"Passeio pelo escuro, eu presto muita atenção no que meu irmão ouve"

Há um verso de uma canção de Adriana Calcanhoto, “Esquadros”, de que gosto muito: “passeio pelo escuro, eu presto muita atenção no que meu irmão ouve”. Fiz menção em um artigo passado sobre as comemorações de 1968 a propósito do fenômeno contemporâneo de uma repetição, uma reiteração, um eco que nos deixa surdos, mudos e cegos. Automatizamos nossos sentidos, mecanizamos as sensações. Nada de novo, pois, de alguma maneira, o trabalho braçal desde sempre logrou êxito precisamente na instrumentação de nossa capacidade manual. O problema atual é que a propriedade do automatismo de nosso aparelho psico-físico, se alastrou como uma praga, uma maldição, por todas as esferas sociais, desde a produção material ao mundo das idéias. Lêem-se poemas de maneira igual: procurando a reiteração de sentimentos datados de antes, um emocionalismo romântico basbaque. A sensação do poema afasta a surpresa, pede apenas a confirmação. Autênticos ensaios sobre a cegueira. Em tempos de escuridão, a bússola pode estar em prestar atenção no que meu irmão ouve, pode ser uma coisa diferente, inusitada. De lá vêem bons sinais, muitas vezes pelo avesso. Na ausência da clara luz iluminista, devemos fazer uso do tato e pedir ajuda ao irmão que ouve. Qual o motivo das divagações? Um pouco fornecer pistas de leituras do singelo, despretensioso, poema abaixo (Poema bobo). Fornecer chaves a enigmas é feito enxugar gelo: uma ação de começo fadada ao fracasso. Detesto “explicar” poemas não porque os ache fruto do santo mistério, inexplicáveis, mas, ao contrário, por que poemas são aberturas ao mundo, por definição múltipla. Obras abertas, para lembrar a inspirada definição de Umberto Eco. Pois bem, inventei de fazer um poema sobre a felicidade, um sentimento abstrato, sobre o qual o jovem Saint-Just ("a felicidade é uma idéia nova na Europa", 1794), o corifeu do alcance da felicidade pela política, no auge dos aguçados debates da convenção francesa (1792-94), buscou dar uma concretude logo revelado quimérica, inexistente. Aos que conhecem a história, ocioso lembrar que o cofireu da felicidade morreu sob o peso da guilhotina. Mais adiante, ainda na história das idéias francesas, Saint-Simon - genial e desparafusado utopista -, concebeu a felicidade como um lugar específico, um espaço, um paraiso artificial e à parte no qual as pessoas desfrutariam dos benefícios do progresso científico e das artes. Ao inverso de Saint-Just, em Saint-Simon, o lugar da felicidade seria totalmente despolitizado. Pouco importa: politizado ou despolitizado, em ambos a felicidade completa, algum dia, nem tão distante, estaria ao alcance das mãos.
Felicidade: sentimento abstrato. Poesia?
É verdade que meu poema fala de uma experiência de felicidade íntima e minimalista, um afastado epocal da épica saint-justiana, da felicidade inscrita na constituição da nação moderna. A minha felicidade será de alguma maneira a dos cegos. Seria uma bela felicidade, desde que não se conforme com a cegueira (a felicidade dos quem não vêem), procure a ajuda do irmão de tato no quarto escuro para sair dela. No mito da caverna platônico, alguém olhou para trás e viu a luz.
Sei que a maioria das pessoas vai enxergar somente lirismo onde vejo muito sarcasmo (por isso, o verso “cão satisfeito com o osso”). Não considero “Poema Bobo” poema irônico, mas sarcástico. São posicionamentos diferentes: a ironia requer um distanciamento que talvez o sarcasmo não tenha. A ironia é uma atitude de distanciamento crítico – a mais intelectual de todas as atitudes –, ao passo que o sarcasmo significa auto-indulgência, zombar de si mesmo. Por isso, acho que o mesmo poema comporta uma leitura lírica, sem sarcasmos, que também aprecio. Há uma dupla intenção no que escrevi: uma moeda e suas duas faces. O poema, sempre uma falange de máscaras. (Jaldes Reis de Meneses)

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