Matrix e Blindness

Antes de “Blindness”, na série de filmes “Matrix” (produzido pelos irmãos Wachowski, baseado no romance de ficção científica de Philip K. Dick) já tínhamos em evidência a temática da distopia de um mundo aterrador, no cinema contemporâneo, da mesma maneira que na cultura de massas. No caso de "Matrix", um real, duro e inóspito mundo dividido, compreensível a poucos membros de uma vanguarda libertadora, e outro virtual e ilusório, falso com ilusão de realidade, composto de uma massa escravizada, com o agravante de que o estado de submissão encontra-se imanente à própria consciência individual, cujas cadeias internas impedem o acesso ao real. A pior e mais compacta das experiências de escravidão porque desborda do plano da relação social (guerreiro e escravo, senhor e servo, burguês e operário) e penetra integralmente no terreno da psique, criando uma situação na qual o plano da autonomia individual esfumou-se, tornou-se inefável. Ou seja, no limite, estamos diante da manufatura de uma dominação quase perfeita.
Tendo a ver uma diferença central em “Blindness” e “Matrix” (ainda não assisti à "Blindness", não estive em Cannes...). No primeiro, a peste unifica o mundo; no segundo, o mundo encontra-se em paralelo. Em Blindess, o enredo diz respeito à disseminação de uma peste (a elegíaca remissão a Camus parece-me óbvia) da qual é impossível fugir, ficar imune à ação deletéria do vírus. Ou seja: “Blindness” é uma alegoria dos dias de hoje, enquanto “Matrix” tem o significado de uma projeção, em narrativa de aventura de ficção científica (inclusive com a presença canônica de um herói de tipo positivo, Neo), dos possíveis desenvolvimentos da ciência e da técnica, influindo inclusive na definição da condição humana, até chegarmos ao estágio do “pós-humano” (tenho muitas diferenças com as teses do “pós-humano” em circulação na filosofia contemporânea, contudo no momento não cabe comentário). Caso recuemos a análise às obras de ficção científica mais antigas e famosas como “1984”, de George Orwell, ou “Admirável mundo novo”, de Aldous Huxley, conseguiremos detectar, em que pese diferenças, a filiação literária e cinematográfica de “Matriz”, cujo núcleo de afinidades encontra-se na similitude centralizadora dos controles sociais: “1984” (um poder político de tipo totalitário), “Admirável mundo novo” (o monopólio oligárquico de uma droga química conformista) e “Matriz” (a própria matriz geradora de realidade). O poder centralizado pode-se fazer explodir por uma vanguarda, mas, face à solerte disseminação de uma peste, que se pode fazer? (Jaldes Reis de Meneses).

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