Poesia e Letra de Música

Poesia ou letra de música, um debate que volta e meia retorna no Brasil. Recordo, recentemente, de um debate incluído na programação do Cineport (Festival de Cinema dos Países de Língua Portuguesa), no auditório da Reitoria, em João Pessoa. Lá estavam, como expositores, o poeta Bráulio Tavares (um artista que não conheço pessoalmente, mas que admiro como poeta, letrista, escritor, roteirista, enfim, um sujeito de excepcional versatilidade, um cara extraordinariamente talentoso, como poucos – o Bráulio atira em muitas direções e se dá bem em praticamente todas) e o professor (e poeta) Amador Ribeiro Neto, colega da UFPB.

Tanto Bráulio como Amador disseram coisas interessantes. Pelo que recordo, Amador desencavou elementos da reunião ancestral música-poesia, citando Platão (aliás, o primeiro dissidente da poética grega, mesmo sendo um escritor imaginativo). A propósito: tenho algumas coisas a dizer sobre Platão, um estranho escritor, poético contra a poesia (antipoético), alguém que usa das armas da poesia contra a própria poesia. Pensemos, sobretudo nos mitos de Atlântida, da Caverna, etc., criações de sua cabeça de gênio (alô, românticos!) em supremo ato de soberba, no fundo querendo demonstrar que sua imaginação, por si só, valia tanto quanto a popular (desculpado, o anacronismo de mencionar “popular” na Grécia clássica). Depois, Amador deu um pulo para o nosso Mário de Andrade (um folclorista, um musicólogo e um poeta), complementou com uma pitada de Erza Pound, por aí. Na sua vez, Bráulio falou da riqueza da tradição popular – assunto no qual é cobra -, chamou a atenção para importância da sonoridade (inclusive verbal) em música, e partiu para caracterizar duas “tribos” - a dos poetas populares e dos eruditos -, de alguma maneira folclorizando os eventuais preconceitos e anátemas, presentes, ademais, em qualquer tribo. Para mim, a duas tribos, no Brasil, já decretaram o armistício, há muito tempo. Tudo em paz na zona dos litigantes da poesia.

Não considero que poesia seja uma questão de erudição, embora ajude. Nem é um problema de sopro divino. Originariamente, a poesia surgiu junto da música – mas logo foi procurar a musicalidade imediata da oralidade, da palavra, em vez da mediação dos instrumentos musicais. A poesia homérica, a rima, a métrica são, a seu modo, musicais e rítmicas. O desligamento entre música e poesia, resultou, com o tempo, é bom que se diga, em vez de perda, na autonomia da poesia literária, nos tempos que passamos a conceber com a assunção da modernidade. Por seu turno, a canção popular moderna - nascida na cola e por dentro da indústria cultural do século XX - trouxe de volta ao proscênio muitos elementos ancestrais da relação poesia-música.

É preciso pensar a canção popular: nem melhor nem pior que a poesia literária. É claro que nem toda canção, mesmo canções extraordinárias – por prezar o efeito musical sonoro, em detrimento da pura verbalidade –, resiste como poesia no papel. Sim, há também a correta obviedade de que o poema é autotélico (não tem uma finalidade fora do espaço branco do papel) e a canção é heterotélica (precisa do suporte das notas musicais).

Há um elemento que desejo trazer ao debate: algumas canções, embora afastadas de constituir grandes poemas literários, são reflexões de elevado grau estético sobre o mundo. Trata-se, portanto, não somente de uma questão de sonoridade. Alguém pode estranhar por que mencionei “estético”, ou seja, fiz alusão à “forma” e não ao “conteúdo” – encarados em suas recepções tradicionais. Foi de propósito. Para mim, o letrista conta com uma possibilidade formal que o poeta literário não dispõe: os timbres dos instrumentos, as ênfases musicais coladas às palavras, os andamentos e a emoção do cantor. A nova ambiência das palavras muda tudo, assim: uma sonorização em auxílio do conteúdo da canção. No ofício, poucas tradições musicais foram tão longe como a brasileira. Os exemplos são inúmeros.

Fico, aqui, com o exemplo de uma canção que escutei hoje, ao acaso, e me motivou a escrever este post: o blues “Quem Nasceu?”, escrito por Péricles Cavalcanti, na voz de Gal Costa, incluída no disco de 1974, chamado “Temporada de Verão”, gravado ao vivo no Teatro Vila Velha (Salvador), com Caetano, Gil e a própria Gal. Um disco de que gosto muito. O forte da canção de Péricles, mais que a sonoridade, é uma espécie de poesia moderna: parece que Péricles pretende desmascarar certa atitude romântica, contemplativa da natureza (o sol nasceu/ a luz nasceu/ é tudo mentira/ é tudo figura). Estamos em presença de um interessante jogo criativo no estribilho: "é tudo mentira/ é tudo figura", ou seja, tudo sobre o "nascimento" da natureza é imagem. Ora, no árido deserto do real - tenho a mente voltada ao registro real lacaniano, na diferença que ele estabelece entre real, simbólico e imaginário, melhor dizendo, entre real e realidade -, nem o sol nem a luz nascem, o sol e a luz chegam, irrompem, porém estão longe de nascer. Nascer é a licença do poeta, e se pode fazer um bom poema com base na licença metafórica, mas se pode também fazer um poema ao inverso, pelo avesso - por que não? -, inspirado na crueza nua, física, sensorial, imanente e antitranscendental do real.

O mote do poeta ao desatar a cadeia de significações tem por motivo um dos acontecimentos centrais na vida de qualquer um de nós: a notícia de ser pai, ou o nascimento de um filho, um rebento. A partir da notícia do rebento, me parece que Péricles Cavalcanti estabelece senão uma ruptura, nem uma clivagem, uma diferença com a natureza. A diferença que funda a sociedade, naquele momento prometeico em que, na tradição cristã, precisamos viver com o suor de nossos rostos e o trabalho. Tudo isso numa canção? Pois é. Tudo isso na letra de uma canção. A canção ganha aproveitando o potencial de alusividade da música. Neste sentido, o autor precisa da simbiose com a música, visando reforçar a mensagem. Precisa da voz de Gal Gosta em plena forma, da sanfona de Dominguinhos e a guitarra de Lanny Gordin. A alusividade da música, em algum momento, para dizer "algo" direto de nossa experiência precisa do recurso à letra, compondo uma espécie de crônica moderna a qual compartilhamos todos nós. Gal, neste caso, seria uma divina cançonetista (adoro esta palavra atualmente em desuso) - João Gilberto pertence a estripe dos cançonetistas -, mas temos, contíguo, a figura dos trovadores da saga urbana, poetas da voz e violão, portanto poetas de um outro tipo, diferentes do poeta literário: mirem em Bob Dylan.

Enfim, o conjunto resultou numa espécie de poema de novo tipo. "Quem Nasceu?" não foi concebido como um poema para ser recitado, mas cantado. Um gênero de fronteira entre a trova e a poesia literária, reunindo elementos de uma e de outra tradição. Sequer dá para julgar "Quem Nasceu?" pelo grau de escritura de um grande poema literário (acaso lido dessa maneira, seria uma letra fraca ou no máximo razoável). Mas, como é lídimo, ao menos para mim, tratar-se de outra coisa, pode ser julgado e apreciado em várias embocaduras (da mesma maneira que um poema literário), desde o estético até o filosófico, exorbitando da esfera específica da música, como fiz até aqui. Julgado na totalidade de uma canção, "Quem Nasceu?" só faz crescer, vira uma criação artística com muito a dizer de nossa experiência no mundo. (Jaldes Reis de Meneses).

Quem Nasceu?

o sol nasceu
a luz nasceu
o dia nasceu
e o sol nasceu

é tudo mentira
é tudo figura
quem nasceu fui
quem nasceu foi você
e a gente não sabe bem
como e nem sabe porque

pra mãe natureza
o templo do pai
é tudo mentira
é tudo figura
quem tem mãe sou eu
quem tem pai é você
que embora não fiquem com a gente
é impossível esquecer

Não encontrei "Quem Nasceu?" com Gal Costa no youtube, mas pode ser conferido na interpretação do próprio Péricles Canvalcanti (com Gal é bem melhor), junto com Márcio Montarroyos. Confiram: http://www.youtube.com/watch?v=tw0V6mSuWOE

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