A transição cubana

Jaldes Reis de Meneses.
Professor do Programa de Pós-Graduação em História (UFPB).

Fidel Castro vinha preparando o paulatino desembarque pessoal do poder desde o anúncio de sua doença, dois anos passados. Continuará influente no regime cubano até o dia de sua morte, cedo ou tarde, e não somente na condição de mito ou página da história – os lugares comuns que ouvimos no ocaso de qualquer líder. Fidel continuará um líder prático, responsável (senão o principal) pela direção política, portanto mais que um oráculo a quem se recorre pedindo conselhos nos momentos difíceis. Por isso, mais do que no ato formal de renúncia, deve-se falar e começar a prestar atenção no processo de transição cubana.

Desde que Fidel Castro logrou derrubar o antigo regime corrupto de Fulgêncio Batista, o legado do novo regime vem sendo objeto de acirrada controvérsia política e ideológica, não somente entre esquerda e direita, mesmo no seio da própria esquerda nunca foi pacifico a adesão ao regime cubano. As polêmicas giravam em torno da natureza do regime social vigente em Cuba e de seus desdobramentos em todos os setores da vida social, desde a economia até a cultura. Talvez nos dias de hoje, mais de quinze anos do fim da União Soviética, tais polêmicas tenham cessado, mas persiste uma questão, para mim pacífica, mas para muitos nem tanto: a questão em pauta em Cuba não diz respeito a qualquer veleidade de construção imediata do socialismo, mas de resistência principalmente à hegemonia norte-americana no continente. Por enquanto, o futuro, o limiar de Cuba reside principalmente em resistir: aguardar proativamente a uma onda mundial de questionamento do poderio imperial do adversário, ou, também é possível, de mudanças internas substanciais, inerentes à sociedade civil americana. De todo modo, expectativas de médio e longo prazo.

Dessa maneira, a situação estratégica geral de Cuba hoje é melhor que na época do desaparecimento da União Soviética, começo dos anos 1990: os apoios materiais do governo da Venezuela e a formação de um bloco continental de países juntos com a Bolívia, o Equador e a Nicarágua fornecem à ilha uma margem de manobra inexistente até a poucos anos atrás. Vale aduzir, ao mesmo tempo, que os governos do Brasil, Argentina e Chile, conquanto não componham um bloco com Cuba, a exemplo dos recentes países do “bloco bolivariano”, são simpáticos ao país, especificamente ao exemplo histórico de resistência, e mantêm boas relações com o regime.

Há um complexo problema político a ser deslindado no interregno do debate sobre a transição cubana. Costumo afirmar, com certo exagero, somente visando fixar um sistema de relações de força que em geral os leigos não compreendem, à primeira vista, o seguinte: há três destinos - com licença da cacofonia - predestinados a Cuba, não mais. Porto Rico, Haiti ou Estado Nacional autônomo.

Passemos em revista as duas consideradas “alternativas trágicas”. A "opção"Porto Rico seria uma anexação aos Estados Unidos, como protetorado ou algo assim. Sem dúvida, uma alternativa dificílima, pois foi se constituindo na história cubana um sentimento nacional muito forte, impregnado na cultural política local (José Martí significa precisamente o símbolo vivo desse sentimento de nacionalidade). Existe, por seu turno, digamos, a “alternativa Haiti”, e o que quero conjecturar com isso? Uma guerra civil, fratricida, descontrolada, das forças políticas em contenda, desde o PC até a migração aquartelada em Miami, travada em termos de África Central e Subsaariana, levando ao final da guerra sem quartel à desorganização da sociedade cubana. As pessoas se espantam quando menciono a esta hipótese, nem sei bem o motivo. É difícil Cuba fazer às vezes do Haiti, mas se dizia algo parecido sobre a Alemanha antes da ascensão do nazismo, ou que o conflito étnico e religioso havia desaparecido na Europa antes do episódio de retorno à guerra entre a Sérvia e a Bósnia (ocorrido depois da fragmentação da Iugoslávia de Tito, começo dos anos 90).

Afastadas as duas hipóteses trágicas, sobra a que todos torcemos e apoiamos: Cuba como Estado Nacional soberano. Eis um debate complicado, no qual penso que Florestan Fernandes tenha jogado muitas luzes. O decano dos sociólogos brasileiros, já falecido, em lance brilhante, no livro “Da Guerrilha ao Socialismo: a Revolução Cubana” (1979) fez uma observação estratégica perfeita: mesmo tendo realizado a revolução, as linhas de força da antiga situação colonial foram cortadas, mas podem voltar a operar, até pela proximidade geográfica com os Estados Unidos. Entendamos-nos. Nada do atinente ao cenário de retorno das linhas de força neocoloniais se trata simplesmente de um problema ideológico, de vontade política, mas estrutural. O conceito de relação de forças, quem estudou Gramsci ou Foucault sabe do que falo –, neste caso, opera com dois vetores históricos: a geopolítica norte-americana atual e as determinações da situação neocolonial com a qual Cuba rompeu no ato de vontade, no salto para frente de uma revolução política. Mas as linhas de força da geografia e da economia continuam a rondar como um espectro a situação cubana. Pensemos somente, para ficar em um exemplo evidente, na fragilidade estrutural da economia cubana (não estou falando em igualdade social nem em políticas de saúde e educação). Eis o complexo nó gordio que a atual geração de cubanos começa a desatar. De alguma maneira, tais linhas de força sempre estiveram presentes, é verdade, mas com o tempo, as questões que assinalo em plano estrutural retornarão na forma de conjuntura, na duração do processo que se abriu: a transição do regime cubano.

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