Maio/1968

Sexta-feira santa, entre os estudantes de história, vários meus alunos ou ex-alunos, para uma palestra, quase inaugural, porque aguardem a overdose daqui a um mês, no máximo (rede globo, gabeira, “alternativos”, etc.), sobre maio de 68, com ênfase no acontecimento francês, sem dúvida o mais radical de todos. No auditório 412 do CCHLA (XX Encontro Regional dos Estudantes de História), em torno de 70 meninos e meninas de vários estados brasileiros. Adorei. Quem me conhece pessoalmente, sabe de minha timidez, e de como sou avesso a comemorações/louvações de efemérides “alternativas”, de minha má vontade contra as tendências comportamentais da moda. Ou seja, contra quase tudo em que o emblema “68” se transformou.

O maio/68 que começará no mês das noivas vindouro vai ser uma espécie de “sessão nostalgia”, mais um revival da cultura de massas. Todas as velhas múmias, de José Dirceu a Daniel Cohn Bendit, participantes do movimento que estar a completar 40 anos, reunirão os descendentes aos pés da fogueira ancestral que transmite a experiência para contar os feitos heróicos da luta contra a ditadura e o Estado burguês. Quem nunca passou por um aperto na vida, acostumado à tela de um micro, e à companhia indulgente de papai e mamãe, deve naturalmente se embevecer: jovens cabeludos treinados na vocação de heróis do asfalto (alguns dos quais, nossos pais e nossos avós), nos belos versos de Caetano Veloso (Enquanto seu lobo não vem, 1968), sobrevivendo literalmente “debaixo das bombas, das bandeiras/debaixo das botas/debaixo das rosas, dos jardins”. Hérois do mundo da aventura contada. Ai onde reside o perigo: trocar a análise crítica pela louvação. Não foi o que aconteceu com meus inteligentes e espertos alunos de história. Coisa boa, legal mesmo.

O roteiro de minha exposição foi o seguinte (o artigo acadêmico está sendo preparado – que fazer?, é profissão, né?): o maio francês pode ser esquartejado em três partes: o processo, a crítica dos costumes (o feminismo, a descriminização da drogas, as etnias) e a batalha de idéias (a questão do "sujeito revolucionário", o estruturalismo, o existencialismo e o marxismo). Geralmente, o processo político de maio, tão instrutivo, é pouco lembrado, ninguém fala do processo francês - prefere se ater às idéias a à crítica dos costumes, digamos -, desde a frente popular (1936), a segunda guerra mundial e IV e a V república, a descolonização da Argélia e do Marrocos, etc. Caso examinarmos o processo, veremos que o acordo fordista, de que nos falava Gramsci, tem duas características na França, no que destoa do restante da Europa: ele foi truncado e é retardatário. Truncado pela ocupação alemã e o colaboracionismo da República de Vichy (1940-1944) e retardado, anos mais tarde, pela instabilidade congênita da IV República. Rigorosamente, o pacto fordista apenas foi estabilizado na França pelos acordos de Grenoble, assinados pelos sindicatos ligados ao PC logo após a tempestade de maio/68. Precisou de uma grande maré montante anticapitalista para reafirmar o capitalismo.

Obviamente, maio/68 foi bem mais que um reles acordo fordista. Neste ínterim, há dois elementos que precisam ser examinados: a crítica dos costumes e a batalha de idéias, ambos tendentes a mistificações. No caso do que chamo de crítica dos costumes, a assimilação de 1968 pela mídia pode-se afirmar que foi absoluta. Virou um assunto de moda. Por isso, podemos explicar (e compreender) a evidente má vontade de um Bernardo Bertolucci para com 1968, no filme de suas recordações críticas do processo do maio francês (Os Sonhadores). O veredicto de Bertolucci, no fundo, é desprovido de arrodeios conciliatórios (não se deixe enganar pelas belas imagens dos corpos nús): havia, sim, elementos de uma revolução niilista imersos no “espírito” de 68. Os três jovens trancados em um apartamento, um irmão e uma irmã mais um americano, funcionam como um microcosmos do que estava acontecendo nas ruas. Na verdade, o filme de Bertolucci não pretende separar o isolamento dos três jovens trancados no apartamento dos acontecimentos da rua (esta é uma leitura pueril). A vida invade o apartamento o tempo inteiro. O apartamento é a própria encarnação da rua.

Assim, a pretensão do cineasta, em "Os sonhadores", a meu ver, é bem sofisticada: trata-se de revelar, ao mesmo tempo, a esfera íntima e a esfera pública, no caso, como as duas faces de uma única moeda. É preciso levar em consideração, é claro, que atuou na ácida versão de Bertolucci certo ranço de um militante do Partido Comunista Italiano (PCI). Aliás, da mesma maneira de Walter Benjamin escreveu, na década de 30 do século passado, que o trauma da cisão do bloco revolucionário de 1848 (entre proletariado e burguesia, as classes que fizeram a revolução francesa), ainda era motivo, duas ou três gerações passadas, de dois tipos de leitura - de recalque ou de louvação -, pode-se divisar no “recalque” de Bertolucci alguma coisa de "verdadeiro", embora com evidente carga de parcialidade. Neste sentido, podemos responder a uma das perguntas que apareceu no debate, que MAIO/68 foi, de alguma maneira, VITORIOSO. Havia, naquele processo, é preciso reconhecer, uma surda revolução liberal em curso.

A revolução liberal responde a tudo? Claro que não. Permanece como uma pergunta no ar o mais radical programa esgrimido no processo francês: a proposta da Internacional Situacionista, certamente a corrente mais radical dos movimentos de 68, que dizia mais ou menos o seguinte: deveríamos extinguir o Estado e o dinheiro. Ponto. Embora tenha mencionado em minha exposição inicial, a questão ressurgiu com força na fase de debates. Que fazer com os augúrios mais radicais de maio? Somente dizer assim?: esses caras eram uns loucos! Vamos pra casa! Nada disso: a questão, para mim e para a maioria das pessoas presentes no auditório do CCHLA, permanece em aberto. Rolou muita discussão sobre economia política, capítulo I de “O Capital”, Kurz, Marcuse, Adorno, etc... Se algumas múmias estão levando 1968 para o velho museu das grandes novidades, por outro lado o pensamento crítico continua vicejando entre as pessoas mais jovens, nem só entre elas, servindo para desmistificar que a rebelião daqueles tempos nem foi somente um "conflito de gerações" nem um "conflito estudantil". Voltarei ao assunto com um artigo caprichado. (Jaldes Reis de Meneses).

Comentários

Maria disse…
Beeemmm...em primeiro lugar, obrigada por me convidar a conhecer seu canto de meditação... imagino que você já tenha visto o meu. E, comprovando mais uma vez que o acaso não existe, justo no dia em que postei uma foto das barricadas de maio de 68 em Paris... e eu nem me lembrava de que faz 40 anos, sim, que a pendenga rolou.

Efemérides e suas celebrações são, sim, inevitáveis e vai vir muita coisa por aí. Mas para mim marca um tempo em que a inocência começava a escorrer pelo ralo e eu tentava entender o que ninguém achava dever me explicar.

Um ano difícil, mas também romântico. Por isso escolhi aquela foto como minha favorita...

Beijos e parabéns pelo blog!

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