Jamelão

Morreu Jamelão, com noventa e tantos anos. A longevidade ajuda a quem escreve um necrológio (mesmo sucinto), como eu, a buscar inspiração no truísmo de que se foi o último grande de uma geração de cantores brasileiros. Mas, de certo modo, Jamelão foi um deslocado: se nitidamente sua voz buscou inspiração inicial em Orlando Silva, ele era ainda mais arrebatado e sangüíneo, quanto ao repertório, embora, ao mesmo tempo, emocionalmente centrado nas interpretações, em reverência há um tempo em que Dick Farney anunciava - todo profeta ou é da voz ou das tábuas da lei, já notaram? - a chegada revolucionária de João Gilberto. Arrebatado e contido, a dialética técnica do gênio da voz de Jamelão, um cantor brasileiro de big band; de todo modo, um extemporâneo com a chegada do canto de João Gilberto.

A realidade histórica é que Jamelão nunca compôs – ou só compôs episodicamente –, o cast de cantores da Rádio Nacional. Nunca foi um superstar da era do rádio. Voz sofisticada de veludo chegou retardatário à época de vigência de seu canto original (tanto que os cantores foram sendo substituídos, no Brasil, por uma tradição de cantoras); como se, por exemplo, hoje, um jovem cantor (e são muitos os extemporâneos) inventasse de chegar ao universo da música popular pensando exclusivamente em MPB, em reiterar as soluções poéticas, melódicas e harmônicas da obra consolidada de Chico Buarque, Djavan, Paulinho de Viola ou Zé Ramalho. Jovem velho.

O jovem contemporâneo, ao contrário, esperto, apanha elementos para MPB para citar e não reiterar. Um jovem, velho ou contemporâneo, não é melhor do que o outro, necessariamente. O degrau é de atualização cosmopolita e não estético. Apenas o jovem velho vai sofrer mais, retardatário no tempo, com a vocação a bater cabeças, coitado herói anti-épico. A vocação de Dom Quixote, feito o veneno da serpente, sempre é encantatória. Também se deseja o sofrimento, sabe-se desde Freud. Na vontade de sofrer residiria a força e o segredo inconsciente do canto de Jamelão?

Jamelão percorreu vários tempos: cantor principal da Orquestra Tabajara (do nosso maestro Severino Araújo) e magnífico interprete dos sambas boleros de Lupicínio Rodrigues, o maior de todos. Deveria ser lembrando por sua principal obra, e não simplesmente como “puxador” de sambas da Mangueira, tarefa a que se dedicou com afinco nas últimas décadas – e em que também foi grande –, certamente quando viu fechadas as portas da indústria fonográfica. Ressurgiu pelas mãos generosas do samba, um novo Jamelão, inferior tecnicamente ao anterior como cantor, mas tornado, com todos os méritos (inclusive o mau humor), personalidade do samba. Cotejando gravações antigas com a voz dos sambas-enredo da Mangueira, cabe a constatação de que a voz de Jamelão foi mudando: o veludo se tornando áspero, já não era a mesma voz do grande Jamelão dos anos 50. Jamelão destestava ser anunciado em público, mesmo na quadra, como "puxador" de sambas. Evidente: Jamelão sabia quem foi Jamelão. Pode-se, assim, explicar até os motivos do mau-humor do cantor: o desentendimento do mundo em que vivia sobre ele mesmo.

O melhor livro do historiador inglês Eric J. Hobsbawm (escrito em parceria com Terence Ranger) chama-se “A invenção das tradições”. No livro, é mostrada a pulsão da modernidade em criar a partir do nada, ou apenas de um indício, suas próprias tradições. Vários movimentos surgem na política e na cultura pregando uma espécie de conto do vigário: vestem a capa da tradição, quando são, na verdade, modernos. Os necrológios de Jamelão, pelo que vejo na TV Globo e leio nos jornais – no terreno micro de uma simples biografia –, fazem às vezes de uma tradição inventada quando põem ênfase no turno final de sua vida como sambista da Mangueira, esquecendo quase por completo o Jamelão ancestral. (Jaldes Reis de Meneses).

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