Araçá Azul, a bricolagem das referências

Dez minutos de prosa. Escutando "Araçá Azul", de Caetano Veloso, no MP3, entre uma aula e outra. Um disco extraordinário, mas sobre o qual sequer tenho tempo de fazer, agora, um texto mais demorado. Somente quero pontuar o seguinte, depois de uma semana (re)escutando os discos mais antigos de Caetano Veloso, desde o primeiro, o diáfano "Domingo" (1966) até o (pop)vanguardista "Araçá Azul" (1972): o compositor baiano se apresenta quase sempre renovado, mas de uma maneira peculiar: por carregar uma formação cultural (mais que estritamente musical) saturada de referências da cultura de massas do século XX (da bossa nova ao rock), e também da cultura popular do recôncavo baiano (o samba de roda), mais a vanguarda poética, principalmente, ele consegue o feito de fazer desdobrar de muitas das canções pessoais ou das soluções musicais (penso em soluções musicais mais que nos arranjos) feitas nas primeiras gravações elementos que serão repostos e modificados nos novos trabalhos. Continuidade na renovação. O novelo é completo desde o começo, aberto, a partir daí, à confecção de todas as tramas do labirinto. Como se fosse um grande e mesmo baú de onde sairiam as peças de repertório de uma nova mistura. Cada uma das peças como um varal de roupas estendidas ao vento, ao brilho do sol, depois recolhidas secas. Antevejo, por exemplo, no arranjo e na entonação da voz no clássico latino "Tu me acostubraste" (terceira faixa de "Araçá Azul") a artesania (artesania?, rs) futura de "Fina Estampa" (1994). Em "Sugar cane fields forever"(regravado em "Noites do norte", 2000), além das duas referência básicas - a canção dos Beatles e os maravilhosos versos de Souzândrade -, detectamos na entonação como é dito o refrão "pra boranhém", a mesma rítmica e sonoridade de "How beautiful could a being be", de Moreno Veloso (uma das faixas do disco "Livro", 1997). Moreno Dj de Caetano, embora o mais antigo seja Dj dele mesmo. A bricolagem das referências atua todo o tempo. Em operação, temos o método da montagem sugerido por Walter Benjamin nas "Passagens". Os exemplos podem ser multiplicados à vontade, quase ao infinito, mas minha visada, neste momento, é sintética; outros, analíticos, poderão se divertir estabelecendo as pontes estéticas, os desdobramentos, entre os primeiros e os mais recentes trabalhos. Caetano chamou a esta habilidade na bricolagem de retomada da “linha evolutiva” da canção brasileira, em artigo, hoje célebre, para a revista Civilização Brasileira (1966). Não era bem isso, concordo com Antonio Cícero: em música popular, as inovações se dão mais por irrupção que por evolução técnica; por outro lado, porém, Caetano retomou, nos termos em que saudou corretamente, logo após a edição do artigo sobre a tal “linha evolutiva”, Augusto de Campos, o sentido maior de modernidade do espírito que animou a atitude musical de Donga a João Gilberto, de Noel Rosa a Tom Jobim: a abertura para o mundo inerente a música popular no Brasil. Em termos de música popular, somente outro pais teve o grau de abertura do Brasil, os Estados Unidos. Cuba chegou perto, mas ficou a meio do caminho. Havia uma pedra? Chega de intervalo. Vou retornar à minha aula. (Jaldes Reis de Meneses).

Comentários

Amazongirl disse…
Caro Jaldes,

Poderias me esclarecer essa passagem? Que versos de Souzândrade? De que poema? (Em "Sugar cane fields forever"(regravado em "Noites do norte", 2000), além das duas referência básicas - a canção dos Beatles e os maravilhosos versos de Souzândrade)

Obrigada!

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