Soraia Bandeira, cantora do mundo

Fiz no post-cometário sobre o disco "Araçá Azul"(Caetano Veloso), que pode ser lido logo abaixo, uma menção ao desenvolvimento da música popular no Brasil, Estados Unidos e Cuba, postulando a abertura para o mundo, em vez do fechamento a uma "tradição". São idéias que preciso desenvolver mais, embora ache que esteja correto. Por exemplo, no caso do forró nordestisno, só a desinformação junta o ritmo do forró sem mais nem menos com uma suposta tradição atávica, ancestral. O forró, ao inverso, é a vocalização da modernidade nordestina, e só poderia ter vindo a lume na onda da "era Vargas" do rádio. Obviamente, já me tornando repetitivo, o forró está distante de significar um corte na tradição, mas desborda dela. Isso que é o bom. Cascaveando folhas do ano passado, encontrei um artigo sobre a cantora Soraia Bandeira (publicado no jornal "Correio da Paraíba", em 24/06/07), um começo do desenvolvimento dessas idéias. Boa leitura, inspirada na bela voz de Soraria, cantora do mundo nascida na Paraíba. (Jaldes Reis de Meneses) .

Soraia Bandeira, Uma cantora do mundo

Jaldes Reis de Meneses
Professor do Departamento de História da UFPB.
e-mail: jaldesm@uol.com.br.


Não gosto de expressões como música paraibana, ou mesmo nordestina: sem desconhecer a nossa bonita história musical, a rítmica de Jackson do Pandeiro e as escalas básicas, arrastadas como o nosso sotaque, do violeiro (sempre um gênio da poética que tira tudo da escassez), enfim, as singularidades da musicalidade nordestina – aproveitadas com maestria por um carioca como Edu Lobo, no remoto ano de 1967, em Ponteio, ou por Zé Ramalho, poeta-violeiro underground, por exemplo –, somos mais universais que folclóricos em melodia, ritmo e harmonia. Bach e Beethoven são nossos, participes da cultura brasileira, eis a lição de Villa-Lobos. O mito da torre de Babel, que dividiu o mundo em uma infinidade de línguas, talvez tenha sido mais condescendente com a música. A indivisibilidade da linguagem musical – quem sabe? – , possa explicar a receptividade da diáspora musical brasileira, ou seja, a massiva migração de nossos músicos populares jovens mais talentosos ao exterior – Japão, Europa e antes Estados Unidos. Afora os viciadíssimos em música, acompanhantes da cena mundial do jazz e da word music, quem conhece, no Brasil, por exemplo, as nossas cantoras que brilham no mundo como Cibelle, Bebel Gilberto, Sonia Rosa, Lisa Ono, Kátia B, Luciana Souza e Ithamara Koorax? Quase ninguém, certamente.

Há duas tradições de música popular que se abriram ao mundo: o Brasil e os Estados Unidos (Cuba chegou perto, mas ficou a meio do caminho), cujos músicos não se deixaram estiolar pela força da tradição e fizeram uma poderosa simbiose dos ritmos populares, vindos do campo ou das zonas de resistência dos centros urbanos, com a modernidade e o processo de modernização capitalista – Sinhô, Pixinguinha, Noel Rosa, João Gilberto, Caetano Veloso, Chico Buarque, Chico César, são tantos, todos estavam de olho na indústria cultural de seu tempo, mas não se deixaram consumir por ela. Viraram o jogo por dentro.

Por tudo isso, resisto em rotular Soraia Bandeira como cantora paraibana. Seria diminuir o metro analítico. Nada disso: Soraia é uma cantora do mundo, nascida na Paraíba, da geração dos anos oitenta e noventa, juntos aos quais construiu uma verdadeira lenda pessoal (embora para um público seleto, mas isso pouco importa) tanto quanto Glória Vasconcelos, morta prematuramente – cantando “A barca”, de Pedro Osmar (depois gravada por Lenine com o título de “Mote do Navio”, no CD “O dia em que faremos contato”, 1997) –, ou “O companheiro Santo”, de Jaiel de Assis, no céu aberto de um ato político em praça pública, Glória era impressionante).

Seguramente, a lenda pessoal de Soraia foi construída na Paraíba e não lá fora, pela juventude daquele tempo que a viram, escutaram, e guardam na memória as primeiras performances de sua carreira. Desde aquela época, duas características distinguem Soraia: o domínio da técnica vocal combinado a uma grande amplidão de repertório, indo de Luiz Ramalho, Milton Dornellas, Renato Russo, Djavan a Billie Holiday.

Cumprindo a sina dos tempos, a geração se dispersou como auditório (alguns poucos até já morreram), e Soraia Bandeira migrou a São Paulo. No entanto, ao revermos a cantora no palco (vimos recentemente no Paraíba Café e no Projeto Sede de Leitura, da ADUFPB), a geração se recompõe, pois de alguma maneira passamos, nos quadros da memória, a detectar o que talvez fossemos e que o fizemos de nós. A depender do que Soraia Bandeira é hoje como artista, o resultado da avaliação é ótimo. A cantora pode levar nos levar às veredas complacentes do auto-engano, sei disso, mas ela é o que interessa. Em primeiro lugar, Soraia, curte, desfruta dos músicos que a acompanham, isso já era de antes, mas agora é plenamente consciente, dá a eles uma liberdade sonora que, se não chega a uma jam session, em muito se aproxima. Uma cantora de músicos. Quando o músico sola, temos uma pequena pausa na letra da canção, e a figura de Soraia aparece mais claramente na dança. A dança transfigura a cantora em música, este objeto tão evanescente quanto fundamental. A antiga integridade da lírica arcaica grega, reminiscência sempre agente reaparece mais uma vez: música, poesia e dança como uma totalidade, uma celebração da vida. A totalidade perdida da vida reaparece por um segundo, como pista de uma utopia. Depois, há em tudo isso um frescor, uma simplicidade – até uma humildade –, impressionante.

Em suma, uma terralidade pé no chão. Por que a atitude ao vivo de Soraia Bandeira é sofisticada e despojada, ao mesmo tempo? Gostaria de entender e avento como hipótese, uma resposta: Soraia Bandeira prenuncia, mesmo sem querer e jamais, certamente, ter pensando nestes termos, um tempo futuro, uma arte paratodos, um momento no qual ninguém se deixará iludir pelo mito do artista, refletido numa imagem de Olímpio distanciado, mas todos seremos estetas, conforme as nossas disponibilidades de tempo livre, ao mesmo tempo em que também poderemos caçar ou pescar. Iremos unir, um dia, a zona norte e a zona sul, está a mensagem inscrita na garrafa da geração dos anos oitenta do século passado, em seguida içada em mar revolto. Gerações possuem história e memória, mesmo que em fragmentos, lusco-fuscos que brilham aleatoriamente, juntando as mais dispersas lembranças. Termino enigmático, memória do tempo que se confunde: Kant e Hegel saudaram a revolução francesa, esperávamos mais da democracia no Brasil. O ardil do mito da geração demanchar-se-á em um dia longevo, numa nova utopia da emancipação social que sonhamos. Enquanto isso, enquanto seu lobo (o mal, o Estado, o capital, as ditaduras) não nos deixar de atazanar, a voz e a atitude de Soraia Bandeira seguem como promessa, e que tenha longa vida este biscoito fino.

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