Aos poucos, devagarinho, vou ao acaso compondo artigos, mais poéticos que conceituais (pouco entendo de tecnalidades musicais), sobre cantoras. Na oportunidade, posto a seguir um texto redigido ano passado, publicado no jornal Correio da Paraíba (04/02/08), sobre um show em praça pública da cantora Eleonora Falcone.
Eleonora Falcone: falsa pequena voz, grande voz metálica
Jaldes Reis de Meneses.
Professor dos Programas de Pós-Graduação em História e Serviço Social do CCHLA-UFPB.
e-mail: jaldesm@uol.com.br
A voz de Eleonora Falcone engana. Foi esta a impressão que nos causou a audição de seu show em praça pública sexta-feira (26/01/06), na seqüência das programações do Projeto Estação Nordeste, promovido pela Prefeitura de João Pessoa.
À primeira entrega, a voz de Eleonora parece ser uma voz pequena, mesmo mignon, feito uma Nara Leão contemporânea, talhada para a bossa nova ou a balada romântica minimalista. Cantar bem bossa nova e balada não desmerece ninguém. Nara Leão cantou a bossa de Tom Jobim e Vinicius de Morais, como também a balada de Roberto e Erasmo Carlos, de maneira a atingir elevados graus de beleza estética. Até mesmo a participação de Nara no tropicalismo (um movimento que chegou fazendo barulho), Lindonéia – canção de Caetano Veloso, com versos inspirados na gravura de Rubens Gerchman, narrando à historinha de uma típica moça de família de classe média, em 1968, às voltas com os dilemas do amor e da participação política –, reitera, antes de negar, o intimismo.
Deixemos a exegese de Nara para outra ocasião. Por certo, o bonito fado musicado por Eleonora Falcone, em parceria com o poeta falecido Lúcio Lins, Carta de Amor, e o visual nostálgico do clipe da canção (imagens adrede a esmo de João Pessoa, captadas por uma câmara triste como a expressar uma saudade lusitana nos trópicos) – escolhido para abrir o show –, produz a sensação ilusória. Ledo engano: estamos diante, ao contrário, de uma voz repleta de possibilidades, que se desloca do registro intimista até sustentar notas altas e agudas por um bom tempo, a exemplo de uma cantora de rock ou jazz. A voz viaja, ascendentemente, algumas vezes na mesma canção, do tom intimista a uma sonoridade metálica, rockeira, porém despida de rudeza ou agressividade.
Ao cantar em praça pública vestida em um figurino despojado de calça jeans e camisa vermelha, acompanhada de um trio básico composto de Rafael Mororó (guitarra), Jorge Negão (baixo) e Victor Ramalho (bateria), contudo, embora coincidência, há certa semelhança formal – somente formal – entre o show de Eleonora e a operação intentada por Caetano Veloso em seu mais recente disco, Cê: explorar antigas possibilidades conceituais do rock, tanto de atitude como composicionais, mas renovando-as tematicamente mais de acordo com a sensibilidade deste começo de século XXI. Em Caetano, a antiga fixação sexual do rock juvenil transmutou-se numa, para resumir, densa e problemática sexualidade sexagenária e pós-moderna.
Por seu turno, o projeto de Eleonora Falcone, conquanto formalmente semelhante, parece-nos conceitualmente mais singelo que o do compositor baiano (no entanto, guardadas as devidas proporções, não menos ambicioso): ela quer demonstrar a sua plena maturidade como inspirada compositora de algumas pérolas pop (Michel Jackson usa baton, por exemplo), mas, talvez principalmente, como cantora e interprete de palco, buscando fazer das sonoridades básicas e das performances dos músicos elementos de concentração do público em sua figura. Nada de dispersar a concentração das pessoas com grandes orquestrações, coros de muitas vozes ou naipes mais sofisticados de metais. Em resumo, além de cantora, trata-se de fazer sobressair a Eleonora Falcone atriz. Ela o faz notavelmente bem, brilhante até.
Cabe uma pergunta: se a voz metálica e a atriz fizeram a uma interessante simbiose no show, quais referências de cantoras populares, virtuoses de voz ou de palco, podem servir de citação ao show de sexta-feira passada? Ou, dito com outras palavras, em que lugar do passado – distante que seja – pode-se vislumbrar a uma referência didática de metalismo suave na voz e carisma de palco que sirva de ponto de apoio, visualização, à explicitação estética do desempenho da cantora paraibana? De imediato, afastemos as possibilidades de referência em clássicos do rock, como Janis Joplin e Cássia Eller. As duas grandes cantoras pertenceram, na voz e no palco, à tradição das divas trágicas, parecidíssimas no destino. A mensagem de Janis e de Cássia tinha a fúria, a emergência e o desespero dos românticos, o que só um canto áspero, rude, rasgado, gritado, pode fazer denotar. Quase nada dessa estripe de cantoras parece combinar com Eleonora Falcone, exceto o talento.
Quando assistimos a Eleonora Falcone cantando no palco do Estação Nordeste, podem-se recordar, ali, instintivamente, elementos do desempenho de Gal Costa em Legal, um dos melhores discos que a musa do tropicalismo gravou até hoje, no distante ano de 1970. Além do repertório preciso (Eu sou terrível; Língua do p; London, London, etc), Legal é antológico, visado de hoje, por dois motivos: trata-se de um disco de música brasileira repleto de informações do rock (especialmente nos rifs do legendário guitarrista Lanny Gordin), e no qual consta uma das mais inspiradas das parcerias de Jards Macalé e Waly Salomão (Hotel das Estrelas). Contudo, em que pese o brilho individual de Lanny, Waly e Macalé, nenhum dote artístico superava a força de Gal Costa. Ela, ao mesmo tempo em que agregava, sobressaía. Pois bem, no show de Eleonora Falcone, ressalvadas as distinções de espírito de época – e são muitas, tantas –, era como se bossa nova pedisse passagem para entrar no terreno minado do pop-rock, subindo o tom da voz, metálica sim; porém, áspera ou desesperada, jamais.
Eleonora Falcone: falsa pequena voz, grande voz metálica
Jaldes Reis de Meneses.
Professor dos Programas de Pós-Graduação em História e Serviço Social do CCHLA-UFPB.
e-mail: jaldesm@uol.com.br
A voz de Eleonora Falcone engana. Foi esta a impressão que nos causou a audição de seu show em praça pública sexta-feira (26/01/06), na seqüência das programações do Projeto Estação Nordeste, promovido pela Prefeitura de João Pessoa.
À primeira entrega, a voz de Eleonora parece ser uma voz pequena, mesmo mignon, feito uma Nara Leão contemporânea, talhada para a bossa nova ou a balada romântica minimalista. Cantar bem bossa nova e balada não desmerece ninguém. Nara Leão cantou a bossa de Tom Jobim e Vinicius de Morais, como também a balada de Roberto e Erasmo Carlos, de maneira a atingir elevados graus de beleza estética. Até mesmo a participação de Nara no tropicalismo (um movimento que chegou fazendo barulho), Lindonéia – canção de Caetano Veloso, com versos inspirados na gravura de Rubens Gerchman, narrando à historinha de uma típica moça de família de classe média, em 1968, às voltas com os dilemas do amor e da participação política –, reitera, antes de negar, o intimismo.
Deixemos a exegese de Nara para outra ocasião. Por certo, o bonito fado musicado por Eleonora Falcone, em parceria com o poeta falecido Lúcio Lins, Carta de Amor, e o visual nostálgico do clipe da canção (imagens adrede a esmo de João Pessoa, captadas por uma câmara triste como a expressar uma saudade lusitana nos trópicos) – escolhido para abrir o show –, produz a sensação ilusória. Ledo engano: estamos diante, ao contrário, de uma voz repleta de possibilidades, que se desloca do registro intimista até sustentar notas altas e agudas por um bom tempo, a exemplo de uma cantora de rock ou jazz. A voz viaja, ascendentemente, algumas vezes na mesma canção, do tom intimista a uma sonoridade metálica, rockeira, porém despida de rudeza ou agressividade.
Ao cantar em praça pública vestida em um figurino despojado de calça jeans e camisa vermelha, acompanhada de um trio básico composto de Rafael Mororó (guitarra), Jorge Negão (baixo) e Victor Ramalho (bateria), contudo, embora coincidência, há certa semelhança formal – somente formal – entre o show de Eleonora e a operação intentada por Caetano Veloso em seu mais recente disco, Cê: explorar antigas possibilidades conceituais do rock, tanto de atitude como composicionais, mas renovando-as tematicamente mais de acordo com a sensibilidade deste começo de século XXI. Em Caetano, a antiga fixação sexual do rock juvenil transmutou-se numa, para resumir, densa e problemática sexualidade sexagenária e pós-moderna.
Por seu turno, o projeto de Eleonora Falcone, conquanto formalmente semelhante, parece-nos conceitualmente mais singelo que o do compositor baiano (no entanto, guardadas as devidas proporções, não menos ambicioso): ela quer demonstrar a sua plena maturidade como inspirada compositora de algumas pérolas pop (Michel Jackson usa baton, por exemplo), mas, talvez principalmente, como cantora e interprete de palco, buscando fazer das sonoridades básicas e das performances dos músicos elementos de concentração do público em sua figura. Nada de dispersar a concentração das pessoas com grandes orquestrações, coros de muitas vozes ou naipes mais sofisticados de metais. Em resumo, além de cantora, trata-se de fazer sobressair a Eleonora Falcone atriz. Ela o faz notavelmente bem, brilhante até.
Cabe uma pergunta: se a voz metálica e a atriz fizeram a uma interessante simbiose no show, quais referências de cantoras populares, virtuoses de voz ou de palco, podem servir de citação ao show de sexta-feira passada? Ou, dito com outras palavras, em que lugar do passado – distante que seja – pode-se vislumbrar a uma referência didática de metalismo suave na voz e carisma de palco que sirva de ponto de apoio, visualização, à explicitação estética do desempenho da cantora paraibana? De imediato, afastemos as possibilidades de referência em clássicos do rock, como Janis Joplin e Cássia Eller. As duas grandes cantoras pertenceram, na voz e no palco, à tradição das divas trágicas, parecidíssimas no destino. A mensagem de Janis e de Cássia tinha a fúria, a emergência e o desespero dos românticos, o que só um canto áspero, rude, rasgado, gritado, pode fazer denotar. Quase nada dessa estripe de cantoras parece combinar com Eleonora Falcone, exceto o talento.
Quando assistimos a Eleonora Falcone cantando no palco do Estação Nordeste, podem-se recordar, ali, instintivamente, elementos do desempenho de Gal Costa em Legal, um dos melhores discos que a musa do tropicalismo gravou até hoje, no distante ano de 1970. Além do repertório preciso (Eu sou terrível; Língua do p; London, London, etc), Legal é antológico, visado de hoje, por dois motivos: trata-se de um disco de música brasileira repleto de informações do rock (especialmente nos rifs do legendário guitarrista Lanny Gordin), e no qual consta uma das mais inspiradas das parcerias de Jards Macalé e Waly Salomão (Hotel das Estrelas). Contudo, em que pese o brilho individual de Lanny, Waly e Macalé, nenhum dote artístico superava a força de Gal Costa. Ela, ao mesmo tempo em que agregava, sobressaía. Pois bem, no show de Eleonora Falcone, ressalvadas as distinções de espírito de época – e são muitas, tantas –, era como se bossa nova pedisse passagem para entrar no terreno minado do pop-rock, subindo o tom da voz, metálica sim; porém, áspera ou desesperada, jamais.
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