Vinícius de Moraes, Espinosa e Nietzsche

Adoro Vinícius, o que pode parecer uma estranha e despropositada devoção, pois talvez nenhum poeta brasileiro tenha encarnado tanto, em vida e obra – nele uma coisa só –, as ciladas do amor romântico, esta cria histórica da modernidade que há muitos parece um sentimento natural existente desde sempre. Mentira. O amor romântico, a vida de paixão na esfera privada – e laica – entre um sujeito individual e um objeto de prazer e dor, homem ou mulher, trata-se da mais renitente das sociabilidades modernas. Embora em crise no mundo contemporâneo, o amor romântico responde por muitas de nossas expectativas, sendo ainda a forma de gosto estético mais apreciada, seja na poesia, seja na música popular. Adoro o Vinícius romântico, mas não é o motivo de minha devoção. Gosto de Vinícius, em primeiro lugar, pela lição de despojamento – o poeta erudito e ex-diplomata que entrou de cabeça no mundo do samba e da música popular, o branco mais preto do Brasil, na linha direta de xangô, saravá! Muitos criticaram duramente as opções de Vinícius. Entre os amigos, Rubem Braga, que escreveu a seguinte quadrinha-paródia sobre “Garota de Ipanema”: “olha, que coisa mais triste/ coisa mais sem graça/ é esse velhote/ que vem e que passa/ num pesado balanço/ a caminho do bar”. Embora amigos, Braga jamais perdoou o movimento de Vinícius da poesia literária em direção à música popular, considerada arte menor, efêmera. Braga foi somente um entre muitos críticos. Feitio de traição, era como se o poeta de maior capacidade verbal e imagística de sua geração abrisse mão da ilusão e da pretensão da eternidade. De hoje, penso que esteja bastante claro que Vinícius só cresceu aderindo à música popular, para onde transferiu a poesia de amor romântico, mas há, além disso, outro Vinícius, revelado no encontro com a música. Um Vinícius sábio. Penso no Vinícius dos tempos da série de afro-sambas, que precisam ser redescobertos não somente na riqueza rítmica de Baden, porém pela qualidade da poesia. Lá nos afro-sambas a muito do melhor Vinícius. Espinosa costumava repetir no século XVII que a vida é feita de encontros, de bons e maus encontros. Este materialismo do encontro orienta uma dos pontos axiais da filosofia de Espinosa. É preciso se jogar na aventura da vida, portanto, para encontrar, se abrir, inclusive à possibilidade do encontro ruim, embora seja preciso ter cuidado. Vinicius repôs o dito de Espinosa em conhecidos versos do “Samba da Benção” (parceria com Baden Powell): “a vida, amigo, é arte do encontro/ embora tanto desencontro nessa vida”. Espinosa, parceiro de Vinícius. Disse em algum lugar deste blog que a leitura de “O nascimento da Tragédia”, de Nietzsche, pode ser útil na discussão sobre os impasses presentes na figura histórica do artista. A intuição nietzschiana revolucionou a interpretação da tragédia grega principalmente nos termos seguintes: a exposição de alegria em arte pode ter origem na dor e a exposição de dor na alegria. Dor produz alegria e alegria produz dor. No “Samba da Benção”, escreve Vinícius de Moraes: “Mas pra fazer um samba um samba com beleza/ É preciso um bocado de tristeza/ Senão não se faz um samba, não/ (...)Fazer samba não é contar piada/ Quem faz samba assim não é de nada/ O bom samba é uma forma de oração/ Porque o samba é a tristeza que balança/ E a tristeza tem sempre uma esperança/ De um dia não ser mais triste não...” (Jaldes Reis de Meneses).

Comentários

Anônimo disse…
Meu caro professor de teotia da história, vou ao encontro dessa sua sagaz reflexão. O melhor de Vinícius foi expresso em seu mergulho na intensidade do vivido. Em época e lugares marcados por uma cisão, tão clara quanto hipócrita, entre o dever e o desejo, sua opção pelo dionisíaco revelou limites e borrou fronteiras entre o eudito e o popular - o Orfeu Negro do Carnaval-, a arte e a política - a Rosa de Hiroshima-, o prosaico e o fantástico - "Era uma casa muito engraçada..." SARAVÁ!
Anônimo disse…
Conversando sobre mulhers, poesia e música, Vinícius disse:
"Que eu amo o amor é verdade. Mas por esse amor eu compreendo a soma de todos os amores, ou seja, o amor de homem para mulher, de mulher para homem, o amor de mulher para mulher, o amor de homem para homem e o amor de ser humano pela comunidade de seus semelhantes. Eu amo esse mas isso não quer dizer que eu não tenha amado as mulheres que eu tive.Àquelas que amei realmente, me dei todo.Penso que o amor que constrói para a eternidade é o amor paixão, o mais precário, o mais perigoso, certamente o mais doloroso. Esse amor é o único que tem a dimensão do infinito.E eu só tenho amado desse modo."

Indagado sobre sua fama de volúvel:
"Na minha vida tem sido como se uma mulher me depositasse npos braços de outra (*rs...).Isso talvez porque esse amor paixão pela sua própria intensidade não tem condições de sobreviver. Isso acho que está expresso com felicidade no distico final do meusoneto "Fidelidade"; que não seja imortal posto que é chama/ mas que seja infinito enquanto dure".
Sobre sua música e poesia: "Não separo a poesia que está nos livros da que está nas canções.
Acho que sou um homem bastante sozinho. Ou pelo menos eu tenho um sentimento muuito agudo de solidão. Eu só sei criar nador e natristeza. mesmo que as coisas que resultem sejam alegres! Se a felicidade existe, eu só sou feliz enquanto me queimo e quando a pessao se quima é feliz. A própria felicidade é dolorosa...

Eis alguns segredos de uma figura humana grande e que vive a todo risco -- e de repente, não mais do que de repente ele se transforma em outro é o nosso Poetinha (...)Clarice Lispector

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