A Gaivota (Tchekhov)
O artigo a seguir, sobre a montagem teatral de A Gaivota de Tchekhov pelo grupo Piollin (que já nos havia dado no século passado Vau de Sarapalha), foi publicado no jornal Correio da Paraíba, em 07/10/2006. Há algum tempo, portanto. Embora escrito para jornal, procurei caprichar na escrita (algo que nem sempre acontece na resenha ligeira), como também não ficar estrito à letra do texto ou à encenação do Piollin. Voei como a gaivota, mas espero não ter sido abatido pelo tiro certeiro do caçador. Aproveitei a tela em branco do monitor (no passado, diríamos "folha de papel em branco") com idéias contíguas sobre o existencialismo e a função estética do realismo mágico nas formações capitalistas da periferia. Tenham uma leitura produtiva.
A Gaivota (alguns rascunhos), o Tchekhov montado pelo Piollin
Jaldes Reis de Meneses.
Professor dos programas de pós-graduação em História e Serviço Social do CCHLA- UFPB. E-mail: jaldesm@uol.com.br
Assistir à personalíssima montagem de A gaivota (peça escrita pelo dramaturgo e contista russo Anton Tchekhov no final do século XIX), encenada pelo Grupo de Teatro Piollin (João Pessoa, meses de setembro e outubro, com excursão marcada para o Rio de Janeiro em outubro, por ocasião do Festival Rio Cena Contemporânea), trata-se de uma experiência estética que faz pensar dois temas clássicos (clássicos, sim; a montagem nada tem de pós-moderna, nem mesmo algumas bricolagens são pós-modernas), sempre repostos e atualizados: a questão do entendimento e do trânsito dos gêneros artísticos. Afinal, qual o significado desta encenação de pouco mais de uma hora, na qual o público é convidado a refletir o conteúdo existencial dos quase-monólogos cerrados de cinco excepcionais atores em cena, em um cenário minimalista preenchido com uma mesa, pequenos objetos e poucas cadeiras?
Há uma astúcia na peça de Tchekhov desde quando foi encenada na Rússia czarista: o autor quis fazer uma “comédia séria” repleta de sutilezas, com críticas cifradas à concepção de mundo romântica dos narodniks (populistas russos), um movimento de juventude que fez história (transformou-se numa das vertentes do grupo terrorista Vontade do Povo e do Partido Social-Revolucionário, a principal corrente de esquerda socialista na Rússia até a revolução russa de 1917 e a ascensão do bolchevismo) pregando a superioridade moral da vida rural em detrimento do tédio e do absurdo da vida urbana. O recado de Tchekhov era relativamente simples: mantinha o cenário idealizado no enredo, mas alterava a construção dos personagens no confronto com o bucólico pano de fundo; em contrapelo, concebia a vida rural como um grande vazio, seus personagens em uma casa de campo são pessoas tristes, não realizam seus desejos de felicidade, pois as metas pretendidas – ser um grande escritor, uma grande atriz –, anseios realizáveis somente no olho do furacão da cidade grande, passaram do tempo certo. A fuga para o campo nada resolve, pois lá nos deparamos, inapelavelmente, por incrível que pareça e para surpresa de alguns, com os mesmos valores da modernidade. Na linha de horizonte de uma monótona paisagem com vistas a um lago de águas tranqüilas – cenário imaginário da peça –, portanto, ao invés dos camponeses plenos de vida dos narodniks, sonho do engajamento intelectual e estudantil – a quem Tchekhov dirige a crítica cifrada –, só resta à contemplação das vacas e a angústia dos personagens, três papéis de mulher e seis de homens, em revezamento pelos atores-coringa (Ana Luiza Camino, Buda Lira, Everaldo Pontes, Nanego Lira e Paulo Soares). Alguém inteligente pode obstar afirmando que na verdade os personagens-esboços, os tipos da obra dramaturgico-literária de Tchekhov não são, obviamente, camponeses autênticos, mas gente importada da cidade, médicos como ele, escritores frustrados, amanuenses, moças românticas e atrizes aposentadas; esse naturalismo um tanto óbvio, porém, perde o alcance do principal: camponês e citadino, rural e urbano, em tempos de modernização conservadora (a Rússia czarista aboliu as relações servis em 1861), compõem, certamente em ritmos diferenciados, a mesma voragem de processo. Já são faces da mesma moeda, pois a velha Rússia feudal estava começando a dar adeus ao munjique e a comunidade rural, adaptando o velho e o novo, o feudalismo eslavo e o capitalismo, sem fazer a revolução agrária. Este é um processo de larga fortuna sociológica, que em lineamentos básicos serve de modelo explicativo para muitas das agruras de países como Rússia, Alemanha e Brasil, por exemplo, sociedades que levaram as relações capitalistas ao campo adaptando as antigas estruturas carcomidas, visando à acumulação em detrimento da democratização das relações de poder.
Ossos do ofício, contudo, no mesmo texto que Tchekhov quis entrever as sutilezas da ironia, o público e a crítica de época entreveram a carga do drama ou da tragédia. Parece-nos que a montagem do Piollin tomou partido no desentendimento mútuo da criação e da interpretação, por isso a encenação é personalíssima: definitivamente – e talvez inadvertidamente (o que eleva a graça da montagem) –, A Gaivota virou uma tragédia. Não deve ser assunto deste pequeno artigo, mas de alguma maneira Tchekhov – no que se parece com Machado de Assis –, estava se adiantando, meio sem querer, à crítica das tendências mais rasas de uma das muitas correntes artísticas deste campo estético heteróclito que foi o nacional-popular em alguns países da periferia do capitalismo, como a Rússia e o Brasil. Tais vertentes mal-sucedidas sacrificaram a forma da trama em nome da suposta inteligibilidade de um público menos letrado, na estética de nivelar por baixo. No afã de fazer arte para o povo, fizeram má sociologia. Quanto a Tchekhov e Machado, ao contrario, estamos diante de dois escritores só aparentemente desengajados, contudo, esteticamente politizados. Comparemos O alienista (Machado) e Enfermaria número 6 (Tchekhov), duas novelas com identidade de conteúdo e diferença de enredo, pois ambos os escritores abordam a miséria de uma razão positiva transplantada da Europa civilizada para o Brasil e a Rússia levada a extremos, a caminho mesmo da irratio: Simão Bacamarte, protagonista de O alienista, encarna o desatino da razão na compulsão de internar na Casa Verde (o hospício) todos os habitantes de Itaguaí; por seu turno, na Enfermaria número 6, uma simples amizade entre dois intelectuais, o “louco”, Gromov, e o diretor médico do hospital, Raguin, torna-se subversiva aos olhos de um assistente ignorante, que sobe de posição, fazendo a gentileza, ao final da novela, de encarcerar o antigo diretor, Raguin. Coisas do poder da razão em simbiose com as alienações fantasmagóricas da acumulação primitiva na periferia.
O apuro formal, em vez de inibir, dá asas à imaginação, por este motivo tanto Machado quanto Tchekhov fizeram, avant la lettre, ranhuras de realismo mágico surrealista (O alienista e Enfermaria número 6) e teatro filosófico existencialista (A gaivota). Talvez esteja aí uma pista de elucidação da montagem puxada ao drama do Grupo Piollin: caso concebêssemos A gaivota como teatro existencialista, nos termos do Sartre de 1944 – “l’enfer, c’ést les autres” –, pois a viagem entre a liberdade e seu antípoda siamês, a angústia, neste lance, significa uma introspecção (um para-si) que visa eliminar qualquer vestígio da crença iluminista do homem como um ser naturalmente social. Os existencialistas franceses (Sartre, Merleau-Ponty, Camus, Beauvoir), quase um espírito do tempo do pós-guerra, queria nos convencer do seguinte: somos modernos, somos caroço, mônada, estamos sós e desamparados no mundo. Dessa maneira, os personagens existencialistas do mais famoso guru existencialista, Sartre, como em A náusea, uma novela de 1938, podem ser lidos como o encontro do homem com sua própria absurdidade intrínseca, em uma démarche a um só tempo solipsista, em filosofia, e dramática, em literatura e teatro. Talvez estejamos, neste caso, de um Sartre aproximado da absurdidade radical de Albert Camus – o absurdo que nasce da relação entre o homem e o mundo, das constrições racionais do homem e da irracionalidade do mundo. Logo depois, no entanto, já na conferência de 1946, O existencialismo é um humanismo, o autor francês vai suavizar essa linha de pensamento, ao buscar organizar os princípios antropológicos (por conseqüência, humanistas) de uma nova ontologia.
O solipsismo não é boa companhia filosófica, mas pode resultar em estética de profundidade, quem sabe por isso um balanço final (sempre passível de revisões) da filosofia de Sartre resulte em projetos duvidosos, irrealizados, enquanto a literatura, a crítica literária e o teatro, ao contrário, constituem o melhor. Responder a uma boa pergunta sempre é tarefa árdua, porém, tanto o personagem de Sartre em A náusea como os zumbis humanos de Tchekhov em A gaivota padecem de uma discrepância abissal entre o que projetam individualmente e a monotonia cotidiana, provocando dores na alma, que são transfiguradas esteticamente no recurso incidente ao monologo interior e nas imagens físicas do inseto (há um persistente percevejo no vídeo produzido para fazer as vezes de pano de fundo na montagem do Piollin, não por acaso), do réptil, do nauseabundo, do espesso e do líquido.
Por seu turno, a operação estética efetuada pelo Grupo Piollin – a completa dramatização de A gaivota –, só pode ocorrer caso os elementos históricos, circunstanciais, da peça de Tchekhov, que já eram ralos, forem quase totalmente abstraídos, ficando tão somente o sumo existencial permanente do drama. A comédia, para sobreviver, neste caso, precisaria do alimento da nota de circunstância, ao passo que o drama existencial, despreocupado em fixar os parâmetros da relação de espaço e tempo está dizendo respeito aos caminhos e descaminhos da modernidade em geral. Evidentemente, drama e comédia transitam, circulam, mas não é o caso nem do que se trata. Em sendo tragédia, os elementos cênicos e a estratégia de interpretação introduzidos no texto pela direção de Haroldo Rego começam a fazer sentido e se tornam até imperativos: o cenário tem que ser minimalista (a mesa como na santa ceia e algumas cadeiras dispersas), o vídeo, os objetos físicos (papéis, barbante, copo de uísque, ventilador, etc.) e olfativos (cheiro de uísque) se prolongam em emoção e sugestão simbólica, os atores devem interagir com o público, fazendo a ponte entre as questões insinuadas no texto e seus demônios existenciais mais íntimos e, enfim, a trilha sonora incidente fica bem posta incluindo música pop. Todas as licenças de evasão do tempo histórico da “comédia séria” de Tchekhov são permissíveis quando se pretende insinuar um clima de tragédia – este o sentido, aliás, das bricolagens da montagem. Tanto que a cena final da peça, o suicídio de Treplev, ouvido de um disparo no jardim, e a frase – aquilo foi um frasco de éter que arrebentou –, em outro clima cênico poderia até despertar algum sentimento de ironia, mas, aqui no Piollin, já não pode comportar a margem das ambigüidades das intenções originárias de Tchekhov: estamos diante da encenação de uma tragédia absoluta, ademais, como queriam os gregos, que sabiam separar os dois gêneros.
A Gaivota (alguns rascunhos), o Tchekhov montado pelo Piollin
Jaldes Reis de Meneses.
Professor dos programas de pós-graduação em História e Serviço Social do CCHLA- UFPB. E-mail: jaldesm@uol.com.br
Assistir à personalíssima montagem de A gaivota (peça escrita pelo dramaturgo e contista russo Anton Tchekhov no final do século XIX), encenada pelo Grupo de Teatro Piollin (João Pessoa, meses de setembro e outubro, com excursão marcada para o Rio de Janeiro em outubro, por ocasião do Festival Rio Cena Contemporânea), trata-se de uma experiência estética que faz pensar dois temas clássicos (clássicos, sim; a montagem nada tem de pós-moderna, nem mesmo algumas bricolagens são pós-modernas), sempre repostos e atualizados: a questão do entendimento e do trânsito dos gêneros artísticos. Afinal, qual o significado desta encenação de pouco mais de uma hora, na qual o público é convidado a refletir o conteúdo existencial dos quase-monólogos cerrados de cinco excepcionais atores em cena, em um cenário minimalista preenchido com uma mesa, pequenos objetos e poucas cadeiras?
Há uma astúcia na peça de Tchekhov desde quando foi encenada na Rússia czarista: o autor quis fazer uma “comédia séria” repleta de sutilezas, com críticas cifradas à concepção de mundo romântica dos narodniks (populistas russos), um movimento de juventude que fez história (transformou-se numa das vertentes do grupo terrorista Vontade do Povo e do Partido Social-Revolucionário, a principal corrente de esquerda socialista na Rússia até a revolução russa de 1917 e a ascensão do bolchevismo) pregando a superioridade moral da vida rural em detrimento do tédio e do absurdo da vida urbana. O recado de Tchekhov era relativamente simples: mantinha o cenário idealizado no enredo, mas alterava a construção dos personagens no confronto com o bucólico pano de fundo; em contrapelo, concebia a vida rural como um grande vazio, seus personagens em uma casa de campo são pessoas tristes, não realizam seus desejos de felicidade, pois as metas pretendidas – ser um grande escritor, uma grande atriz –, anseios realizáveis somente no olho do furacão da cidade grande, passaram do tempo certo. A fuga para o campo nada resolve, pois lá nos deparamos, inapelavelmente, por incrível que pareça e para surpresa de alguns, com os mesmos valores da modernidade. Na linha de horizonte de uma monótona paisagem com vistas a um lago de águas tranqüilas – cenário imaginário da peça –, portanto, ao invés dos camponeses plenos de vida dos narodniks, sonho do engajamento intelectual e estudantil – a quem Tchekhov dirige a crítica cifrada –, só resta à contemplação das vacas e a angústia dos personagens, três papéis de mulher e seis de homens, em revezamento pelos atores-coringa (Ana Luiza Camino, Buda Lira, Everaldo Pontes, Nanego Lira e Paulo Soares). Alguém inteligente pode obstar afirmando que na verdade os personagens-esboços, os tipos da obra dramaturgico-literária de Tchekhov não são, obviamente, camponeses autênticos, mas gente importada da cidade, médicos como ele, escritores frustrados, amanuenses, moças românticas e atrizes aposentadas; esse naturalismo um tanto óbvio, porém, perde o alcance do principal: camponês e citadino, rural e urbano, em tempos de modernização conservadora (a Rússia czarista aboliu as relações servis em 1861), compõem, certamente em ritmos diferenciados, a mesma voragem de processo. Já são faces da mesma moeda, pois a velha Rússia feudal estava começando a dar adeus ao munjique e a comunidade rural, adaptando o velho e o novo, o feudalismo eslavo e o capitalismo, sem fazer a revolução agrária. Este é um processo de larga fortuna sociológica, que em lineamentos básicos serve de modelo explicativo para muitas das agruras de países como Rússia, Alemanha e Brasil, por exemplo, sociedades que levaram as relações capitalistas ao campo adaptando as antigas estruturas carcomidas, visando à acumulação em detrimento da democratização das relações de poder.
Ossos do ofício, contudo, no mesmo texto que Tchekhov quis entrever as sutilezas da ironia, o público e a crítica de época entreveram a carga do drama ou da tragédia. Parece-nos que a montagem do Piollin tomou partido no desentendimento mútuo da criação e da interpretação, por isso a encenação é personalíssima: definitivamente – e talvez inadvertidamente (o que eleva a graça da montagem) –, A Gaivota virou uma tragédia. Não deve ser assunto deste pequeno artigo, mas de alguma maneira Tchekhov – no que se parece com Machado de Assis –, estava se adiantando, meio sem querer, à crítica das tendências mais rasas de uma das muitas correntes artísticas deste campo estético heteróclito que foi o nacional-popular em alguns países da periferia do capitalismo, como a Rússia e o Brasil. Tais vertentes mal-sucedidas sacrificaram a forma da trama em nome da suposta inteligibilidade de um público menos letrado, na estética de nivelar por baixo. No afã de fazer arte para o povo, fizeram má sociologia. Quanto a Tchekhov e Machado, ao contrario, estamos diante de dois escritores só aparentemente desengajados, contudo, esteticamente politizados. Comparemos O alienista (Machado) e Enfermaria número 6 (Tchekhov), duas novelas com identidade de conteúdo e diferença de enredo, pois ambos os escritores abordam a miséria de uma razão positiva transplantada da Europa civilizada para o Brasil e a Rússia levada a extremos, a caminho mesmo da irratio: Simão Bacamarte, protagonista de O alienista, encarna o desatino da razão na compulsão de internar na Casa Verde (o hospício) todos os habitantes de Itaguaí; por seu turno, na Enfermaria número 6, uma simples amizade entre dois intelectuais, o “louco”, Gromov, e o diretor médico do hospital, Raguin, torna-se subversiva aos olhos de um assistente ignorante, que sobe de posição, fazendo a gentileza, ao final da novela, de encarcerar o antigo diretor, Raguin. Coisas do poder da razão em simbiose com as alienações fantasmagóricas da acumulação primitiva na periferia.
O apuro formal, em vez de inibir, dá asas à imaginação, por este motivo tanto Machado quanto Tchekhov fizeram, avant la lettre, ranhuras de realismo mágico surrealista (O alienista e Enfermaria número 6) e teatro filosófico existencialista (A gaivota). Talvez esteja aí uma pista de elucidação da montagem puxada ao drama do Grupo Piollin: caso concebêssemos A gaivota como teatro existencialista, nos termos do Sartre de 1944 – “l’enfer, c’ést les autres” –, pois a viagem entre a liberdade e seu antípoda siamês, a angústia, neste lance, significa uma introspecção (um para-si) que visa eliminar qualquer vestígio da crença iluminista do homem como um ser naturalmente social. Os existencialistas franceses (Sartre, Merleau-Ponty, Camus, Beauvoir), quase um espírito do tempo do pós-guerra, queria nos convencer do seguinte: somos modernos, somos caroço, mônada, estamos sós e desamparados no mundo. Dessa maneira, os personagens existencialistas do mais famoso guru existencialista, Sartre, como em A náusea, uma novela de 1938, podem ser lidos como o encontro do homem com sua própria absurdidade intrínseca, em uma démarche a um só tempo solipsista, em filosofia, e dramática, em literatura e teatro. Talvez estejamos, neste caso, de um Sartre aproximado da absurdidade radical de Albert Camus – o absurdo que nasce da relação entre o homem e o mundo, das constrições racionais do homem e da irracionalidade do mundo. Logo depois, no entanto, já na conferência de 1946, O existencialismo é um humanismo, o autor francês vai suavizar essa linha de pensamento, ao buscar organizar os princípios antropológicos (por conseqüência, humanistas) de uma nova ontologia.
O solipsismo não é boa companhia filosófica, mas pode resultar em estética de profundidade, quem sabe por isso um balanço final (sempre passível de revisões) da filosofia de Sartre resulte em projetos duvidosos, irrealizados, enquanto a literatura, a crítica literária e o teatro, ao contrário, constituem o melhor. Responder a uma boa pergunta sempre é tarefa árdua, porém, tanto o personagem de Sartre em A náusea como os zumbis humanos de Tchekhov em A gaivota padecem de uma discrepância abissal entre o que projetam individualmente e a monotonia cotidiana, provocando dores na alma, que são transfiguradas esteticamente no recurso incidente ao monologo interior e nas imagens físicas do inseto (há um persistente percevejo no vídeo produzido para fazer as vezes de pano de fundo na montagem do Piollin, não por acaso), do réptil, do nauseabundo, do espesso e do líquido.
Por seu turno, a operação estética efetuada pelo Grupo Piollin – a completa dramatização de A gaivota –, só pode ocorrer caso os elementos históricos, circunstanciais, da peça de Tchekhov, que já eram ralos, forem quase totalmente abstraídos, ficando tão somente o sumo existencial permanente do drama. A comédia, para sobreviver, neste caso, precisaria do alimento da nota de circunstância, ao passo que o drama existencial, despreocupado em fixar os parâmetros da relação de espaço e tempo está dizendo respeito aos caminhos e descaminhos da modernidade em geral. Evidentemente, drama e comédia transitam, circulam, mas não é o caso nem do que se trata. Em sendo tragédia, os elementos cênicos e a estratégia de interpretação introduzidos no texto pela direção de Haroldo Rego começam a fazer sentido e se tornam até imperativos: o cenário tem que ser minimalista (a mesa como na santa ceia e algumas cadeiras dispersas), o vídeo, os objetos físicos (papéis, barbante, copo de uísque, ventilador, etc.) e olfativos (cheiro de uísque) se prolongam em emoção e sugestão simbólica, os atores devem interagir com o público, fazendo a ponte entre as questões insinuadas no texto e seus demônios existenciais mais íntimos e, enfim, a trilha sonora incidente fica bem posta incluindo música pop. Todas as licenças de evasão do tempo histórico da “comédia séria” de Tchekhov são permissíveis quando se pretende insinuar um clima de tragédia – este o sentido, aliás, das bricolagens da montagem. Tanto que a cena final da peça, o suicídio de Treplev, ouvido de um disparo no jardim, e a frase – aquilo foi um frasco de éter que arrebentou –, em outro clima cênico poderia até despertar algum sentimento de ironia, mas, aqui no Piollin, já não pode comportar a margem das ambigüidades das intenções originárias de Tchekhov: estamos diante da encenação de uma tragédia absoluta, ademais, como queriam os gregos, que sabiam separar os dois gêneros.
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