crítica de todos esses - dos nacionalistas radicais Michelet e Quinet aos libertários Proudhon e Sorel - satura num ponto comum: esses autores defendiam a revolução, condescendiam com alguns de seus eventuais exageros, mas temiam o poder de uma máquina partidária compacta e disciplinada - como talvez os jacobinos franceses sejam os primeiros enunciadores contemporâneos.
Conforme a própria expressão indica - revolução/restauração -, fazendo uso dela, Quinet pretende dar inteligibilidade à complexa processualidade da Revolução Francesa, fazendo uma periodização absolutamente original e até surpreendente: a chamada revolução é tida como o processo ocorrido entre 1788 e 1792, compreendido desde a convocação dos Estados Gerais por Luís XVI até a instauração do regime jacobino em 1792 - a Convenção e o Comitê de Salvação Pública contra a Nação Ameaçada; e, por seu turno, a restauração (1792-1794) é o próprio processo de domínio dos jacobinos sobre a Convenção. Onde os contemporâneos da revolução viram o aprofundamento da mesma, Quinet viu a destruição. Não há meio-termo: a obra histórica dos jacobinos foi a ressurreição do espírito do absolutismo, que comprometeu, desde então, em maior ou em menor grau, todo o processo da revolução. Em 1792, depois do último arroubo - insurreição popular em Paris, tomada do Palácio das Tulherias, queda do trono e convocação de uma Convenção eleita pelo voto universal (10 de agosto de 1792) -, o povo francês saiu de cena e deu lugar ao aparelho administrativo do Estado, para nunca mais voltar plenamente, a não ser em manifestações espasmódicas, geratrizes de ondas de otimismo logo desfeitas [2].
Há uma sutil diferença analítica entre Quinet e Michelet, merecedora de comentário. No veredicto de Quinet, do qual Michelet se afasta, embora tenha expropriado o clero, a Revolução Francesa não teve o seguimento numa reforma religiosa radical. Não houve um Lutero na Revolução Francesa. O catolicismo resistiu, em que pese todas as forças contrárias: a tradição anticlerical iluminista de Voltaire e as tentativas anticatólicas dos enragés e hebertistas.
Quinet procurou resolver um velho dilema do pensamento liberal ilustrado: como explicar o período jacobino? Como incluí-lo na saga de uma revolução liberal? A resposta era prender-se apenas em 1789, escoimando, como negativo, o processo subseqüente.
3. O “argumento” realista de Tocqueville: a revolução passiva
Tocqueville (1989; 2000a; 2000b) foi um contraponto liberal e aristocrático à tradição de republicanismo radical (embora antijacobino) de, por exemplo, Quinet [3]. Talvez tenha cabido a ele elaborar - também no seu recesso político em pleno império de Napoleão III (1851-1871), de quem tinha sido Ministro dos Negócios Estrangeiros, embora tenha se oposto ao golpe de Estado de 13 de dezembro de 1851 -, o argumento mais engenhoso e sofisticado, que deu viço a um novo tipo de pensamento conservador sobre a Revolução Francesa, para além das diatribes defensivas do reacionarismo católico. Desde então, o argumento fez fortuna e passou a ser repetido por um séquito numeroso de autores até díspares: Taine, Renan, Dilthey, Burckhardt, Lord Acton, Pareto, Croce, etc. - expressões da alta cultura européia no fin de siècle XIX e na alvorada do século XX -, ou Furet (1979: 31) e Arendt (1990: 45).
Qual, afinal, é esse argumento? Sinteticamente é o seguinte: observar que as mudanças produzidas pelas revoluções burguesas, à custa de sangue, já vinham sendo feitas, homeopaticamente, pelas monarquias absolutas, especialmente a centralização governativa necessária à formação do Estado nacional - “[...] outrora, no tempo em que tínhamos assembléias políticas na França [perceba-se a elegante estocada em Napoleão III], ouvi um orador falar na centralização administrativa, ‘esta bela conquista da Revolução que a Europa nos inveja’. Admito que a centralização é uma bela coisa, consinto que a Europa nos inveje, mas sustento que não é uma conquista da Revolução. É, ao contrário, uma conquista do antigo regime, aliás, a única parte da constituição política do antigo regime que sobreviveu à Revolução porque era a única que podia encaixar-se no novo estado social criado por esta revolução” (Tocqueville, 1989: 77).
O desenvolvimento do argumento conduz à seguinte reflexão: não teria sido a luta heróica dos jacobinos, dos sans-culottes, dos enragés, de Marat, de Saint-Just, de Condorcet, de Napoleão, de Babeuf, um sacrifício desnecessário? Não se pode apagar o passado, mas pode-se evitar a repetição no futuro. Tocqueville lançou a semente da dúvida: o melhor programa não teria sido dar uma base jurídico-constitucional às antigas monarquias, e não tentar tomar os céus de assalto? Ainda mais porque - e esse é o fundamento do sofisticado e sedutor argumento de Tocqueville (1989) -, ao final do processo, pela via cruenta ou pela via indolor, teríamos como resultado, tendo em vista as estruturas profundas do absolutismo na sociedade, no caso da formação histórica da França, a mesma centralização do Estado.
Tocqueville nem abjurou, na totalidade, a obra da Revolução, especialmente seu caráter universal - como o liberalismo de Burke (1997), temeroso de que os revolucionários franceses tivessem passado por cima das tradições do povo na tarefa de organização do Estado - nem viu nela precisamente um divisor de águas entre duas épocas históricas, mas lançou no mercado das idéias, conforme expressão de Hirschman (1995: 47) - um fino crítico de Tocqueville -, a tese da “futilidade” da revolução.
Há mais um elemento novo na tese da futilidade, ausente em Burke: a distância no tempo. A tese da futilidade só pode aparecer como o vôo noturno da coruja de Minerva: a razão interpretando, a posteriori, o trabalho realizado pela história.
No que intitula de “Segundo Livro” de O antigo regime e a revolução (1989: 71-139), Tocqueville dedica-se a tentar desfazer o “mito” das profundas transformações efetuadas pela Revolução, a fundamentar a tese da futilidade. Não se propaga que os jacobinos fizeram uma revolução agrária, distribuindo terras ao camponês sem indenização ao proprietário? “É [...] cometer um erro comum pensar que a divisão da propriedade rural data da França e da Revolução: o fato é muito mais antigo” (72). O regime capitalista de produção só penetrou na França depois da Revolução? “[...] durante os sessenta anos que antecederam a Revolução Francesa, o número de operários dobrou enquanto a população em geral da cidade [Paris] só aumentou um terço” (103). Paremos... a seqüência é enorme, envolve religião, democracia, burocracia, regime fiscal, etc. Tudo o que a Revolução fez o absolutismo estava fazendo.
Reparemos no seguinte detalhe: a tese da futilidade da revolução “clássica” - quando há uma luta encarniçada pelo poder entre as novas e as velhas classes - é uma outra maneira de intitular o conceito de “revolução passiva” - a “revolução sem revolução”. Futilidade em Tocqueville e revolução passiva em Gramsci dizem respeito à tematização de um mesmo tipo de processo histórico, com a diferença de ser, no primeiro, um programa político e, no segundo, ter um valor de advertência - lembrando a divisão quanto à intencionalidade do interprete dos processos de revolução passiva, feita por Gramsci (1999 C10V1: 291-2).
Como personagem intelectual, Tocqueville cavou uma inflexão no pensamento político francês: como os historiadores da época da Restauração (Guizot,Thierry, Thiers, Cousin e Mignet), ele era liberal, mas, ao contrário desses, também era, por origem e convicção, um aristocrata feudal - um aristocrata intelectual preparado para fazer a liga burguesia-aristocracia que Luís XVI rejeitou na fase áurea da revolução. Não que os historiadores da Restauração, ideólogos de Luís Felipe e da alta burguesia na Revolução de 1830, fossem avessos a uma aliança com a aristocracia. Porém, embora algozes a serviço da alta burguesia contra o proletariado francês - lembremos o papel de Thiers na repressão a Comuna de Paris -, os historiadores da Restauração, em seu balanço sobre as revoluções burguesas, partiam do curso dos acontecimentos revolucionários - visando a corrigi-los, aparar “excessos”, etc.; de todo modo, a positividade do processo, para eles, era ponto pacífico. A revolução não fora “fútil”.
Para encetar a aliança burguesia-aristocracia em bases sólidas, nas primícias da Revolução Francesa, teria sido preciso haver um Tocqueville com força política - ou um intelectual coletivo (um partido) forte, portador desse projeto. O ensaio da aliança esteve expresso na ação de La Fayette e Mirabeau - tribunos que tentaram encetar a aliança entre Luís XVI, a aristocracia e a burguesia. Contudo, o ensaio fora tragado. A aliança não se concretizou em 1791 e sobreveio uma luta encarniçada.
Quase um século depois do fracasso de personagens como La Fayette e Mirabeau, o papel histórico desempenhado pela démarche tocquevilliana foi, precisamente, o de auxiliar na elucidação de uma estratégia de revolução passiva para a burguesia francesa - uma burguesia que fora revolucionária um dia. Entendamos: não que Tocqueville tenha tido a chance de, em vida, de maneira prática, aplicar plenamente essa linha - até porque ele morreu em 1859, e a linha de um regime republicano com a burguesia como classe dirigente e os resquícios da aristocracia como componente suplementar do bloco no poder só se tornou plenamente possível - se Gramsci estiver correto - depois de 1871. Não, mais do que prático, Tocqueville foi profeta.
A arquitetura não está completa. Tocqueville foi profeta em relação ao passado com a tese da futilidade. Mas como ele foi profeta do futuro? A profecia em relação ao futuro foi formulada inclusive antes do estudo sobre a Revolução Francesa. Veio à lume em duas desovas - 1836 e 1840 -, nos dois volumes do clássico livro A democracia na América (1998, 2000).
O problema exposto em A democracia na América é o seguinte: Tocqueville interpretava que estava se formando na Europa, desde os tempos de apogeu do absolutismo, uma terrível combinação entre despotismo, igualitarismo e centralização do Estado, que negava o princípio da liberdade. A democracia dos modernos, somente nas aparências, negava o absolutismo. Para ele, liberdade e democracia estavam se afastando, com a radicalização da segunda - a democracia -, eliminando a primeira - a liberdade. O “peso” democracia inclinava para baixo da balança o “peso” liberdade. Vale dizer: o processo de instauração de regimes democráticos e republicanos na Europa, pela via revolucionária, não era um antídoto eficaz à tendência de despotismo manifesta subterraneamente nos novos Estados, visto que poderia se instaurar uma “ditadura da maioria”, cultora da igualdade, mas cerceadora da liberdade.
O alvo da crítica era a vertente jacobina francesa. A combinação terrível - democracia, igualitarismo e despotismo - fora radicalizada ao limite pelos jacobinos no regime da Primeira República (1792-1794). O fantasma do despotismo contemporâneo fizera aí sua primeira aparição, revivendo elementos do absolutismo.
Questão complexa, não há como bem compreendê-la se não situarmos o interesse maior do pensamento de Tocqueville: seu ponto de vista é o da nobreza, da aristocracia, mas não o do monarca absolutista. Sem compreender esse dado elementar, o pensamento de Tocqueville não passa de um agregado de sombras. Conforme Tocqueville (1998: 13), durante a vigência do absolutismo na Europa, “a força de alguns súditos erguia barreiras insuperáveis à tirania do príncipe [...] situados a uma distância imensa do povo, os nobres tinham, no entanto, pela sorte do povo, essa espécie de interesse benevolente e tranqüilo que o pastor denota ao seu rebanho; e, sem ver no pobre seu igual, velavam por seu destino, como se fosse um depósito posto pela Providência em suas mãos”.
Para Tocqueville, curiosamente, o princípio da liberdade no mundo medieval encontrava-se nas castas aristocráticas dos proprietários rurais - eles (os aristocratas) faziam a mediação entre o monarca e as populações servis e controlavam as atitudes do monarca. Tocqueville é bastante diferente, por exemplo, de um Hegel (1986: 159-200), dado que, no filósofo alemão, esse papel de mediação era feito pelas corporações de ofício, não pela aristocracia. Rigorosamente, a aristocracia era a única classe que criava indivíduos livres na sociedade feudal - guerreiros, virtuosos, devotados à causa pública.
O cerne da crítica ao absolutismo, em Tocqueville, consistiu na quebra do equilíbrio (das relações) de forças existentes na Alta Idade Média (séculos IV-XI), apelando para uma relação direta com o servo da gleba, ou seja, a crítica ao absolutismo localiza-se exatamente no lado “progressista” do mesmo, em função do qual sua vigência abriu as portas para a emergência do novo modo de produção capitalista. Clarifica-se o objetivo da sofisticada abordagem tocquevilliana ao estudar in loco as organizações da sociedade civil norte-americana: substituir, na Europa, o vácuo deixado pela perda de poder da aristocracia, formando novas instituições que cumpram o mesmo papel de zelar pela liberdade, de maneira a coibir os excessos emanados do poder estatal.
Veja-se: não se trata, no caso - como em várias passagens dos Cadernos do cárcere (Gramsci, 2000 V3C6: 223-4; V3C8: 284-5; V3C15: 326-9) -, da transferência, depois de um longo processo de lutas históricas, do poder e das funções do Estado para a sociedade civil, conforme a tríade de passagem Estado Ético, Sociedade Civil e Sociedade Regulada, projetada em Gramsci, onde as virtudes ideadas no primeiro (o Estado Ético, de Hegel) são vistas como possibilidades reais no desenvolvimento da segunda (a Sociedade Civil), até a possibilidade do papel dirigente (e regulador) do Estado no mundo contemporâneo vir a ser assumido por uma nova Sociedade Regulada (ou Comunista). Não está em cogitação, no pensar do liberal francês, qualquer veleidade programática no sentido de fazer desaparecer a diferença entre governantes e governados, dirigentes e dirigidos, ou mesmo a utopia anarquista e marxiana de extinguir o Estado. Tocqueville, tendo em mira o exemplo norte-americano, faz questão de distinguir a descentralização de governo da descentralização administrativa; para ele, o papel das associações civis e da auto-organização da sociedade radicava somente no segundo aspecto, ou seja, socializar a política mas não o poder político (duas coisas bastante distintas).
Como podemos ler na seleta dos discursos de Robespierre (2000) à Convenção, antes e durante a Primeira República francesa (1792-1794), a experiência dos jacobinos forçou os limites estabelecidos pelos princípios da revolução burguesa - o processo da Revolução Francesa tentou ampliar, de maneira prática e um pouco às cegas, os horizontes da igualdade, da liberdade e da fraternidade. Tocqueville fez o contraponto ao jacobinismo no processo da Revolução Francesa: nele, os limites da igualdade e da liberdade na sociabilidade burguesa - que se restringem à esfera da igualdade e da liberdade civis -, de caso pensado, são considerados intransponíveis - a não ser que escolhamos adentrar nas tragédias do despotismo e da anarquia. Contudo, há uma matização. O autor reconhece - como arguto observador da ordem burguesa - que existe uma tensão entre o que chama de a “igualdade como condição” (o princípio de que todos, de todas as classes sociais, são iguais perante a lei) e a “igualdade como paixão” (o desejo de transformar a igualdade de condição, cujo alcance de legalidade é a igualdade civil, em um princípio isonômico, expansivo a todas as relações sociais existentes). Não estamos longe, embora com menor brilho e densidade filosófica, das apreciações dos escritos do “jovem” Marx (1991) quanto à insuficiência da emancipação civil, lema das revoluções burgueses, e à necessidade de, para além da sociabilidade capitalista, conquistar a emancipação humana.
Mesmo reconhecendo a tensão mais bem antevista pelo “jovem” Marx, e nela o limite e a tragédia da democracia contemporânea, dado que a democracia contemporânea promete abstratamente uma coisa - a igualdade, a liberdade, a fraternidade - que não realiza praticamente, o autor francês é peremptório: não temos condições de conquistar, nem de longe, um desiderato próximo ao que Marx chamou pouco depois de emancipação humana. Trata-se, portanto, de um autor conformista em dois âmbitos: de um lado, porque entregou os pontos da aristocracia para a burguesia, reconhecendo a derrota de sua classe; de outro, porque não acreditava que ocorreria com a burguesia o que ocorreu com a sua classe - o arresto do poder.
Aplicando uma estratégia de revolução passiva, o pensamento conservador esclarecido, inclusive o da aristocracia, deixou de ser simplesmente reacionário e passou a ser progressivo (não confundir com progressista), ou seja, deseja, ao mesmo tempo, a manutenção da ordem burguesa e o desenvolvimento das forças produtivas. Essa estratégia, que tem raízes profundas ainda no começo da própria Revolução Francesa, ganhou fôlego com a derrota de Napoleão (1815) e a Restauração, mas só se tornou factível, em plano universal, a partir da segunda metade do século XIX - as revoluções de 1848 e a Comuna de Paris (1871) como as duas datas capitais -, quando a bandeira de uma nova revolução, de conteúdo proletário, passou a ter consistência programática e a aglutinação produzida no Terceiro Estado (burguesia e proletariado) não tinha mais nenhum sentido emancipacionista real.
Já vimos que Gramsci (1999 C10V1: 291-2) considerava o conceito de revolução passiva de duas maneiras: como “critério de interpretação” (política e historiográfica) e como “estratégia de ação”. Na distinção prática entre os que encaram a revolução passiva como critério de interpretação ou como estratégica de ação, reside uma diáspora de largo alcance no pensamento político e historiográfico. A revolução passiva, em Gramsci, é critério interpretativo; em Tocqueville, estratégia de ação. Simplificando - pois há inúmeras gradações no caleidoscópio político -, podemos afirmar a existência, nos processos de revolução passiva, de dois pontos fixos no caleidoscópio: o ponto dos que interpretam a revolução passiva (visando à sua reversão e ultrapassagem) e o ponto dos que fazem a ideação do prolongamento do processo, através da formulação de uma estratégia condizente com o objetivo. Se assim o for, Tocqueville tinha uma estratégica de ação de revolução passiva avant la lettre em relação à crítica de Gramsci.
Notas
[1] Precisemos a notação de tradução e tradutibilidade em Gramsci. Para o pensador italiano, conforme demonstra principalmente em uma seção do Caderno 11 (1999 V1: 185-90), existe a possibilidade de as experiências históricas importantes - pelo seu grau de universalidade - encontrar similares em outros ambientes culturais. Dessa maneira, por exemplo, em Gramsci, há sempre a possibilidade de uma determinada linguagem vocabular e cultural encontrar uma tradução em outra - “a linguagem da política francesa [...] corresponde e pode ser traduzida na linguagem da filosofia clássica alemã” (Gramsci, 1999 CC11V1: 185-8). Ou seja, a revolução filosófica de Kant e Hegel tinha uma reverberação na política prática dos revolucionários franceses; citando um verso de Carducci, assim expressa Gramsci essa tradução (revolução francesa-filosofia clássica alemã): “Emmanuel Kant decapitou Deus; Maximilien Robespierre, o rei”. Vale observar que da possibilidade da tradução advém o problema - de difícil resolução - da tradutibilidade de uma linguagem política, filosófica ou científica em outra. O problema da tradutibilidade chega a Gramsci (1999 CC11V1: 185) através de uma sentença de Lenin a propósito do fracasso da revolução no Ocidente após a Revolução Soviética - “Vilitch [Lenin] escreveu ou disse [...] o seguinte: não soubemos ‘traduzir’ nas línguas européias a nossa língua”. Traduzir não significa, portanto, repetir, mas recriar. Em Gramsci, sempre deparamos com traduções e os problemas da tradutibilidade: a reforma protestante foi o ancestral rude da filosofia clássica alemã, o proletariado da Alemanha unificada foi o portador da filosofia clássica, os jacobinos foram Kant e Hegel, etc.
[2] Não custa recordar a periodização mais corrente do binômio revolução-restauração na Revolução Francesa, totalmente subvertida por Quinet: a chamada revolução burguesa (1789-1815), compreendida nos processos contraditórios da Tomada da Bastilha, em 14 de julho de 1789, até a segunda derrocada de Napoleão I, em Waterloo, e o exílio na Ilha de Santa Helena; e a Restauração (1815-1830), compreendida pelo retorno dos Bourbons - Luís XVIII e Carlos X (Conde D’Artois) -, com as tentativas fracassadas do último em retornar à antiga ordem aristocrática, que o fizeram perder o trono através das lutas populares de 1830.
[3] Devemos à leitura de Werneck Vianna (1997: 9-10; 89-121) o brilhante insight de classificar o pensamento de Tocqueville como uma tentativa de formulação de uma estratégia de revolução passiva. No presente artigo, porém, avançamos novas hipóteses em assuntos não abordados por Werneck Vianna.
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