Iraque - 5 anos de ocupação americana

O artigo abaixo foi escrito no fogo, há precisos 5 anos, quando da ocupação de tropas militares norte-americanas no Iraque, publicado no portal www.wscom.com.br e depois na revista "Conceitos". Na data mesmo do tétrico aniversário, hoje (19/03) acredito que o artigo continua atual, porque ali estão expostas as vísceras da crise em que o governo Bush, principalmente, afogou a economia e a política dos Estados Unidos. Em um eventual novo artigo, não há retificação a fazer: minha visada estratégica estava correta, podendo ser retificado, é claro, um ou outro elemento pontual (seria mais comedido na análise positiva que fiz do “multiculturalismo", por exemplo). Contudo, acertei no essencial, qual seja: as dificuldades, por dentro, na sociedade americana, e por fora, no espaço mundial, do projeto imperial neoconservador, de feição romana. Visto de hoje, com as bolsas derretendo e o retorno da política de massas nos Estados Unidos (cujo principal índice é a alta intensidade de participação nas primárias da eleição presidencial - para além dos conteúdos dos candidatos), é relativamente fácil cotejar o diagnóstico geral do artigo com os fatos da realidade, operação nem tão simples em 2003. (Jaldes Reis de Meneses).

O Futuro como Tragédia

Jaldes Reis de Meneses
Professor Adjunto de História Contemporânea (UFPB)


Nossa geração – homens e mulheres que não testemunharam a Segunda Guerra Mundial – talvez esteja começando a viver uma daquelas encruzilhadas trágicas da história, como nenhuma outra da existência de todos nós, nascidos de 58 anos para cá.

Neste sentido, não é apenas uma frase de efeito afirmar: o futuro do mundo hoje corre mais perigo do que, por exemplo, no tempo da guerra fria (1947-1989); os acontecimentos que serão desatados a partir da entrada das tropas da coalizão anglo-americana no Iraque (sucedido do eventual êxito do cerco a Bagdá), certamente, oferecerão mais riscos de longo prazo do que a crise da Baía dos Porcos (Cuba, 1962), quando a ameaça de uma guerra nuclear entre os Estados Unidos e a União Soviética pôs o futuro da humanidade a um fio da destruição.

Quase todos os analistas políticos e militares dão como certo a vitória dos Estados Unidos e da Inglaterra no Iraque e a deposição (certamente morto) de Saddan Hussein, restando saber prazos, custos e conseqüências. Vale perguntar: onde reside a certeza da vitória anglo-americana? Começamos a desvelar o fio da tragédia: a certeza da vitória não reside no heroísmo dos soldados – gente covarde que se assusta com baixas de algumas dezenas (números inexpressivos numa guerra) –, mas no aparato bélico, na superioridade tecnológica do complexo industrial-militar dos Estados Unidos. As prédicas mais sombrias de Paul Baran, Paul Sweezy, Ernest Mandel, Michael Kridron e István Mészáros, em diversos matizes teóricos (às vezes conflitantes) inspirados em Rosa Luxemburgo, da economia armamentista como componente macroeconômico indispensável na reprodução do capitalismo tardio – a época histórica do capitalismo emersa depois da Segunda Guerra Mundial – parecem se confirmar.

Dessa maneira, a vitória anglo-americana será estrutural: o Iraque não tem, na retaguarda dos campos de batalha, uma conexão estratégica e comercial com uma economia permanente de guerra, suas armas remontam os anos 80, os canais de comércio de armas com a Rússia estão fechados desde 1991 e o contrabando resolve o varejo, jamais o atacado. Herança dos tempos da economia soviética, a Rússia, embora em decadência, é ainda o único país, afora os Estados Unidos, que possui realmente capacidade instalada e pesquisa científica para uma competição armamentista. A China, a França, a Inglaterra, a Índia e alguns outros países (como o Brasil na época do regime militar) têm uma preocupação no domínio de tecnologia nuclear e uma política de segurança baseada na produção de novos armamentos, mas estão longe dos Estados Unidos e da Rússia.

Por contar com uma economia permanente de guerra, o alto-comando anglo-americano tem em suas mãos recursos infinitos: se os mísseis de alvo dirigido por satélite ou a “mãe de todas as bombas” não resolverem a parada... por que não a bomba atômica? A terra de Maomé ficaria para o desfrute das baratas. Evidentemente, o argumento do holocausto nuclear está, por enquanto, fora de cogitação, mas não é um devaneio: se a bomba atômica existe, ela pode ser usada.

O orçamento militar dos Estados Unidos em 2003 é de 399 bilhões de dólares, observando-se que os custos da guerra do Iraque não estão consignados nessas despesas, constituindo crédito suplementar. Todo esse dinheirão destina-se à manutenção e aparelhamento das forças armadas, e principalmente encomendas de pesquisa científica e fabricação de novos armamentos junto aos grandes monopólios do complexo industrial- militar (Boeing, Raytheon, Lockheed, General Eletric, etc.). Repare-se que quase todas essas empresas têm um setor de encomenda civil, sendo elemento de lobby empresarial, em tempos de recessão (como no caso das fábricas de aviões), pressionar o Estado no sentido de aumentar os gastos militares.

A escalada de gastos militares americanos no governo George W. Bush é um problema estratégico de suma importância no entendimento do funcionamento da economia política atual dos Estados Unidos. Durante os dois governos Clinton (1993-2000), tivemos uma inflexão dos gastos militares, em 1997 o orçamento do Pentágono foi de 234 bilhões de dólares, 3% do PIB norte-americano, representando a menor parcela em gastos de defesa desde a Segunda Guerra Mundial.

A inflexão clintoniana – esse o ponto – representou uma contratendência na economia política dos anos 80 (era Reagan), de keynesianismo militar escancarado, quando o orçamento do Pentágono cresceu na ordem de 5% ao ano, atingindo o ápice de 371 bilhões de dólares em 1986. Reagan buscava quebrar o Estado soviético numa corrida armamentista que este não tinha mais como suportar, enredado na crise de produtividade das economias burocráticas e acossado pelo despertar de uma sociedade civil insatisfeita.

O elemento de ordem estratégica de mudança entre a “era Reagan” (Bush pai foi uma continuidade de Reagan) e a “era Clinton” é o seguinte: tal como tivemos um movimento de reforma do Estado em todo o mundo capitalista nos anos 90, inclusive o Brasil – o diagnóstico era o da crise fiscal do Estado, lançado teoricamente ainda nos anos 70 por James O’Connor (curiosamente, um intelectual marxista sério cujas idéias foram aproveitadas pelos neoliberais) –, o governo Clinton também tentou realizar uma Reforma do Estado, com a diferença que no Brasil vendemos as estatais, e Clinton procurou cortar na carne do complexo industrial-militar. O diagnóstico de Clinton era atacar os dois grandes problemas da economia americana: o déficit orçamentário e a balança comercial negativa. O plano obteve êxito: o governo conseguiu, em 1999, zerar o déficit público e a economia americana viveu um surto de prosperidade econômica, embora o saldo comercial negativo tenha continuado. Desde que tomou posse, cumprindo promessas eleitorais, George W. Bush vem destruindo o patrimônio fiscal deixado por Clinton, com drásticas reduções nas alíquotas dos impostos, em benefício dos mais ricos, e cortes nos gastos sociais vinculados aos mais pobres, enquanto reserva as principais fatias do orçamento ao gasto militar.

A execução do diagnóstico da crise fiscal encontrou forte oposição, advinda dos setores da elite americana que estão hoje no poder. Podemos constatar, assim, que havia, na oposição às diabruras do presidente anterior com estagiárias no Salão Oval, algo mais que segredos de alcova. Embora tenha se envolvido em operações militares em Kosovo, Somália (herança de Bush pai) e ameaçado a Coréia do Norte com o bombardeio da Usina Atômica de Yongbyon, o fato é que a gestão Clinton, em política internacional, representou certa distensão, procurando estabelecer formas de acordo com os dois países-eixo da União Européia – França-Alemanha – e, na região do oriente médio, patrocinando o acordo de Oslo (1993), entre palestinos e israelenses. No front interno, a “era Clinton” abriu espaço a um interessante e bem-vindo multiculturalismo – a cultura do politicamente correto e o incentivo às políticas sociais de ação afirmativas, tão incompreendidas no Brasil por certa esquerda e direita. Enfim, Clinton representou uma linhagem política americana à maneira de F. Roosevelt (1933-1945), em que pese o imperialismo e o intervencionismo externo, de busca de formas de consenso social interno e entre as demais nações capitalistas. Decididamente, conquanto um homem do status quo, Clinton não foi um marionete do complexo industrial-militar.

Pois bem: a crise atual começa a ganhar contornos de longo prazo muito graves. No período da guerra fria, apesar da retórica de ambos os lados, o fato é que os acordos tácitos de divisão do mundo entre as duas grandes superpotências emergentes – Estados Unidos e União Soviética –, encetados na Conferência de Ialta (1945) foram respeitados. A crise cubana em 1962 chegou às portas do holocausto nuclear precisamente porque a ilha estava situada na esfera da influência americana – Cuba era uma neocolônia dos Estados Unidos desde 1902 (emenda Platt) –, sendo, portanto, mais exceção do que regra.

Do lado americano, contribuiu para o respeito aos acordos de Ialta o conteúdo doutrina prevalecente na guerra fria, formulada pelo antigo embaixador dos Estados Unidos na União Soviética, George Kennan – as chamadas “políticas de contenção”. Apesar de conservador, a visada estratégica de Kennan foi genial: ele afirmou que se os Estados Unidos conseguissem erguer um cordão sanitário, cercando a área de influência soviética, impedindo sua expansão, o modelo cairia por dentro, a partir das contradições de seu desempenho econômico e político. Dessa maneira, a ordem era não deixar crescer, em nenhuma hipótese, os partidos comunistas e socialistas radicais no ocidente – motivo do apoio norte-americano aos golpes militares na América Latina. A geopolítica norte-americana na guerra fria, não se pode negar, foi uma política hegemônica – no sentido de tentar aglutinar, através de um certo consenso, os países do “ocidente” capitalista contra o “oriente” soviético. Na aplicação dessa política hegemônica, tivemos a reconstrução da Europa em frangalhos – Plano Marshall –, a modernização do Japão, Coréia do Sul e Taiwan, algum beneplácito no desrespeito ao padrão dólar-ouro da parte de países em ciclo de desenvolvimento, como o Brasil.

Os primeiros sintomas da escalada norte-americana rumo ao unilateralismo de hoje começou já em 1971 (governo Nixon), tendo como marco o abandono do padrão dólar-ouro e a assunção do padrão dólar-dólar. Daí em diante, os fluxos financeiros internacionais foram inteiramente desregulamentados, e o mundo sujeito a repetidas crises financeiras. O que começou na política monetária, mais de trinta anos passados, agora chega ao ápice, através da tentativa de controle militar direto e total sobre o mundo.

Rigorosamente, as bases da estratégia norte-americana atual – a doutrina da “guerra preventiva” (a antecipação destrutiva de qualquer inimigo potencial) – tem origem em 1991, quando Bush pai encarregou o mesmo grupo de pessoas que hoje comanda a política externa de Bush filho – Colin Powell, Richard Perle, Paul Wolfowitz (sem dúvida o mentor intelectual) e outros – a formular uma estratégia de segurança para os Estados Unidos depois da guerra fria.

Neste sentido, a primeira guerra do Iraque (1991), de alguma maneira, já foi resultado de aplicação da nova estratégia. Os Estados Unidos resolveram ocupar o vazio deixado pelo fim da União Soviética preenchendo todos os espaços, cuidando de decapitar qualquer nação emergente, no terreno político, econômico ou militar. Começava a tentativa de construir uma nova era de Império no mundo. O envio de tropas para liberar o Kuait da invasão promovida por Saddan Hussein foi somente o alibi. Saddan Hussein subestimou os Estados Unidos e analisou mal o fim da União Soviética: teve uma ilusão parecida com a dos otimistas do ocidente, embora trocando o registro pacifista para imperialista. Para ele, tratava-se, com o vazio deixado pela União Soviética, de preencher rapidamente o espaço, consolidando o Iraque como potência regional dominante do mundo árabe e islâmico.

Os Estados Unidos jamais sonharam com o projeto de paz perpétua kantiano (uma comunidade internacional cosmopolita). Os estrategistas de Washington perceberam em 1991 que haver vazio de poder seria um equívoco fatal: se antes todos os espaços eram preenchidos pelo litígio das duas grandes superpotências, doravante só haveria espaço para a soberania absoluta norte-americana. Porém, a erição de um império é uma operação das mais difíceis. Resumamos em dois motivos coligados. Em primeiro lugar, o império – uma soberania absoluta que sobrepuje a dos Estados Nacionais – é somente uma tendência atual, mas dificilmente será uma realidade. Para o novo império se consolidar, é preciso destruir o sistema de Estados Nacionais, principal sistema político mundial desde o século XVIII (tomamos como marco histórico o processo das revoluções burguesas), cuja formação foi um longo processo que remonta à consolidação das monarquias absolutistas, nos estertores da idade média e começo da modernidade. Será preciso submeter formações nacionais consolidadas como a França e a Alemanha. Em segundo lugar, e em conseqüência, o império é uma forma política muito anterior ao capitalismo, cuja definição política ocidental remonta, sem dúvida, à experiência do Império Romano (antiguidade clássica) e do Império Carolíngeo (idade média). Os Estados Unidos enfrentarão mais problemas que os romanos, pois estes não tinham Estados Nacionais para derrotar.

Na história do capitalismo convivemos com alguns impérios, como o Inglês (o Império Otomano não era capitalista, e o Império Austro-Húngaro mais uma curiosa simbiose dos restos do antigo Império Sacro-Alemão com monarquia absoluta do que propriamente um império capitalista). Porém, o Império Inglês – onde o “sol nunca se punha” – jamais ambicionou a soberania absoluta do mundo, constituindo a construção de uma estratégia imperialista que não ousou submeter o centro, mas a periferia africana e asiática.

A experiência histórica contemporânea que mais lembra o projeto estratégico de George W. Bush – talvez por isso o futuro do mundo nos reserve uma grande tragédia – foi o nazismo de Hitler. Recordemos o slogan nazista: um império de mil anos. Ora, o objetivo de Hitler não era submeter a periferia do capitalismo (Império Inglês), mas dominar todo o continente europeu (inclusive a União Soviética). Este objetivo, inclusive, conduziu Hitler a cogitar um acordo a Churchill em 1940, pouco depois dos bombardeios de Londres: trocar a manutenção do Império Inglês, ameaçado na guerra, pelo reconhecimento dos territórios ocupados pela Alemanha no continente europeu. Churchill não aceitou o acordo.

Alguns podem considerar exagero comparar Bush e Hitler, alegando as sólidas bases liberais dos Estados Unidos. É preciso cautela e não exagerar a alergia dos liberais ao totalitarismo, velha questão de Adorno e Horkheimer que os levou a desancar a razão iluminista em A dialética do esclarecimento. O historicismo italiano separava liberismo (liberalismo econômico) e liberalismo: caso o liberalismo econômico (a economia de mercado) se desprenda do liberalismo político (a crença nos direitos civis e o respeito aos direitos humanos), é perfeitamente pensável uma experiência societal que produza uma simbiose entre liberalismo econômico e totalitarismo político. O USA Patriot Act – o código de restrição das liberdades civis no território americano –, editado posteriormente aos atentados de 11 de setembro de 2001, talvez seja prenuncio de uma futura sociedade totalmente controlada pelo Estado. O único Big Brother não será mais o do fútil programa de televisão, mas o aterrador futuro de George Orwell. Novamente, é preciso pensar como Gramsci: pessimismo da inteligência, otimismo da vontade.


João Pessoa, 28 de março de 2003

Pós Escrito:

Este artigo, uma análise global dos efeitos futuros da Guerra no Iraque ainda nos primeiros dias, foi escrito, por encomenda do jornalista Walter Santos, para o portal http://www.wscom.com.br/. Naqueles dias, circulavam devaneios panglossianos, tais como uma hipotética “batalha de Bagdá”, comparável a de Stalingrado em 1942, quando o exército soviético mudou o rumo da Segunda Guerra Mundial. Em lugar da “Batalha de Stalingrado”, tivemos, isto sim, uma “Batalha de Itararé” – a estabanada previsão de uma suposta batalha sangrenta no encontro das tropas de Getúlio Vargas e tropas fiéis ao regime da República Velha, na divisa de São Paulo e Paraná, em 1930. Tanto o regime de Saddan Hussein como o de Washington Luís ruiu feito um castelo de cartas. Certamente, ambos já estavam decrépitos.
Porém, esta não é a grande questão. Dizíamos, no calor da guerra, que a vitória dos Estados Unidos seria estrutural, e realmente ela foi estrutural. Reconhecer este fato, no entanto, não significa dizer que os problemas da ocupação militar no Iraque estão resolvidos. Pelo contrário, vamos doravante, assistir a uma fita de resistência na forma de guerra de guerrilhas e atentados a alvos civis, militares e diplomáticos. Ainda não é o mais importante. A ocupação militar anglo-americana no Iraque alterou profundamente a ordem mundial, não apenas porque não foi autorizada pelo Conselho de Segurança da ONU – a ocupação de Kosovo pelas tropas da OTAM (1998) também não o tinha sido –, mas porque os falcões americanos passaram por cima das deliberações do Conselho no tocante a continuar a vasculhar o território iraquiano na busca de armas de destruição em massa. A delegitimação do Conselho de Segurança da ONU, enfim, foi uma das grandes novidades da guerra, que marcará as relações internacionais por muito tempo, tudo indica como tragédia.

Comentários

FátimaPessoa disse…
Jaldes, teus escritos são tão perfeitos...rs, que nada a
declarar. Só me resta então
aqui me embriagar de conhecimento.
1beijo no coração
Fátima Pessoa

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