Aracy de Almeida, domingo, samba da mais-valia absoluta
Domingo escutando Aracy de Almeida, a maior das cantoras da época do rádio. A maior. Sequer porque tivesse a voz possante - uma Carlos Gardel ou um Chico Alves de saias - mas porque, embora de voz nem tão possante, sem exageros melodramáticos, Aracy tinha uma dicção límpida. Em suas gravações a voz não precisava sair a gritar para se impor aos instrumentos (adiantando João Gilberto, que sem dúvida escutou a exaustão as lições de Aracy). Desempenho raro em cantoras antigas, entende-se palavra por palavra do que Aracy canta. Tudo perfeito. Morena mulata, Aracy era linda. A mim impressiona como ficou feia, masculina no júri de Sílvio Santos. Que mais gosto de Aracy? Tanta coisa, "Camisa Amarela" (Ary Barroso) em sua melhor gravação, Noel, fantástico (de "Último Desejo" a "Século do Progresso", o progresso da arma de fogo a igualar o poder de destruição do malandro e do cidadão comum, no olhar dessacralizador de mitos de Noel Rosa, antes de Chico Buarque, o poeta que cantou com todas as letras a bola do declínio da malandragem clássica). A grande gravação de Aracy? Difícil saber, mas ela é insuperável cantando o samba da mais-valia absoluta ("Ai, Ai, Meu Deus" ou "Tenha Pena de Mim", Ciro de Souza e Babaú), e olha que Elza Soares gravou o mesmo samba na década dos 60. Mesmo assim, Elza, grande cantora, não logrou superar Aracy. O que chamo da samba da mais-valia absoluta, gracioso manifesto de protesto contra a exploração (precisamos dissociar a música de protesto do senso comum da marcha militar, ainda volto ao assunto - por dentro da marcha militar se encontra um projeto, nem sempre democrático, de sociedade), merece o conhecimento da história de como foi composto: Babaú era um trabalhador de um boteco no morro da Mangueira, em 1938, pleno Estado Novo, que reunia a nata do samba. Um faz tudo, um negro que trazia a cerveja gelada, alguém que lavava o vômito dos bêbados depois que acabava a farra. Compositor de vários sambas e choros de sucesso (virou "Babaú da mangueira"), nem precisava de mais nenhum. Precisamente "Tenha pena de mim" é único, genial. Superlativo. Grande Babaú.
Tenha Pena de Mim
Ai, ai meu Deus
Tenha pena de mim! Todos vivem muito bem
Só eu quem vive assim. Trabalho, não tenho nada
Não saio do miserê. Ai, ai meu Deus
Isso é pra lá de sofrer
Sem nunca ter
Nem conhecer felicidade. Sem um afeto
Um carinho ou amizade. Eu vivo tão tristonha
Fingindo-me contente. Tenho feito força
Pra viver honestamente
Tenha Pena de Mim
Ai, ai meu Deus
Tenha pena de mim! Todos vivem muito bem
Só eu quem vive assim. Trabalho, não tenho nada
Não saio do miserê. Ai, ai meu Deus
Isso é pra lá de sofrer
Sem nunca ter
Nem conhecer felicidade. Sem um afeto
Um carinho ou amizade. Eu vivo tão tristonha
Fingindo-me contente. Tenho feito força
Pra viver honestamente
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