MPB e Nacional Popular
Jaldes Reis de Meneses.
Professor dos Programas de Pós-Graduação em História e Serviço Social (UFPB).
Uma pessoa amiga me fez uma pergunta interessante numa recente conversa: por que faço tanto questão de demarcar campo entre as expressões MPB, música popular e música no Brasil. Demarco campo mesmo. São três expressões de origem diversa a partir das quais obtemos resultados analíticos distintos. Hoje, por exemplo, a vertente da MPB parece viver um momento – talvez insuperável – de impasse evolutivo, enquanto a música no Brasil (o somatório de todas as sonoridades) segue arrastando quarteirões, industrializada e capitalizada no Trio Elétrico pop de Ivete Sangalo e na tecno-bossa de Bebel Gilberto e do veterano Marcos Vale (me escuso, no momento, de tecer considerações de valor).
Por seu turno, depois de visto a disjuntiva MPB/música no Brasil, música popular vem a ser uma expressão originariamente advinda da quase homônima “cultura popular”, uma expressão criada no bojo do romantismo alemão para polemizar com a tradição clássica, que apanhava elementos das antigas civilizações formativas do ocidente, Roma (os franceses) e Grécia (os alemães). Em sociedades hierarquizadas como a brasileira, a disjuntiva originária dos românticos dos começos do século XIX fez fortuna no sentido de erguer uma estranha muralha da china entre o “erudito” e o “popular”. Vale lembrar que o mito de uma zona de fronteira rígida erudito-popular não tem, em outros lugares, a força que possui no Brasil.
Chegamos ao termo MPB. Na realidade, a expressão MPB foi criada no laboratório da corrente nacional popular, politicamente ligada à esquerda nacionalista e ao PCB, ganhou força em meados dos anos 60, a partir do encontro de sambistas do morro e intelectuais no Zicartola (o lendário bar de Cartola e Dona Zica) e tomou variados caminhos, abrindo muitas sendas de criação e modernidade à música brasileira.
A questão do nacional popular, apesar de muito comentada e estudada por especialistas, é pouco compreendida.
A rigor, nacional popular não significa nem nacionalismo nem populismo, embora possa se juntar aos dois.
O nacionalismo contemporâneo é uma ideologia surgida na Europa novecentista, em geral amalgamada a tendências românticas, racistas e colonialistas, avesso às categorias universalistas do iluminismo francês e, principalmente, à crescente adesão dos trabalhadores ao socialismo. Na América Latina, explorada pelo imperialismo, o nacionalismo acabou seguindo uma configuração diferente da matriz européia. Aqui, terra benfazeja das “idéias fora do lugar” (Roberto Schwarz) ocorreu uma resignificação do nacionalismo, incorporado ao projeto da esquerda, designando, muitas vezes de modo confuso, o anseio da liberdade econômica e política, senão a aurora do socialismo, ao menos o lenitivo do desenvolvimento burguês autônomo.
Por outro lado, o populismo, uma categoria bastante polissêmica – motivo de uma interminável polêmica conceitual sociológica, até hoje –, na feição que medrou na América Latina, pela esquerda, centro e direita do espectro político pode ser definido, sumariamente, como uma maneira heterodoxa (para dizer o de menos) de fazer política nos processos de modernização, engendrados, no século passado, na periferia do sistema mundial capitalista, baseado na figura carismática de um líder (Perón, Vargas, Cárdenas), cultor de uma política de massas.
A tendência (mais cultural que estética) do nacional popular – bordão novamente repetido por que é apropriado fixar –, portanto, não é nacionalismo nem populismo: diz respeito, conforme Gramsci (o corifeu italiano do nacional-popular e uma das referências dos intelectuais brasileiros ligados ao tema, de Vianinha e Dias Gomes a Carlos Nelson Coutinho), à possibilidade específica de integração orgânica entre povo e intelectuais, no processo das revoluções burguesas. Trata-se do processo, certamente complexo, de afirmação no tempo de uma cultura progressista, mais vinculada ao povo que propriamente cosmopolita e internacionalista, mais realista em suas várias possibilidades que vanguardista.
Cabe um parêntesis visando anular eventual mal-entendido. Seria um erro grosseiro confundir nacional popular com realismo socialista (mais aparentado, por paradoxo, com a arte do fascismo). O nacional popular não foi dogmático e incorporou diversos matizes estéticos (por isso é mais correto falar em temos de cultura e política cultural nacional popular que em estética nacional popular): recebeu com loas, por exemplo, o realismo mágico de Gabriel García Márquez e o didatismo de Bertold Brecht. Gramsci, por exemplo, considerava a ópera mais íntima e representativa do nacional popular italiano que a literatura moderna ou mesmo o folhetim popular. Aos críticos: nacional popular, mas sem hífen reificado, por favor...
Questão cabeludíssima, o debate sobre o problema da continuidade (quem sobrevive já morreu) da vigência da vertente nacional popular na cultura brasileira, conduz a muitas veredas, não cabendo, por demorado, abordar neste espaço. No entanto, quem queira insistir na abordagem da atualidade do nacional popular se defronta de pronto com o mega problema histórico de que o processo da revolução burguesa – a matriz de formulação histórica da teoria cultural do nacional popular – chegou irremediavelmente ao fim. No Brasil, o epílogo do processo histórico-universal (nos termos distintos e ascensionais, work in progress, de Voltaire, Hegel e Marx) das revoluções burguesas se deu no entorno da década de 80 do século XX, embora, nos termos de Florestan Fernandes, como “revolução inconclusa”. A própria nomenclatura em que o nacional popular movimentava suas esperanças (os escaninhos da soberania popular nos marcos do constitucionalismo burguês, a origem de tudo), se desatualizou. É preciso olhar bem fundo nos olhos da tragédia.
Professor dos Programas de Pós-Graduação em História e Serviço Social (UFPB).
Uma pessoa amiga me fez uma pergunta interessante numa recente conversa: por que faço tanto questão de demarcar campo entre as expressões MPB, música popular e música no Brasil. Demarco campo mesmo. São três expressões de origem diversa a partir das quais obtemos resultados analíticos distintos. Hoje, por exemplo, a vertente da MPB parece viver um momento – talvez insuperável – de impasse evolutivo, enquanto a música no Brasil (o somatório de todas as sonoridades) segue arrastando quarteirões, industrializada e capitalizada no Trio Elétrico pop de Ivete Sangalo e na tecno-bossa de Bebel Gilberto e do veterano Marcos Vale (me escuso, no momento, de tecer considerações de valor).
Por seu turno, depois de visto a disjuntiva MPB/música no Brasil, música popular vem a ser uma expressão originariamente advinda da quase homônima “cultura popular”, uma expressão criada no bojo do romantismo alemão para polemizar com a tradição clássica, que apanhava elementos das antigas civilizações formativas do ocidente, Roma (os franceses) e Grécia (os alemães). Em sociedades hierarquizadas como a brasileira, a disjuntiva originária dos românticos dos começos do século XIX fez fortuna no sentido de erguer uma estranha muralha da china entre o “erudito” e o “popular”. Vale lembrar que o mito de uma zona de fronteira rígida erudito-popular não tem, em outros lugares, a força que possui no Brasil.
Chegamos ao termo MPB. Na realidade, a expressão MPB foi criada no laboratório da corrente nacional popular, politicamente ligada à esquerda nacionalista e ao PCB, ganhou força em meados dos anos 60, a partir do encontro de sambistas do morro e intelectuais no Zicartola (o lendário bar de Cartola e Dona Zica) e tomou variados caminhos, abrindo muitas sendas de criação e modernidade à música brasileira.
A questão do nacional popular, apesar de muito comentada e estudada por especialistas, é pouco compreendida.
A rigor, nacional popular não significa nem nacionalismo nem populismo, embora possa se juntar aos dois.
O nacionalismo contemporâneo é uma ideologia surgida na Europa novecentista, em geral amalgamada a tendências românticas, racistas e colonialistas, avesso às categorias universalistas do iluminismo francês e, principalmente, à crescente adesão dos trabalhadores ao socialismo. Na América Latina, explorada pelo imperialismo, o nacionalismo acabou seguindo uma configuração diferente da matriz européia. Aqui, terra benfazeja das “idéias fora do lugar” (Roberto Schwarz) ocorreu uma resignificação do nacionalismo, incorporado ao projeto da esquerda, designando, muitas vezes de modo confuso, o anseio da liberdade econômica e política, senão a aurora do socialismo, ao menos o lenitivo do desenvolvimento burguês autônomo.
Por outro lado, o populismo, uma categoria bastante polissêmica – motivo de uma interminável polêmica conceitual sociológica, até hoje –, na feição que medrou na América Latina, pela esquerda, centro e direita do espectro político pode ser definido, sumariamente, como uma maneira heterodoxa (para dizer o de menos) de fazer política nos processos de modernização, engendrados, no século passado, na periferia do sistema mundial capitalista, baseado na figura carismática de um líder (Perón, Vargas, Cárdenas), cultor de uma política de massas.
A tendência (mais cultural que estética) do nacional popular – bordão novamente repetido por que é apropriado fixar –, portanto, não é nacionalismo nem populismo: diz respeito, conforme Gramsci (o corifeu italiano do nacional-popular e uma das referências dos intelectuais brasileiros ligados ao tema, de Vianinha e Dias Gomes a Carlos Nelson Coutinho), à possibilidade específica de integração orgânica entre povo e intelectuais, no processo das revoluções burguesas. Trata-se do processo, certamente complexo, de afirmação no tempo de uma cultura progressista, mais vinculada ao povo que propriamente cosmopolita e internacionalista, mais realista em suas várias possibilidades que vanguardista.
Cabe um parêntesis visando anular eventual mal-entendido. Seria um erro grosseiro confundir nacional popular com realismo socialista (mais aparentado, por paradoxo, com a arte do fascismo). O nacional popular não foi dogmático e incorporou diversos matizes estéticos (por isso é mais correto falar em temos de cultura e política cultural nacional popular que em estética nacional popular): recebeu com loas, por exemplo, o realismo mágico de Gabriel García Márquez e o didatismo de Bertold Brecht. Gramsci, por exemplo, considerava a ópera mais íntima e representativa do nacional popular italiano que a literatura moderna ou mesmo o folhetim popular. Aos críticos: nacional popular, mas sem hífen reificado, por favor...
Questão cabeludíssima, o debate sobre o problema da continuidade (quem sobrevive já morreu) da vigência da vertente nacional popular na cultura brasileira, conduz a muitas veredas, não cabendo, por demorado, abordar neste espaço. No entanto, quem queira insistir na abordagem da atualidade do nacional popular se defronta de pronto com o mega problema histórico de que o processo da revolução burguesa – a matriz de formulação histórica da teoria cultural do nacional popular – chegou irremediavelmente ao fim. No Brasil, o epílogo do processo histórico-universal (nos termos distintos e ascensionais, work in progress, de Voltaire, Hegel e Marx) das revoluções burguesas se deu no entorno da década de 80 do século XX, embora, nos termos de Florestan Fernandes, como “revolução inconclusa”. A própria nomenclatura em que o nacional popular movimentava suas esperanças (os escaninhos da soberania popular nos marcos do constitucionalismo burguês, a origem de tudo), se desatualizou. É preciso olhar bem fundo nos olhos da tragédia.
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