Alberto Caeiro e Walter Benjamin: a linguagem de Adão

Há muitos caminhos, muitas veredas para a poesia. Ela aparece nos lugares mais surpreendentes, pois antes de tudo, até mesmo de ser linguagem, diz respeito à elaboração da experiência direta e desnuda, bruta, do real, ao nosso corpo a corpo com natureza, como nos ensina, aliás, o heterônimo-mor (Alberto Caeiro, o poeta pagão) de Fernando Pessoa (um que poeta teve ao mesmo tempo um projeto filosófico, não se enganem, absolutamente consciente e medido, um dos motivos de ser talvez o mais instigante dos poetas modernos, em todas as latitudes). Walter Benjamin, na juventude, chamou a esta experiência desnuda com o real (ainda não me refiro à “realidade”) como “linguagem adâmica” (a linguagem de Adão), no fundo para refletir um paradoxo: a possibilidade entrevista de nomear diretamente pelas sensações. Reparem neste poema de Caeiro:

[283] 1-10-1917

O Universo não é uma idéia minha.
A minha idéia do Universo é que é uma idéia minha.
A noite não anoitece pelos meus olhos,
A minha idéia da noite é que anoitece por meus olhos.
Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos
A noite anoitece concretamente
E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso.


PESSOA, Fernando. “Ficções de interlúdio” (Poemas completos de Alberto Caeiro: ‘Poemas inconjuntos’). In: Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996.

Embora o poeta tenha, como todos nós, uma idéia privada de noite e universo, o que pode, considerados os extremos, levar ao mesmo delírio de um mágico ao ordenar que a mesa se mexa por uma simples ordem verbal, a experiência da linguagem crua e sangrenta de Adão o faz recordar que "a noite não anoitece pelos meus olhos". Eis a razão de todo o mistério, que irrompe em múltiplas facetas: religião (paganismo e monoteismo), filosofia (praxis, materialismo e idealismo) e arte.

(Jaldes Reis de Meneses)

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