Maria Bethânia e Omara Portuondo

Comecei desconfiando, desgostando. Parecia um encontro oportunista. Ademais, em primeira audição, no carro, indo e voltando da universidade (a universidade, essa máquina maluca, ao mesmo tempo, de beleza e de banalidade do mal, de floração e assassinato de jovens brilhantes, e de edição, em passeata, pois são tantos, de pequenos monstros morais, hitlers em miniatura), conversando, pensando em política (a eterna droga), preocupado com as filhas, comigo mesmo, com Gramsci ou Walter Benjamin (o herói antigo e a paixão nova), ouvia sem escutar. Como escutar com a cabeça no mundo? Audição é concentração. Gosto (o eterno Kant!) mais de Omara Portuondo que de Maria Bethânia, embora goste muito de ambas. Omara por memória de Ibrahim Ferrer e Rubén González, o cantor e o pianista, dois sábios. Amo os cubanos. Todos que me conhecem sabem que prefiro Gal Gosta (a do tropicalismo; depois, Gal e Bethânia compartilham da mesma estética) e Nara Leão a Maria Bethânia. Nara e Gal tocam mais ao meu coração, uma maneira sentimental de argüir o inconsciente. Minha amiga Mira (mais de Cida que minha, por certo), por índole talvez mais próxima a Bethânia, me instigou a re-escutar as canções. Mais que re-escutar, ouvir pela primeira vez, sem a cabeça no mundo. Para ela, o CD é maravilhoso. Depois de escutar atentamente, reitero.
Qual o problema se for um encontro “oportunista”? (E não o é, ao contrário). Há uma saudável tendência entre os apreciadores da boa música em escutar um CD como uma obra integral, de conceito amarrado. Os grandes discos de música popular da segunda metade do século XX, imitando os estilos eruditos, a sinfonia e a ópera – Sgt Peppers (Beatles) a Tommy (The Who), por exemplo -, são álbuns programáticos: compõem um bloco. Para escutar os cantores de antes dos anos 60, em geral, somente a obra inteira compõem, enfim, o bloco. Nos dias de hoje, em alguns casos, o futuro, em sua diversidade, cheira ao passado mais inocente da música popular, quando o amor romântico, o eu lírico, a paixão, o violão plangente, o piano chopiniano, o bolero, o samba-canção, bastavam como conceito. Ainda mais, o romantismo, na moderna tradição popular, virou uma espécie de conceito dos conceitos. Falei em conceito? Talvez fosse mais correto dizer cânone, reiteração de formas conhecidas e testadas, pois ao inverso do que se passou nas artes plásticas durante o século passado, no caso das duas cantoras não se pretende romper com a linguagem de coisa alguma. Trata-se objetivamente de reafirmar, na despreocupação com qualquer renovação estética. Omara e Bethânia querem fazer bem feito (profissionalmente). Ponto.
Romantismo: comunhão telúrica e amor abstrato. Por isso, a renitente - que até passa por eterna sem ser -, permanência do amor romântico e do telurismo, cantado, quase como monotemas, por Omara e Bethânia, com todas as criticas racionais que se lhe possam ser feitas. A força da permanência do romantismo não se origina da fruição de uma única obra, mas da própria sociabilidade espontânea, da identidade de muitos, da saudade mútua de quem foi e de quem ficou.
O metro analítico do encontro de Omara com Bethânia é a obra das duas grandes cantoras, que em algum momento se cruzou, e isso basta. Para que exigir mais? Aliás, a própria exigência é descabida, no sentido de que quem exige o conceito como obrigação pode ser, no mais das vezes, apenas um daqueles espíritos perversos racionalizados, tecnocratizados, sempre buscando ser mais sem escrúpulo.
Os detalhes são fundamentais. Há um detalhe tocante no CD de Omara e Bethânia. A capa. Trata-se de uma montagem: as duas são flagradas com as mãos no queixo, absortas, pensativas e alegres. Os olhos de Bethânia estão baixos e ela sorrir; os olhos de Omara estão abertos, e a boca fechada recorda do sorriso discreto de uma Mona Lisa renascentista, portadora da dignidade típica dos cubanos. O principal: arisco, pelo instantâneo, a dizer que as duas vivem um momento, breve que seja, de felicidade. Vivem, no tempo integral do momento, a felicidade proporcionada pela música quando é a arte do encontro. Gostaria de beijar as duas, com o respeito que merecem. (Jaldes Reis de Meneses).

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