Jaguaribe carne não é vanguarda, mas muito melhor


Jaldes Reis de Meneses.
Professor do Programa de Pós-Graduação em História (UFPB).

Após muitos anos – quase duas décadas, na verdade –, tive novamente a grata oportunidade de assistir a uma apresentação pública (Teatro Santa Rosa, quinta-feira, 31/01/08) do “Jaguaribe Carne”, o movimento cultural criado pelos irmãos Pedro Osmar e Paulo Ró na década de 70, responsável, entre outros feitos, além da longevidade, por uma das fatias cardinais de renovação de nossa música. Seria ato de puro charlatanismo falar em música no nordeste sem mencionar o Jaguaribe Carne.

Na proposta da apresentação, tratava-se de armar no palco do teatro uma espécie “jam session”, criar certo tipo de ambiência informal, um clima, uma domesticidade, de maneira a que possibilitasse espaço para livre improvisação na interação dos músicos, a partir de bases rítmicas e melódicas anteriormente combinadas. Deu certo. A sessão de sexta-feira teve, para mim, alguns momentos sublimes de pura inspiração que só o exercício da liberdade pode proporcionar, pois os músicos estavam franqueados das amarras do tempo, da ditadura da canção, do papel subordinado de acompanhante de alguma pseudo-estrela, enfim, das agruras a que a indústria cultural do capitalismo circunscreveu a criação e a recepção do gosto em música.

Por motivo de poder experimentar à vontade ritmos, texturas, timbres e fusões, mais do que diante de um show previamente ensaiado, que tem começo, meio e fim, o de quinta-feira nunca acaba, funciona como uma espécie de work in progress musical. Uma nova fusão, um acaso timbrístico, abre um campo totalmente virgem de inovações. Da maneira como a façanha foi feita no palco, fiquei especialmente impressionado com o leque de possibilidades que se abrem quando se junta o improviso de pífanos e o ritmo dos caboclinhos paraibanos com os meios da música eletrônica.


Porém, o que significa juntar caboclinho e música eletrônica? Seria vanguarda? Há um grande mal-entendido. Ainda ocorre com o trabalho do Jaguaribe Carne (estou me referindo principalmente ao núcleo permanente mais de trinta anos, Pedro Osmar e Paulo Ró) um fenômeno curioso: embora todos louvem, citem e admirem – o falso consenso é uma forma de esterilizar a rebeldia –, sinto a ausência um exame crítico consistente, ou seja, a crítica não esteve até hoje à altura das insinuações dos dois irmãos. Sequer tenho a pretensão, aqui, de formular a esta crítica, que demandaria tempo de reflexão e exame da farta produção cultural do grupo, mas somente pontuo algumas notas, em tom de diálogo.

Tenho saudades do futuro, dizia o Padre Vieira, embaralhando as noções da história. A idéia de vanguarda origina-se da política revolucionária, principalmente dos leninistas, e logo foi capturada pelos movimentos artísticos insatisfeitos com a arte burguesa. Vanguarda, destacamento avançado, quem abre caminho. Sempre houve um detalhe complicado nesta transferência do uso da expressão vanguarda em arte: o pressuposto do progresso. Vejamos a poesia. Ora, talvez o maior poeta tenha sido o exatamente o primeiro: Homero. Este é o sentido da conhecida frase de Fernando Pessoa, de que há algo de Homero mesmo no mais óbvio e provinciano dos poetas. Por outro lado, a poesia evoluiu do ponto de vista das formas e das técnicas desde Homero. Concebemos a escrita da poesia como homérica e de uma miríade de outras formas. A vanguarda atuou contra o preconceito, desobstruiu a rigidez das formas: no caso do modernismo brasileiro, por exemplo, desmoralizou o academicismo simplório dos que concebiam a possibilidade do poema exclusivamente com métrica e rimas, que nada mais eram no caso da língua portuguesa do que formas históricas emergentes da moderna trova camoniana. Do verso livre ao poema-processo, portanto, tivemos uma saga da atuação da vanguarda, que teve como saldo o reconhecimento de que todos os materiais, todas as fontes, todos os meios, todas as culturas, são escravas à disposição da inspiração do artista. Isso hoje é mais ou menos senso comum, e se há impasses na arte e na figura do artista (apenas como dica para abrir um bom debate sobre os impasses da figura do artista contemporâneo, leiam, o prólogo de “O nascimento da Tragédia”, de Nietzsche) elas são de outra origem e direção, distante, portanto, da hegemonia de qualquer cânon ou index dogmático. Mesmo se crendo aquilo, o Jaguaribe Carne surge precisamente quando dos últimos estertores do trabalho de esclarecimento da vanguarda, nos anos 70, talvez por isso seja, digamos – trata-se de um elogio –, uma vanguarda "quase" extemporânea.

Os códigos da vanguarda não escandalizam mais: virou senso comum. Se as vanguardas cumpriram o papel, continua em aberto a livre experimentação em arte. A experimentação é o espaço do Jaguaribe Carne. Mas a experimentação não é mais vanguarda porque quase foi se desatualizando a necessidade de lembrar aos cultores de uma forma fixa que há outras formas legítimas. É verdade que temos resíduos por aí, autênticos cadáveres ambulantes: os defensores da tradição do frevo, do samba, etc. Mas sequer a indústria cultural, que já entendeu muito bem a todo esse processo, presta muita atenção aos gritos, coitados, de uma tradição que no fundo é uma miragem.

Encerro de maneira aparentemente irônica, mas durante a apresentação de quinta-feira, o tempo inteiro uma idéia me vinha à cabeça: há uma ausência na platéia, sei lá, um produtor cultural de Nova Iorque ou Amsterdã para ver e ouvir as possibilidades de fusão do caboclinho com música eletrônica. Deixa a bossa nova no chinelo. Outra idéia estranha também me ocorreu: será que estamos no limiar da fase em que o biscoito fino do Jaguaribe Carne vai se transformar em campo de experimentação não somente da música, mas do mercado?

Meros devaneios. Mas, em face das provocações do parágrafo anterior, tenho um testemunho pessoal a dar sobre a integridade moral dos dois irmãos de Jaguaribe, que conheci muito cedo, embora tenha perdido contacto: sempre tiveram a coragem de virar as costas para o mercado e o Estado, essas duas formas corrosivas de poder, até mesmo quando as portas se abriram. Pedro e Paulo vão continuar agindo do mesmo modo. Recusaram a proposta de lúcifer ao Doutor Fausto, se afastaram do beijo de Esmeralda, para lembrar o romance de Thomas Mann. A questão não é simplesmente de opção pessoal. Mas de indagar o que é feito da música, da criação. Marx dizia que uma coisa é a cantora cantando no banheiro e outra é quando o empresário se aproxima para vender o canto. A voz do dono e o dono da voz.

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