Jefferson Peres e Marina Silva: a morte da ética
Jaldes Reis de Meneses.
Professor dos Programas de Pós-Graduação em História e Serviço Social (UFPB).
Lamentei o falecimento do senador Jefferson Peres e o pedido de demissão da Ministra Marina Silva do Ministério do Meio Ambiente. O senador morreu na hora errada, vai embora para sempre no momento de descrédito institucional generalizado do mundo político brasileiro, enquanto a ex-ministra (uma demissão de enorme repercussão internacional) deixa o ministério queimando, feito as labaredas de fogo tostando árvores na floresta amazônica. Jefferson não volta mais e Marina exibe o porte de uma guerreira disposta ao bom combate.
No reino da política institucional brasileira, quase todos carregam na boca um suspeito sorriso satisfeito. Ninguém se indigna mais com nada. Há pouco debate sobre o verdadeiro conteúdo de nossa corrupção – o combate principal de Jefferson Peres –, bem como sobre as tendências de futuro do modelo de desenvolvimento brasileiro – o tema por excelência de Marina Silva. Embora possa parecer inusitado à primeira vista, são dois temas entrelaçados, dizem respeito, cada qual em sua particularidade, aos rumos de um país que saiu a pouco de um ciclo de estagnação econômica para um processo de mobilização acelerada de recursos naturais e alteração dos padrões tradicionais das relações sociais, regionais, classistas e políticas.
Muitos são os rumos possíveis do capitalismo brasileiro. Conquanto todos estejam felizes com o desenvolvimento, por outro lado as tendências predominantes ensejam a consolidação de um capitalismo selvagem de tipo burocrático. Há uma passagem premonitória (melhor dizendo: uma hipótese de trabalho) em um escrito de Caio Prado Jr. publicado no ano 1966 (A revolução brasileira) que descreve as linhas gerais, com fundamento na história pregressa do Brasil, do que poderia vir a ser a eventual possibilidade de consolidação estrutural de um capitalismo burocrático, uma poderosa máquina de acumulação de capital e realização de grandes lucros "politizada", no qual o Estado comanda a divisão dos lucros e a socialização dos prejuízos. O futuro como o presente e o passado.
A tese do capitalismo burocrático começa a fazer algum sentido ao compararmos as linhas emergentes no Brasil com outros países que crescem em ritmo acelerado, a China, a Rússia, ou mesmo o México e a Colômbia. (A Índia é um caso à parte, embora ainda um país pobre e de um rígido sistema de castas, com muitas divisões étnicas e uma forte clivagem religiosa na região da Caxemira, possui um sistema político parlamentarista razoavelmente assentado). Assunto ainda menosprezado na academia brasileira (nos Estados Unidos, chovem estudos comparados sobre os países emergentes), o país encontra-se situado no vértice de um novo processo de modernização capitalista no qual estão se amalgamando altos índices de desenvolvimento (não se sabe bem até quando, pois todos os emergentes têm desafios e gargalos institucionais complicados) e instituições políticas discrepantes da institucionalidade democrática que, em tortuoso processo histórico, vingou nos Estados Unidos e na Europa Ocidental. O novo capitalismo dos emergentes parece melhor se adaptar à autocracia e ao bonapartismo.
O Brasil não é a China nem a Rússia, mas somente o desconhecimento de nossa história conduz à afirmação de que as instituições democráticas estão consolidadas entre nós. Várias tendências componentes do bloco no poder negam objetivamente a casca liberal do regime político: um sindicalismo paraestatal íntimo do capital financeiro através dos fundos de pensão e toda uma série de organizações não governamentais (ou "neo" governamentais, conforme a provocação do sociólogo espanhol Manuel Castells, feita ainda durante o governo FHC) que mimetizam, contudo não são, de fato, efetivos movimentos sociais autônomos (vampiros a colher o sangue dos movimentos sociais?). Tempos de simulacros.
Ainda bem que o que viceja no Brasil não é somente política institucional, a vida pulsa na sociedade, nas relações sociais e nas surpresas de nosso cotidiano de indivíduos sociais soltos no mundo, numa mistura de tragédia e promissão.
Por outro lado, a miséria secular do sistema político brasileiro (a longa duração do domínio do que Raimundo Faoro chamou de “patronato político brasileiro") se transformou, depois da fase da luta democrática pelo fim da ditadura – uma conjuntura na qual havia muitas opções de destino –, num dispositivo. Dispositivo político e não “udenismo moralista”, a palavra mágica de todos os corruptos colhidos em flagrante delito. Dispositivo político: a palavra tem um significado preciso em Heidegger e Foucault. Trata-se, em suma, da montagem de um aparato técnico de controle, impossibilitado de produzir em série o que podemos chamar de “lideranças de convicção”, e não como exceção, a exemplo do senador e da ex-ministra.
O Brasil virou o reino dos políticos e dos partidos profissionais. No fundo, as atitudes do senador e da senadora são dissonantes, se me compreendem. Suas atitudes políticas no senado e no ministério, muitas vezes, pareciam como a de um peixe fora d’água. Quando menciono “lideranças de convicção” sei que tangencio um reino de polêmicas da teoria política, desde que Maquiavel em “O príncipe” formulou a distinção entre a “moral pública” e a “moral privada”, e no começo do século XX, Max Weber aproveitou a deixa maquiavélica para tecer considerações sobre o que chamou de “ética das convicções” e “ética da responsabilidade”.
Há um mal-entendido interesseiro na recepção dessas formulações. O homem de Estado, em Maquiavel tinha um objetivo público – a formação do Estado nacional moderno pela via da monarquia absoluta. Maquiavel jamais defendeu o vale tudo. Moral pública requer projeto (assim como a bandeira ecológica de Marina Silva ou a intransigência jacobina de Jefferson Peres contra a corrupção), ou seja, os tais fins que justificam os meios, parafraseando a mais famosa frase do florentino, tão citada como incompreendida. Por seu turno, em Weber – um cético que estudou a política profissional no capitalismo contemporâneo, especialmente no escrito "A política como vocação"–, cabem na atividade política os dois tipos de políticos: o guiado pela ética da convicção - por excelência o apanágio do profeta, dos que abrem caminho (sempre é importante lembrar, com Albert Camus, em "A queda", que tempos medíocres produzem profetas vazios) -, e os adeptos pragmáticos da "ética da responsabilidade", na melhor das hipóteses, por uma administração transparente, de tipo "republicano", no sentido do tratamento dos problemas correntes do aparato estatal público. A ética da responsabilidade, portanto, vem a ser o cuidado com a estrada depois de pavimentada. Vale repetir: em Weber, há lugar para os dois tipos de políticos, embora, é claro, seu ceticismo prefira o terreno da profecia fora do universo da política.
Tampouco o marxismo dá guarida ao vale tudo. Ao contrário, Trotsky, no conhecido panfleto “A moral deles e a nossa”, afirma peremptoriamente que a moral política dos revolucionários é diferente da moral burguesa como água e óleo, permitindo-se, assim, o uso da violência, mas não da corrupção em benefício próprio ou de um grupo. Dessa maneira, um Delúbio Soares ou um esquema como o do “mensalão”, o enriquecimento ilícito através do tráfico de influência e da promiscuidade sistemática entre grandes empresas e funcionários públicos, são práticas totalmente desautorizadas na chamada moral revolucionária.
Que Jefferson Peres tenha descanso e Marina Silva chegue com garra à tribuna do senado. Acho que ambos têm algo de tenacidade nordestina. Assisti na televisão depoimentos que ressaltavam o empenho de Jefferson Peres na questão amazônica. Em minha intimidade, o senador, quando falava na tribuna ou nas comissões do senado me parecia um nordestino – como se diz entre nós, uma baraúna espinhosa, um homem que não se verga em face de eventuais dificuldades. Do mesmo modo, a cabocla Marina tem feições que lembram uma retirante em direção a São Paulo ou ao Acre, Estado que deu abrigo a tantos irmãos cearenses. A oratória do senador e a convicção ecológica de Marina são de tipo nordestino: seca, econômica, direta ao alvo, lamina cortante, substantiva concreta, parecida com a frase de Graciliano Ramos e o verso de João Cabral de Melo Neto, personalidades com as quais, estranhamente, ambos guardam, para mim, uma estranha identidade, até mesmo na aparência física.
Professor dos Programas de Pós-Graduação em História e Serviço Social (UFPB).
Lamentei o falecimento do senador Jefferson Peres e o pedido de demissão da Ministra Marina Silva do Ministério do Meio Ambiente. O senador morreu na hora errada, vai embora para sempre no momento de descrédito institucional generalizado do mundo político brasileiro, enquanto a ex-ministra (uma demissão de enorme repercussão internacional) deixa o ministério queimando, feito as labaredas de fogo tostando árvores na floresta amazônica. Jefferson não volta mais e Marina exibe o porte de uma guerreira disposta ao bom combate.
No reino da política institucional brasileira, quase todos carregam na boca um suspeito sorriso satisfeito. Ninguém se indigna mais com nada. Há pouco debate sobre o verdadeiro conteúdo de nossa corrupção – o combate principal de Jefferson Peres –, bem como sobre as tendências de futuro do modelo de desenvolvimento brasileiro – o tema por excelência de Marina Silva. Embora possa parecer inusitado à primeira vista, são dois temas entrelaçados, dizem respeito, cada qual em sua particularidade, aos rumos de um país que saiu a pouco de um ciclo de estagnação econômica para um processo de mobilização acelerada de recursos naturais e alteração dos padrões tradicionais das relações sociais, regionais, classistas e políticas.
Muitos são os rumos possíveis do capitalismo brasileiro. Conquanto todos estejam felizes com o desenvolvimento, por outro lado as tendências predominantes ensejam a consolidação de um capitalismo selvagem de tipo burocrático. Há uma passagem premonitória (melhor dizendo: uma hipótese de trabalho) em um escrito de Caio Prado Jr. publicado no ano 1966 (A revolução brasileira) que descreve as linhas gerais, com fundamento na história pregressa do Brasil, do que poderia vir a ser a eventual possibilidade de consolidação estrutural de um capitalismo burocrático, uma poderosa máquina de acumulação de capital e realização de grandes lucros "politizada", no qual o Estado comanda a divisão dos lucros e a socialização dos prejuízos. O futuro como o presente e o passado.
A tese do capitalismo burocrático começa a fazer algum sentido ao compararmos as linhas emergentes no Brasil com outros países que crescem em ritmo acelerado, a China, a Rússia, ou mesmo o México e a Colômbia. (A Índia é um caso à parte, embora ainda um país pobre e de um rígido sistema de castas, com muitas divisões étnicas e uma forte clivagem religiosa na região da Caxemira, possui um sistema político parlamentarista razoavelmente assentado). Assunto ainda menosprezado na academia brasileira (nos Estados Unidos, chovem estudos comparados sobre os países emergentes), o país encontra-se situado no vértice de um novo processo de modernização capitalista no qual estão se amalgamando altos índices de desenvolvimento (não se sabe bem até quando, pois todos os emergentes têm desafios e gargalos institucionais complicados) e instituições políticas discrepantes da institucionalidade democrática que, em tortuoso processo histórico, vingou nos Estados Unidos e na Europa Ocidental. O novo capitalismo dos emergentes parece melhor se adaptar à autocracia e ao bonapartismo.
O Brasil não é a China nem a Rússia, mas somente o desconhecimento de nossa história conduz à afirmação de que as instituições democráticas estão consolidadas entre nós. Várias tendências componentes do bloco no poder negam objetivamente a casca liberal do regime político: um sindicalismo paraestatal íntimo do capital financeiro através dos fundos de pensão e toda uma série de organizações não governamentais (ou "neo" governamentais, conforme a provocação do sociólogo espanhol Manuel Castells, feita ainda durante o governo FHC) que mimetizam, contudo não são, de fato, efetivos movimentos sociais autônomos (vampiros a colher o sangue dos movimentos sociais?). Tempos de simulacros.
Ainda bem que o que viceja no Brasil não é somente política institucional, a vida pulsa na sociedade, nas relações sociais e nas surpresas de nosso cotidiano de indivíduos sociais soltos no mundo, numa mistura de tragédia e promissão.
Por outro lado, a miséria secular do sistema político brasileiro (a longa duração do domínio do que Raimundo Faoro chamou de “patronato político brasileiro") se transformou, depois da fase da luta democrática pelo fim da ditadura – uma conjuntura na qual havia muitas opções de destino –, num dispositivo. Dispositivo político e não “udenismo moralista”, a palavra mágica de todos os corruptos colhidos em flagrante delito. Dispositivo político: a palavra tem um significado preciso em Heidegger e Foucault. Trata-se, em suma, da montagem de um aparato técnico de controle, impossibilitado de produzir em série o que podemos chamar de “lideranças de convicção”, e não como exceção, a exemplo do senador e da ex-ministra.
O Brasil virou o reino dos políticos e dos partidos profissionais. No fundo, as atitudes do senador e da senadora são dissonantes, se me compreendem. Suas atitudes políticas no senado e no ministério, muitas vezes, pareciam como a de um peixe fora d’água. Quando menciono “lideranças de convicção” sei que tangencio um reino de polêmicas da teoria política, desde que Maquiavel em “O príncipe” formulou a distinção entre a “moral pública” e a “moral privada”, e no começo do século XX, Max Weber aproveitou a deixa maquiavélica para tecer considerações sobre o que chamou de “ética das convicções” e “ética da responsabilidade”.
Há um mal-entendido interesseiro na recepção dessas formulações. O homem de Estado, em Maquiavel tinha um objetivo público – a formação do Estado nacional moderno pela via da monarquia absoluta. Maquiavel jamais defendeu o vale tudo. Moral pública requer projeto (assim como a bandeira ecológica de Marina Silva ou a intransigência jacobina de Jefferson Peres contra a corrupção), ou seja, os tais fins que justificam os meios, parafraseando a mais famosa frase do florentino, tão citada como incompreendida. Por seu turno, em Weber – um cético que estudou a política profissional no capitalismo contemporâneo, especialmente no escrito "A política como vocação"–, cabem na atividade política os dois tipos de políticos: o guiado pela ética da convicção - por excelência o apanágio do profeta, dos que abrem caminho (sempre é importante lembrar, com Albert Camus, em "A queda", que tempos medíocres produzem profetas vazios) -, e os adeptos pragmáticos da "ética da responsabilidade", na melhor das hipóteses, por uma administração transparente, de tipo "republicano", no sentido do tratamento dos problemas correntes do aparato estatal público. A ética da responsabilidade, portanto, vem a ser o cuidado com a estrada depois de pavimentada. Vale repetir: em Weber, há lugar para os dois tipos de políticos, embora, é claro, seu ceticismo prefira o terreno da profecia fora do universo da política.
Tampouco o marxismo dá guarida ao vale tudo. Ao contrário, Trotsky, no conhecido panfleto “A moral deles e a nossa”, afirma peremptoriamente que a moral política dos revolucionários é diferente da moral burguesa como água e óleo, permitindo-se, assim, o uso da violência, mas não da corrupção em benefício próprio ou de um grupo. Dessa maneira, um Delúbio Soares ou um esquema como o do “mensalão”, o enriquecimento ilícito através do tráfico de influência e da promiscuidade sistemática entre grandes empresas e funcionários públicos, são práticas totalmente desautorizadas na chamada moral revolucionária.
Que Jefferson Peres tenha descanso e Marina Silva chegue com garra à tribuna do senado. Acho que ambos têm algo de tenacidade nordestina. Assisti na televisão depoimentos que ressaltavam o empenho de Jefferson Peres na questão amazônica. Em minha intimidade, o senador, quando falava na tribuna ou nas comissões do senado me parecia um nordestino – como se diz entre nós, uma baraúna espinhosa, um homem que não se verga em face de eventuais dificuldades. Do mesmo modo, a cabocla Marina tem feições que lembram uma retirante em direção a São Paulo ou ao Acre, Estado que deu abrigo a tantos irmãos cearenses. A oratória do senador e a convicção ecológica de Marina são de tipo nordestino: seca, econômica, direta ao alvo, lamina cortante, substantiva concreta, parecida com a frase de Graciliano Ramos e o verso de João Cabral de Melo Neto, personalidades com as quais, estranhamente, ambos guardam, para mim, uma estranha identidade, até mesmo na aparência física.
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