Direitos do homem

O artigo a seguir, escrito por mim, compõe o terceiro capítulo do livro “Direitos Humanos: história, teoria e prática” (2005, Editora Universitária UFPB, esgotado), organizado pelo professor Giuseppe Tosi. Embora publicado em livro, não é texto acabado. Devo ampliá-lo em uma nova redação, bem como aparar algumas viagens teóricas laterais (como, de repente, sem necessidade clara, por no texto as polêmicas entre Herder e Goethe). Sou chato e prolixo: gosto às vezes de postar textos longos (cartas endereçadas a ninguém?). Também me perguntaram por que não uso ilustrações no blog. Serei um Taliban, um iconoclasta? Nem tanto, mas não uso “figuras” no blog meio de propósito. Letra branca em fundo preto em tempos saturados de imagem. Voltando ao fio da meada, o polêmico e polissêmico tema dos direitos humanos me voltou à carga em leituras e reflexões, e devo postar, em breve, alguma coisa (pena não ser “alguma poesia”, para lembrar o livro de estréia de Drummond, em 1930). No ano em que a declaração de São Francisco - a famosa “Declaração dos direitos humanos" – completa 60 anos, o tema ganha mais que atualidade. Ganha urgência.


O ILUMINISMO E OS DIREITOS DO HOMEM

Jaldes Reis de Meneses*
jaldesm@uol.com.br

Há tantas auroras
que não brilharam ainda.
Rig-Veda


1. OS DIREITOS DO HOMEM: ENTRE O UNIVERSAL ILUMINISTA E O HISTORICISMO CONSERVADOR.

Quando as tropas de Napoleão cruzavam o mundo, os soldados levavam na algibeira dois instrumentos de trabalho complementares, insubstituíveis na expansão dos novos ideais da Revolução Francesa, a famosa Declaração dos direitos do homem e do cidadão de 1789 e um desenho da guilhotina. O direito e a execução do direito.

Se quisermos uma distinção fundamental entre o processo da Revolução Inglesa do século XVII, da Revolução Americana e da Revolução Francesa do século XVIII, ela reside no fato de que a maioria dos franceses se propôs a fazer um movimento de revolução mundial, e os ingleses e norte-americanos, mais modestos, visavam essencialmente o bem-estar dos cidadãos de seus respectivos estados nacionais; a Revolução Francesa “parecia aspirar mais ainda a regeneração do gênero humano do que à reforma social da França” (Tocqueville, 1989: 60). Aliás, esta a diferença chave entre todas as três declarações de direitos da Revolução Francesa (1789, 1793, 1795) e seus dois antecedentes, o Bill of right inglês (1689) e os Bills dos diversos Estados americanos, na lapidar fórmula de Hobsbawm (1986: 72), “entre todas as revoluções contemporâneas, a Revolução Francesa foi a única ecumênica. Seus exércitos partiram para revolucionar o mundo; suas idéias de fato o revolucionaram”.

Os franceses pareciam querer reinventar o mundo, não respeitavam memória nem patrimônio histórico: adotaram o sistema métrico decimal, um novo calendário, e até tentaram, no ápice do movimento de destruição do antigo e construção do novo (1793-1794), o desatino do culto a um deus novo, baseado na razão, o Ser Supremo do Papa Robespierre. Foi precisamente da rejeição aos aspectos universais e abstratos dos conceitos políticos da Revolução Francesa (sintetizados na proclamação do respeito aos Direitos do Homem) que surgiu a crítica conservadora à revolução – tão perdurável quanto a própria revolução –, nas formas díspares, mas assemelhadas, da tradição liberal inglesa de Edmundo Burke (1790/1997) e do catolicismo ultramontano do Conde Joseph de Maistre (1796/1980).

A dérmache de Burke, que fez fortuna, é conhecida: os acontecimentos e proclamações de Paris e Versalhes derruíam a tradição consuetudinária do direito, ancorada nos costumes tradicionais, nas regras de vida, na religiosidade e no respeito à hierarquia da ordem estamental, expressos nas figuras da aristocracia e do clero. Burke estava preocupado com a estabilidade da ordem social, e como os revolucionários projetavam a manufatura de uma ordem totalmente nova, tendo como fiador o futuro e não o passado; o deputado do distrito de Bristol na Câmara dos Comuns inglesa considerava a revolução um salto no escuro: “é impossível estimar a perda que resulta da supressão dos antigos costumes e regras de vida. A partir desse momento não há bússola que nos guie, nem temos meios de saber qual é o porto a qual nos dirigimos” (Burke, 1997: 102). Por outro lado, De Maistre lançou no debate outro argumento que fez fortuna contra os princípios universais da revolução: defensor da singularidade das culturas, para De Maistre (1980: 60), não havia o “homem universal”, mas “o francês, o turco” e assim por diante (essa idéia da singularidade cultural não apareceu somente na França, sendo mesmo um dos pilares do romantismo, em vários registros ideológicos, especialmente na tradução alemã do movimento nacionalista literário Sturm und drang, animado por J. G. Herder e esteticamente desenvolvido por J. W. Goethe).

Nascido como pensamento, ao mesmo tempo, polêmico e defensivo - pois dependeu da materialização de um inimigo, a revolução, para emergir (Arendt, 1990: 225) -, que críticas podemos fazer às argúcias do conservadorismo? Fino crítico da retórica do pensamento conservador, Hirschman (1995: 18-42) demonstra os elementos de persuasão desse pensamento: tanto no liberal Burke como no católico De Maistre, os feitos da revolução, ao final do processo, resultarão em tragédia – da ilusão do progresso sobreviera a catástrofe. A revolução opera comandada por uma lógica destrutiva de perversidade. Os admiradores de Burke, via de regra, aludem ao caráter premonitório do seu pensamento, pois ele previu, ainda em 1790, a destruição da coroa, a expropriação das terras e o terror, esquecendo que a previsão é o próprio eixo do seu método argumentativo, o centro de onde gira o conjunto das digressões. A lógica interna que informa o argumento de De Maistre é praticamente a mesma de Burke, adicionada por uma escatologia histórica: o francês considerava a revolução uma “obra satânica da providência” cujo resultado final seria inverso às intenções dos protagonistas, a restauração (o retorno do Rei ao poder de Estado):

todos os monstros que a revolução concebeu trabalharam apenas, segundo as aparências, em favor da realeza. Através deles, o brilho das vitórias forçou a admiração do universo, e envolveu o nome francês a uma glória da qual os crimes da revolução não puderam despojar inteiramente; por eles, o rei voltará ao trono com todo seu brilho e todo o seu poder, talvez até mesmo com um acréscimo de poder” (De Maistre, 1980: 18).

Conquanto a capacidade de previsão, à primeira vista, impressione, as duas críticas de conteúdo do pensamento conservador à doutrina dos Direitos do Homem são o desrespeito às regras dos bons costumes (Burke) e a defesa da singularidade das culturas contra a abstração do homem genérico (De Maistre), dois argumentos poderosos, sempre repetidos depois contra a revolução por seus adversários. No fundo, são dois argumentos defensivos, orientados pela conservação (Burke) ou pela restauração (De Maistre) - no todo (De Maistre) ou de parte (Burke) -, do ordenamento social do passado, pois estavam desabrochando, na Europa Ocidental, pelo menos desde o século XIV, novas relações sociais mais integradas, cosmopolitas, distintas da dispersão das relações comunitárias feudais.

Embora ousasse reinventar o mundo, a Revolução não foi totalmente profana em seu começo. Espírito do mundo em uma época de transição, todos respeitavam a providência divina, tanto os revolucionários como os contra-revolucionários. Ainda havia um tênue elemento de ligação com o tradicionalismo, associado a uma ruptura: uma nova leitura de Deus, encarado como o sopro inicial do mundo (o demiurgo), porém não mais seu condottiere. Em diapasão antagônico, é curioso perceber que o famoso panfleto de polêmica de Thomas Paine contra Burke, Os direitos do homem (1989), publicado em 1791 e 1792, invoca contra o historicismo conservador – que rememorava as tradições da nação como ancora necessária do direito, pois para Burke só existem os direitos produzidos pela história pretérita da nação –, também o socorro da providência divina, mas com o diferencial fundamental de que a atuação da providência não seria mais no curso do processo histórico, sim antes mesmo do começo dele – a história já começaria com a criatura humana sendo portadora de vários direitos naturais inalienáveis. O novo Deus do jusnaturalismo moderno contra o antigo Deus do historicismo conservador. Os direitos do homem, escapando da história, vão buscar seu fundamento último na transcendência do direito natural, um universal anti-historicista, cuja complexa rede de vicissitudes trataremos em passagem mais adiante do ensaio. Marx (s/d.: 205), em uma as passagens mais conhecidas de O dezoito brumário de Luiz Bonaparte, afirma que “a revolução social do século XIX não pode tirar sua poesia do passado, e sim do futuro”. O “mouro satânico” estava parcialmente enganado: não apenas a revolução socialista deveria tirar sua poesia do futuro, do abstrato, do racionalismo, do universal, da imaginação, da negação, mas a própria revolução burguesa já tinha feito essa experiência. Se assim não o fizesse, aliás – arrancasse sua poesia do futuro –, a revolução do século XVIII não teria perdurado.

Devemos reconsiderar, por isso, a capacidade de previsão dos dois pioneiros autores conservadores: eles previram a forma do processo, não o conteúdo (ao introduzir o argumento retórico da providência divina no processo histórico eram historicistas de forma, não de conteúdo). Mesmo na ciosa Grã-Bretanha, os bons costumes tradicionais foram paulatinamente derruídos pelo ethos liberal, e a restauração francesa (1815-1830) não retornou com “acréscimo de poder”, mas fragilizada. Os Direitos do Homem prevaleceram e o ancien régime não mais retornou:

sabe-se que a restauração é somente uma expressão metafórica; na realidade, não houve nenhuma restauração efetiva do Ancien Régime, mas só uma nova sistematização de forças, em que as conquistas revolucionárias das classes médias foram limitadas e codificadas. O rei na França e o papa em Roma se tornaram líderes dos respectivos partidos e não mais representantes indiscutíveis da França ou da cristandade (Gramsci, 2001 Cc16: 40).

2. ILUMINISMO E INDIVIDUALISMO MODERNO.

De onde provém a força societária irresistível, profana, dos Direitos do Homem, que absorve inclusive as restaurações históricas, a que ethos social atendia sua positivação?

Para responder, precisamos cotejar a história social do iluminismo europeu e a autêntica reforma intelectual e moral que seus ideais promoveram, antecedendo o processo político das revoluções burguesas:

(...) toda revolução foi precedida por um intenso e continuado trabalho de crítica, de penetração cultural, de impregnação de idéias em agregados de homens que eram inicialmente refratários e que só pensavam em resolver por si mesmos, dia a dia, hora a hora, seus próprios problemas econômicos e políticos, sem vínculos de solidariedade com os que se encontravam na mesma situação. O (...) exemplo mais próximo de nós (...) é o da Revolução Francesa. O período cultural que a antecedeu, chamado de iluminismo, tão difamado pelos críticos superficiais da razão teórica, não foi de modo algum – ou, pelo menos, não foi inteiramente – aquele borboletear de inteligências enciclopédicas superficiais que discorriam sobre tudo e sobre todos com idêntica imperturbabilidade (...) Foi ele mesmo uma magnífica revolução, mediante a qual, como observa agudamente De Sanctis em sua Storia delle letteratura italiana, formou-se em toda a Europa uma consciência unitária, uma internacional espiritual burguesa, sensível em todos os seus elementos às dores e às desgraças comuns, e que foi a melhor preparação para a sangrenta revolta que depois teve lugar na França (Gramsci, 2004: 58-59).

A questão do balanço histórico do iluminismo é sempre difícil, por uma série de motivos. Em primeiro lugar, porque não é possível fazer a tipologia de um movimento intelectual tão vasto e contraditório sem pecar por reducionismo. Muitas vezes, por exemplo, considera-se o iluminismo eurocêntrico e, ato contínuo, propagador de uma ideologia expansiva e unilinear do progresso ocidental contra os povos periféricos, porém, diversos autores iluministas apresentaram desconfiança quanto ao eurocentrismo e o progressismo vesgo. Minoritária e não marginal, a desconfiança abarcava autores díspares do caleidoscópio do iluminismo, enlaçando desde personalidades moderadas como o Barão de Montesquieu, que nas Cartas persas (1991) – irônica narrativa da viagem de dois persas a Paris –, pôs em dúvida a superioridade da cultura eurocentrica como progresso civilizatório mundial, até a figura outsider de Rousseau, que ousou contrariar o senso comum de seus contemporâneos ao afirmar, no Discurso sobre as ciências e as artes (1750/1987), que ambas atividades não estavam contribuindo para o progresso dos costumes humanos, mas talvez até corrompendo-os. Depois, os philosophes eram politicamente ambíguos, fiaram um certo acordo tácito com o Ancien Regime, tanto trabalhavam ad hoc para os monarcas absolutos como defendiam a autonomia intelectual e um conteúdo emancipacionista para a formação educacional do povo, sem obedecer a hierarquias senão o mérito individual (Koselleck, 1999). Os philosophes revezavam entre a masmorra, o palácio e o exílio: Diderot fez o projeto de Universidade de Moscou, sob encomenda de Catarina da Rússia, mas foi encarcerado por ordens de Luís XVI na Torre de Vincennes; Voltaire freqüentou a corte de Frederico II, na Prússia, mas teve de fugir da corte alemã por desentendimentos com o mesmo rei, etc.
Prendamo-nos na questão da ambigüidade do Iluminismo. A ambigüidade deriva do fato que o movimento iluminista concentrou seus esforços, mais que na subversividade imediata da luta política aberta, no alargamento do terreno de uma moral emergente, visando contribuir para torna-la popular e de massas. Alguns autores, como Ortiz, aludem a um abismo entre a cultura popular e a cultura erudita na Europa oitocentista, negando a possibilidade histórica do iluminismo ter-se constituído num fenômeno popular:

não se pode perder de vista que não existe um iluminismo das massas: quando [se] fala num declínio da magia, (...) [está-se] referindo à regressão da consciência mágica de uma elite. Podemos dizer que este racionalismo é dominante no sentido de que ´faz´a história do mundo ocidental, mas que é certamente minoritário e inexpressivo diante do conjunto da população.(ORTIZ: 1991, p. 35)

Engano. Partimos de uma premissa totalmente inversa: em seus escaninhos mais profundos, a cultura iluminista tinha uma base objetiva remota na cultura popular, correspondia a uma evolução das manifestações de bom senso das massas citadinas e mesmo camponesas e, até mesmo, nos (muitos) elementos racionalistas da crença católica. Conforme escrevem Adorno&Horkheimer em Dialética do esclarecimento (1985), podemos encontrar o esclarecimento na estrutura interna do mito e da razão.

Pois bem, a moral emergente da cultura iluminista não se tratava de um artifício de certos intelectuais descontentes: estava em causa a fundamentação filosófica de um processo social de enorme escopo, a emersão de uma figura histórica nova – o individuo moderno –, que não era uma criação artificial, mas o ponto de chegada de elementos que já despontavam desde muito na cultura ocidental e na religião monoteísta cristã, rompendo o cerco de dominância da vertente organicista e escolástica de compreensão da sociedade, hegemônica durante a medievalidade. O comunista italiano Antonio Gramsci, a propósito da questão, em notação crítica, vai descortinar a protoforma contraditória do indivíduo moderno já no catolicismo, tradicional e popular, medieval – anterior inclusive, vale observar, à percepção da ética econômica ascética do calvinismo por Weber (2004) –, que envolveu quase toda a tradição filosófica ocidental, mesmo as correntes heréticas:

do ponto de vista ‘filosófico’, o que não satisfaz no catolicismo é o fato de, não obstante tudo, ele colocar a causa do mal no próprio homem individual, isto é, conceber o homem como indivíduo bem definido e limitado. É possível dizer que todas as filosofias que existiram até hoje produziram esta posição do catolicismo, isto é, conceberam o homem como indivíduo limitado à sua individualidade e o espírito como sendo esta individualidade. É neste ponto que o conceito de homem deve ser reformado. Ou seja, deve-se conceber o homem como uma série de relações ativas (um processo), no qual, se a individualidade tem a máxima importância, não é todavia o único elemento a ser considerado. A humanidade que se reflete em cada individualidade é composta de diversos elementos: 1) o indivíduo; 2) os outros homens; 3) a natureza (Gramsci, 1999 C10V1: 413).

Em suma, já na doutrina da responsabilidade da fé, encontramos a estrutura dura do individualismo, depois dessacralizada, mas mantida encapuzada, pela tradição iluminista. Só assim podemos entender o alcance profundo das filosofias seculares do direito natural e do contrato social dos séculos XVI, XVII e XVIII (Althusius, Pufendorf, Espinosa, Hobbes, Locke, Rousseau, Kant, etc.). Rompendo com a tradição da filosofia antiga clássica e da escolástica medieval da lei natural – vale dizer, leis duras de limitação da ação humana –, a filosofia moderna alterou a ênfase anterior na lei natural para a nova ênfase no direito natural – ampliando assim o espaço da ação individual –, mas, por outro lado, se fundamenta na curiosa idéia anti-historicista da existência de um hipotético indivíduo natural anterior a sociedade, indivíduos esses que se reuniam depois de formados para estabelecer um contrato (ou pacto) de coexistência social, destoando assim da tradição aristotélica do zoon politikon, na qual o indivíduo é ponto de chegada, resultado, e não ponto de partida, gênese. Lembrando uma passagem de Marx (1991: 42), o homem indivíduo-sujeito do contrato social tem a feição de uma “mônada isolada, dobrada em si mesma”, é portador de uma identidade inata, uma consciência espontânea, anterior até mesmo à experiência empírica – “as mônadas não têm janelas, através das quais algo possa entrar ou sair” (Leibniz, 1981: 8, apud Canevacci).

Na verdade, hoje talvez já esteja mais ou menos claro que o hipotético contrato social entabulado pelos indivíduos-mônadas no passado da humanidade não tinha nada disso, foi uma representação que a teoria política moderna fez das transformações que estavam acontecendo em seu mundo contemporâneo, no cotidiano da sociedade civil e da política de Estado:

[foi] uma antecipação da ´sociedade´ que se preparava desde o século XVI, e no século XVIII deu larguíssimos passos em direção à sua maturidade. Nesta sociedade da livre concorrência, o indivíduo aparece desprendido dos laços naturais que, em épocas históricas remotas, fizeram dele um acessório de um conglomerado humano limitado e determinado. Os profetas do século XVIII (...) imaginam este indivíduo do século XVIII (...) como um ideal, que teria existido no passado. Vêem-no não como um resultado histórico, mas como ponto de partida da História, porque o consideravam como um indivíduo conforme a natureza – dentro da representação que tinham de natureza humana –, que não se originou historicamente, mas foi posto como tal pela natureza. Esta ilusão tem sido partilhada por todas as novas épocas, até o presente. Steuart, que em muitos aspectos se opõe ao século XVIII e que na sua condição de aristocrata se situa mais sobre o terreno histórico, escapou desta ingenuidade” (Marx, 1991: 03-04).

Caso levemos Marx e Gramsci em consideração, os dois autores estão observando que a cesura com o historicismo conservador e o organicismo medieval, promovida pelo ethos do indivíduo moderno, deve ser vista como um passo à frente, mas, por outro lado, acarretou uma certa intransparência das relações sociais que criaram o mesmo homem moderno. Esta é a premissa básica de crítica às doutrinas do direito natural e, depois, do seu mais dileto filho, o liberalismo moderno (econômico e político). Indivíduo-mônada (isolado) e indivíduo-coletivo (relações) são duas maneiras de conceber a vida na sociedade, mas não são dois conceitos antitéticos; na verdade, o surgimento do indivíduo coletivo (relações) – ou sociedade –, realiza a síntese dialética entre a natureza e o homem físico, corporal, como gostava de chamar Rousseau (1753/1999). É fundamental, neste ínterim, dar lugar de destaque ao papel mediador do trabalho entre homem e natureza, como produtor de riquezas – dimensão observada pioneiramente por Rousseau e Locke –, processo este que fez, ao longo da história, afastar o homem de suas “barreiras naturais” (Marx). O homem moderno era, digamos, um homem mediado. Visando homenagear Rousseau (1999), usando sua terminologia (pois poderíamos usar terminologias mais contemporâneas), o homem moderno era uma síntese histórica que incluía o homem corporal, psicológico e moral –, liberto da sujeição absoluta das forças da natureza pelas relações sociais que construiu através do trabalho e da linguagem, ao passo que na aurora da história humana, ainda não tínhamos (a não ser como tênues embriões) indivíduos-mônadas ou indivíduos-coletivos: tínhamos uma forma de coletivo adâmica, quase intrínseca à natureza (homem físico e homem psicológico), lugar para aonde o jusnaturalismo transportou o homem mediado das relações sociais da idade moderna, e seus principais valores, naturalizando-os.
Nesse sentido, Marx e Gramsci foram radicalmente antiliberais e componentes de uma tradição comum – talvez fundada por Hegel, em sua démarche de crítica e superação dos autores do direito natural na filosofia do direito (1986) –, cujo traço de união radica na concepção de um inextricável vinco histórico-social-coletivo na produção da individualidade. Ainda mais: da concepção de indivíduo-coletivo emerge o desdobramento de reconhecer a sociedade (as relações) como uma legalidade própria, cujo estatuto não se resume a um somatório aritmético e atomístico de indivíduos-mônadas, embora, síntese dialética (superação) incorpore a aritmética e a atomística. A sociedade, ela própria, deve ser concebida à maneira de uma individualidade abrangente. Quando não o fazemos dessa maneira, caímos em uma ilusão da consciência: a sociedade aparece somente no seu conteúdo formal – um somatório indisforme de indivíduos, de que é emblemática a frase de nossa contemporânea, a ex-primeira Ministra britânica Margareth Thatcher, para quem “não há sociedade, mas só indivíduos” (Hobsbawm, 1995: 330). Mas, atenção, não se pretende afirmar, como isso, que todas as vertentes do pensamento liberal, cujos desdobramentos na histórica do pensamento resultou na composição de um caleidoscópio de tendências as mais díspares, trabalhem sempre, necessariamente, com uma concepção de indivíduo-mônada (basta lembrar a escola do liberalismo social do italiano Gobetti, em seu dialogo com o movimento dos Conselhos de Fábrica de Turim, em 1919). Porém, sem dúvida, o indivíduo-mônada é a tendência predominante da tradição liberal e, ainda mais, uma das estacas fundamentais desse tronco na história do pensamento. Quando um liberal se afasta da concepção de indivíduo-mônada, de alguma maneira está abrindo uma dissidência.

3. A TRAMA DO JUSNATURALISMO.

Visando o objetivo de glosar tematicamente as relações entre o iluminismo e os direitos do homem, precisamos tecer breves considerações de alguns elementos seletos da trama teórico-política que envolve Hobbes, Locke e Rousseau (especialmente os conceitos de Estado Nacional, sociedade civil, cidadania, soberania, vontade geral, contrato social, liberdade, igualdade e direito à resistência à opressão do mal governante).

Sempre é bom lembrar que Hobbes e Locke foram diretamente políticos, intelectuais orgânicos das duas principais correntes do tumultuado processo da revolução inglesa (1640-1689), o monarca absoluto (Hobbes) e o parlamento (Locke), elementos de confiança de seus respectivos partidos, o primeiro como preceptor do príncipe de Gales (futuro rei Carlos II) e o segundo como assessor parlamentar – ao inverso de Rousseau, tão somente um philosophe que ganhou subversividade após a morte, com a influência de sua obra em diversos líderes da Revolução Francesa. Assim, Leviatã (Hobbes, 1983) e o Segundo tratado do governo civil (Locke, 1991) devem ser lidos como formas intelectuais de intervenção e justificação das correntes em disputa, não somente como exposição abstrata de idéias. No caso de Rousseau, conquanto alguns comentadores atribuam seu ideário a concepções igualitárias difusas, presentes nas camadas intermediárias da sociedade de sua época – principalmente as corporações de ofício –, pensamos ser melhor ler sua obra de maneira socialmente mais livre, como um grande diálogo crítico-sistemático com Hobbes, Locke, Montesquieu, e (mais esquecido), com a ética da recém-surgida economia política inglesa; Do contrato social (1991), por exemplo, é uma obra de caráter sistemático, surgida após décadas de reflexão.

Comecemos comparando o estatuto da soberania em Hobbes e Locke, de começo afirmando que ambos estão tematizando a figura do Estado Nacional, uma forma política tão nova quanto o indivíduo moderno, e não uma pequena república, principado, ou um império antigo. Em Hobbes, seguindo Jean Bodin (1986) – primeiro grande teórico e jurisconsulto do absolutismo nacional –, soberania não se divide, é ou não é, pertence ao monarca absoluto ou à Assembléia (o que dissipa o preconceito consagrado de que Hobbes defendia o absolutismo em quaisquer circunstâncias, ao inverso de Bodin, que só concebia a soberania do monarca), ao passo que a solução apresentada por Locke é mais matizada, o princípio da soberania, em última instância, deve ser popular (encontra-se, portanto, no caso das instituições inglesas, na câmara dos comuns), mas seu exercício deve se dar pela via da representação e do governo misto, reunindo num único organograma de poder o executivo (a monarquia), o povo (a câmara dos comuns) e a aristocracia (a câmara dos lordes). Locke encontra justificativa para seu organograma misto de poder e soberania dividindo o contrato social em dois momentos, o do estabelecimento do pacto, quando ocorre um consentimento unânime dos indivíduos, e o segundo, quanto entra em pauta a questão da forma de governo, podendo haver dissenso, porém devendo vigorar o princípio da maioria. Evidentemente, a solução adotada por Locke é idêntica a adotada pelas instituições inglesa na seqüência da chamada revolução gloriosa de 1688 (ou restauração, para os contemporâneos de Locke), e vigora até hoje na Grã-Bretanha.

Intrometamos Rousseau no debate da soberania. De que Estado Nacional estava falando Rousseau? Parece-nos que de nenhum especificamente, embora o genebrino recolha exemplos de todas as nações para a crítica dos termos vigentes do contrato social. Mas há um ponto comum entre Rousseau e Hobbes no tema da soberania, com o democrata pondo o absolutista de ponta a cabeça: em ambos a soberania é indivisível, mas em Hobbes, após a formulação do contrato social, a soberania pertence ao monarca (ou à assembléia representativa), ao passo que, em Rousseau, invertendo a hierarquia, a soberania deve pertencer somente ao povo diretamente representado.

A democracia como o absolutismo invertido, paradoxo que Rousseau procurará solucionar, em Do contrato social (1991), através do conceito de vontade geral, que significa, em modo simplificado, a prioridade da vontade pública sobre a vontade privada, do interesse comum sobre o privado:

(...) é com (...) Rousseau que essa problemática se torna não apenas uma questão central e uma tarefa orientada para o presente, mas também o critério decisivo para avaliar a legitimidade de qualquer ordem político social. Na obra rousseauniana, podemos registrar a presença de um conceito fundamental, o de volonté générale, ou ´vontade geral´, que não existe na tradição liberal, tanto na que antecede quanto na que sucede Rousseau, já que nessa tradição, quando muito, aparece o conceito de ´vontade de todos´. Como sabemos, Rousseau definia a vontade geral como algo distinto da vontade de todos, na medida que a primeira expressa o interesse comum, e não, como a segunda, a simples soma dos muitos interesses particulares ou privados” (Coutinho, 1999: 225-226).

Ora, assinalar enfaticamente a prioridade do público sobre o privado, de alguma maneira, significa tocar criticamente em nódulos do ethos social emergente – o individualismo moderno atomístico –, fazendo com que o legado de Rousseau seja visto pelos próceres do liberalismo dos séculos XIX e XX como um verdadeiro cavalo de Tróia, um pensador inconveniente da tradição do iluminismo, diferentemente do legado de Locke (e dos empiristas ingleses), que realmente merece o título (avant la lettre) de pai do liberalismo político (Hayek, 1983). Com efeito, nascido como doutrina negativa, procurando salvaguardar a liberdade individual das garras do poder estatal, o liberalismo buscou instituir, nos marcos do Estado Nacional, tanto uma limitação do poder quanto uma divisão do poder. Na própria pia batismal do liberalismo (cujo valor supremo é a liberdade política), fica explicitado o mal-estar com a democracia (cujo valor supremo é a soberania popular). Estudando posteriormente a constituição inglesa, Montesquieu (2002 L11C6: 169) é bastante claro nas intenções liberais de aparar a soberania popular, ao verificar que a participação política do povo deve se comprazer a eleição dos representantes:

havia um grande vício na maioria das antigas repúblicas: o povo tinha o direito de tomar resoluções ativas que requerem certa execução, coisa de que ele de modo algum é capaz. Ele só teve tomar parte no governo para escolher seus representantes, e isso é tudo que pode fazer.[1]
Não há como escamotear: por mais que dissimulem, os liberais dão atenção ao bom governo em detrimento da soberania, privilegiam objetivamente os meios – a vontade privada de todos – e não aos fins – a vontade geral pública (instância que incorpora, superando, o interesse privado). A democracia como as regras do jogo (Bobbio, 1992) ou como método de seleção das elites dirigentes (Schumpeter, 1984). Qual tem sido o resultado disso? Alguns autores críticos, como Castoriadis (1997: 114) intitulam os regimes políticos existentes hoje nos Estados Unidos e na Europa Ocidental como de “oligarquia liberal”, o que, na verdade, nada mais é, no terreno da idéias, do que a vitória dos preceitos de Locke e Montesquieu (entre os mais eminentes) contra Rousseau.

Um dos preconceitos mais difundidos contra a obra de Rousseau é o que o conceito de vontade geral navega nas águas da metafísica, sendo, afinal, um evangelho da utopia democrática direta – prenunciador de totalitarismos futuros –, devendo, portanto, ser abandonado, por motivo do philosophe, supostamente, não ter dado a devida atenção à espinhosa questão da relação entre a soberania popular e as formas de governo, com o que ele próprio contribuiu, ao afirmar, sarcasticamente, que “se existisse um povo de deuses, governa-se-ia democraticamente. Governo perfeito não convém aos homens” (Rousseau, 1991: 86).
Quais as prerrogativas do governo legítimo? O genebrino distinguia soberania e governo, a primeira portadora da vontade e o segundo da força:

toda ação livre tem duas causas que concorrem em sua produção: uma moral, que determina o ato, e a outra física, que é poder que a executa (...) O corpo político tem os mesmo móveis. Distinguem-se nele a força e a vontade, esta sob o nome de poder legislativo e aquela, de poder legislativo (Rousseau, 1991: 73).

Solução de resíduo Montesquieano, a questão da filosofia política de Rousseau, portanto, era como assentar um corpo político estável com fundamento permanente na soberania popular (baseado na vontade), sem limita-la, sem recorrer a quaisquer elementos exteriores ao contrato social, inclusive as clausulas pétreas do direito natural. É preciso recordar que, em Locke, por exemplo, contrariamente, encontramos a legitimação dos direitos naturais (liberdade, propriedade e direito à resistência) na anterioridade da realização do contrato. Comecemos a descrever os paradoxos de Rousseau, precisamente localizados na relação entre vontade e representação, entre soberania e governo, pois ele advertia que “assim como a vontade particular age sem cessar contra a vontade geral, o Governo despende um esforço contínuo contra a soberania” (Rousseau, 1991: 99). Via de regra, os governos tendem a constituir interesses de corpo, subvertendo a soberania, mas as soluções apresentadas por Rousseau, conforme já observaram autores brasileiros como Coutinho (1994: 129) e Vita (1991: 211-231), não conseguem desbordar da tentação de subordinação absoluta do interesse particular ao interesse geral.

Em suma, Rousseau não conseguiu combinar bem, estabelecer mediações concretas, entre democracia e pluralismo. Leitor dos moralistas e economistas escoceses (Bernardo de Mandeville e Adam Smith), Rousseau reconhecia realidade na descrição da sociedade civil de sua época da parte desta corrente de pensamento, mas não concordava com sua ética individualista (já posta à prova em passagens anteriores do presente artigo), acabando por adotar uma solução meramente formal: aniquilar a possessividade moderna do indivíduo atomístico na figura do cidadão moralmente virtuoso, servidor da pátria. Atenas e Esparta como modelo (ou Genebra), quando a instituição da modernidade, certamente, requer outro tipo de democracia.
Quem se propôs a superar as antinomias do conceito de vontade geral de Rousseau foi Hegel. O grande filósofo alemão (1986: 159-200), outro atento leitor dos escoceses, procurou ampliar o conceito de sociedade civil, observando que esta não se resume à esfera, sem dúvida presente, das necessidades materiais, mas é composta de outros elementos mediadores em relação ao Estado, tais como as corporações e ofício e as câmaras municipais. Ocioso perceber que Hegel estava tratando da miséria alemã (uma sociedade capitalista retardatária no século XIX) ao invocar duas instituições medievais (as corporações e as câmaras) como mediação entre o público e o privado, mas ele introduziu um conceito de sociedade civil diferente do dos liberais, postulando a possibilidade de erguer uma eticidade pública em seu âmbito, que incorpora, mas supera, a dimensão de simples esfera de realização e satisfação das necessidades materiais. De alguma maneira, nesta formulação, avant la lettre a problemática atual, há uma intenção de combinar vontade geral e pluralismo. Claro, Hegel, também oferece uma solução problemática, na medida em que postulou a realização do trajeto do espírito no Estado e a burocracia (a corporação do Estado) como a zeladora dos interesses do público, porém, um século depois, um autor como Gramsci (2000, Cc1V3: 119-120), foi buscar exatamente em Hegel elementos para compreender modificações nas relações entre Estado e sociedade civil na época do capitalismo avançado, na verificação de uma nova forma de organização política, situada fora do Estado, mas interveniente na correlação de forças do mesmo – as organizações de massas, especialmente o partido político, enfim, estruturas que não podem ser simplificadas na individualidade atomística consagrada no direito civil.[2]

Curiosamente, contudo, apesar de todas as críticas acerbas ao caráter iníquo do contrato social vigente, especialmente no tema da propriedade privada – “o verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acredita-lo” –, há uma certa coincidência entre a concepção de indivíduo de Rousseau e a dos liberais na questão da liberdade (embora sabendo que os liberais trabalhem com uma concepção rebaixada de liberdade, como um apanágio do indivíduo limitado pela existência de outro semelhante). Pois bem, mesmo pondo em dúvida a existência do próprio estado de natureza, Rousseau abre exceção para o reconhecimento da liberdade, o único atributo eterno do homem, um direito herdado do estado de natureza:

não é, pois, tanto o entendimento quanto à qualidade de agente livre possuída pelo homem que constitui, entre os animais, a distinção específica daquele. O homem sobre a mesma influência [da natureza], mas considera-se livre para concordar ou resistir, e é sobretudo na consciência dessa liberdade que se mostra a espiritualidade de sua alma, pois a física de certo modo explica o mecanismo dos sentidos e da formação das idéias, mas no poder de querer, ou antes, de escolher e no sentimento desse poder só se encontram atos puramente espirituais que de modo algum serão explicados pelas leis da mecânica (Rousseau, 1999: 64).

É preciso, neste ínterim, estabelecer um contraponto entre o conceito de liberdade de Rousseau e Hobbes. O homem livre de Hobbes era um sádico. Na concepção do preceptor do Rei Carlos II, liberdade significava força, ausência de impedimento no agir, vale dizer, um valor destrutivo que precisava ser regulado pelo Estado. A coerção da liberdade funda a sociedade, da guerra de todos contra todos vamos à paz – acaso liberdade o homem teve algum dia, ele a cedeu, no contrato social, em nome da segurança, contra a ação liberticida de seus pares. Não seremos os primeiros a afirmar que Hobbes antecipa Freud:

(...) a humanidade precisa ser domada pelas instituições. Aqui Freud se associava ao duro pensamento político de Thomas Hobbes (...) O Freud de O mal-estar na civilização estava escrevendo na tradição hobbesiana: o importante passo para a cultura foi dado quando a comunidade assumiu o poder, quando os indivíduos renunciaram ao direito de fazer justiça com as próprias mãos. Freud observou certa vez que o primeiro homem a lançar um insulto ao inimigo ao inimigo, ao invés de uma lança, foi o verdadeiro fundador da civilização. Mas, embora tal passo fosse indispensável, ele também montou o quadro para o mal-estar a que todas as sociedades são suscetíveis: acarretou a interferência mais drástica nos desejos apaixonados do indivíduo, a supressão – e repressão – das necessidades instintivas, que continuam a supurar no inconsciente e buscam uma vazão explosiva (Gay, 1989: 495).

Em contraponto, apesar dos padecimentos presentes do homem, perspectivando o futuro, a antropologia de Rousseau se revelou demasiado otimista acerca das possibilidades humanas, acreditava na “perfectibilidade” (Rousseau, 1999: 65), na plasticidade da alma, na possibilidade total de uma reconciliação social da natureza, na forma do novo homem natural social como ápice civilizacional. Jean-Jacques, antecipando a crença na possibilidade terrena do novo homem dos regimes comunistas do século XX, não viu no comportamento possessivo um elemento de natureza, mas um caractere adquirido em certas formações sociais específicas, como a capitalista mercantil, e apresentou uma engenhosa solução dualista: ele fazia questão de distinguir, ainda no Estado de natureza, anterior à razão e à moral, os dualismos do instinto de conservação, referente ao indivíduo isolado, e da piedade (pitié) ou compaixão, referente à espécie, de amor-de-si (amour de soi), positiva autoconfiança do homem natural em agir, de amor-próprio (amor propre), negativa soberba manifesta na crença da superioridade de um agir individual em relação ao outro da espécie. Dessa maneira, de dualismo em dualismo, o processo histórico pode fazer prevalecer, algum dia, a piedade sobre a conservação, o amor de si sobre o amor-próprio, chegando ao homem natural social. Conquanto a história esteja em aberto (a possessividade pode levar de vencida a solidariedade, e vice-versa), a idéia de perfectibilidade parece-nos introduzir a ilusão da absoluta plasticidade humana, vale dizer, a possibilidade da vitória total dos valores do bem contra o mal, e isso, certamente, terá rebatimentos na proposta política de organização societária.

Chegamos, por último, ao tema da propriedade privada clausula pétrea do direito liberal. Destoando de Hobbes e Rousseau, para quem a propriedade inexiste no Estado de natureza, sendo para o primeiro um apanágio do Estado político (que cede a propriedade, mas também pode aliená-la), e para o segundo, um ardil da parte detentora da riqueza no contrato social contra a parte empobrecida, Locke, digamos, individualiza e privatiza os bens da natureza, colocando no metabolismo do trabalho o atributo originário da propriedade privada individual, depois acrescida dos atributos secundários da herança e da acumulação monetária. Temos, aqui, uma questão da maior importância: se a propriedade era instituída pelo trabalho, este, concretamente, impunha um limite à propriedade, ao passo que os atributos secundários eram ilimitados (ou só poderiam ser limitados pela força coercitiva do Estado). Vários comentadores posteriores, nas colorações distintas, por exemplo, de um Marx a uma Hannah Arendt, atribuem a Locke uma primeira centelha da teoria do valor trabalho, depois desenvolvida por Adam Smith e Ricardo. Porém se temos em Locke ainda uma descrição do trabalho como a relação física, direta, metabólica, entre homem e natureza, na economia política clássica (especialmente Adam Smith), - como lembrou Marx nos Manuscritos econômico-filosóficos (2004) -, todo e qualquer trabalho vai assumir a forma exclusiva do trabalho mercantil como gerador de valores de troca, o que significa a subordinação do atributo originário da propriedade aos atributos secundários derivados. Em suma: uma forma histórica, situada, de trabalho, assumirá a aparência de uma forma universal, única e eterna.

Estamos diante de uma situação complexa: repetindo um bordão conhecido, será a esfera dos direitos civis (individuais) que consagrará a relação social mercantil, ou, nos termos de Marx em A questão judaica (1991), a emancipação política não acarretou na emancipação humana, separou o inseparável (posto que um corpo concreto único), o bourgeois possessivo da sociedade civil do citoyen virtuoso do Estado. O “mouro satânico” critica abertamente os droits de l´homme, o que trouxe vários mal-entendidos. Não nos parece que a intenção do autor seja desconhecer as conquistas civilizatórias dos direitos do homem, pois ele afirma taxativamente: “não há dúvida que a emancipação política representa um grande progresso. Embora não seja a última etapa da emancipação humana em geral, ela se caracteriza como a derradeira etapa da emancipação humana dentro do contexto do mundo atual” (Marx, 1991: 28). Vale resumir, em termos hegelianos, que a proposta marxiana é a incorporação/superação do patamar moderno dos direitos humanos: formular uma nova síntese que incorpore as aquisições civilizatórias anteriores, jamais destruí-las.

Encerraremos citando a conhecida e interessante crítica de Claude Lefort (1987) ao texto marxiano. O filósofo parisiense alude a duas questões sempre fundamentais: a ilusão de que a história dos direitos humanos constituiria uma seqüência linear de aquisições, como se não fosse produto de uma complexa história, e, ainda mais, como se os direitos civis, políticos e sociais (afora os chamados “novos direitos”), no mais das vezes, não fossem contraditórios entre si:

É preciso levar os detratores de Marx a maior moderação, campeões dos direitos do homem que nada querem saber sobre a ambigüidade desses direitos, nada querem conservar das formulações que se prestavam ou se prestam ainda às objeções, não apenas de Marx ou dos marxistas, como também daqueles que não se satisfazem em fazer do egoísmo a regra de conduta dos homens em sociedade. Com efeito, grande número dessas formulações, na declaração de 91, que serviu de modelo na Europa, dão crédito à imagem de um indivíduo soberano cujo poder de agir ou empreender, de falar ou escrever, de possuir, seria limitado apenas pelo de outros indivíduos para exerce-lo igualmente (...) O que deveria suscitar nossas críticas não é tanto o que Marx lê nos direitos do homem, mas o que ele é impotente para aí descobrir” (Lefort, 1987: 46).

Se novas auroras ainda haverão de brilhar, reflitamos as lições do penúltimo parágrafo.

REFERÊNCIAS

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*Doutor em Teoria Política, Professor do Departamento de História do CCHLA-UFPB, Professor da Disciplina “História dos Direitos Humanos” no II Curso de Especialização em DH da UFPB.


[1] Sempre é o caso de lembrar que as expressões liberal e liberalismo não surgiram no tempo de Hobbes, Locke e Rousseau, vindo à luz somente em 1810, na Espanha, visando nomear os membros das Cortes espanholas revoltados contra o absolutismo local, de certa maneira mimetizando a revolta dos ingleses na chamada Revolução Gloriosa (Merquior, 1991: 16). Conquanto qualquer pessoa minimamente letrada deva saber das distinções entre democracia e liberalismo, e dos eventuais encontros dos dois na linha do tempo, o fato é que vigora um senso comum de associar um conceito ao outro, fazendo tabula rasa do trajeto histórico tanto da democracia como do liberalismo.
[2] A bem da honestidade intelectual, ressaltamos que a idéia desse “complemento” do conceito de vontade geral de Rousseau por Hegel não é nossa, mas de Coutinho (1998: 59-75).

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