Linguagem de Adão: Drummond, Waly Salomão, Montaigne

A “linguagem adâmica” (Walter, Benjamin, Sur lê langage a general et sur le langage humain, Paris, Gallimard, 2000), sem dúvida uma manifestação primordial e atávica da mimesis, constitui um dos dispositivos permanentes, ontem, hoje e sempre, da construção poética. É por meio dela que se comunicam espontaneamente os animais na natureza (abdico de palavra de origem religiosa – “seres” –, propositalmente). Dou exemplo em três belos poemas, fixados na imagem, renitente e poderosa, da cobra (serpente e cobra coral):
Cisma, de Carlos Drummond de Andrade, narrando a experiência de um encontro casual entre o olhar cismático de reconhecimento mútuo – talvez preparando o embate no qual vença o mais apto – do poeta com uma cobra coral, e vice-versa. Que se diga: o poeta e a cobra não se comunicaram em português nem sânscrito, mas pela linguagem adâmica natural:

Cisma

Este pé de café, um só, na tarde fina,
E a sombra que ele, faz, uma sombra menina
Entre pingos vermelhos.
Sentado, vejo o mundo
Abrir e reabrir o seu leque de imagens.
Que riqueza, viver no tempo e fora dele.
Eis que desce lentamente o tronco e me contempla,
A embeber-se no meu e no sonho geral,
Extasiada escultura, uma cobra cobral.

DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. “Cisma”. (Boitempo). In: Poesia Completa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 2002.

Na seqüência, escolho dois poemas simétricos: Cobra coral, de Waly Salomão, musicado por Caetano Veloso (incluído no CD Noites do Norte), e “Canção de serpente”, de Montaigne (o poema de Salomão, na verdade, foi concebido como uma reescrita do texto do filósofo francês). Em ambos os casos, a experiência já não diz respeito, como em Drummond, ao reconhecimento cismático mútuo, mas da mimesis humana da cobra.

Cobra Coral

Pára de ondular, agora, cobra coral:
A fim de que eu copie as cores com que
Te adornas,
A fim de que eu faça um colar para dar à
Minha amada,
A fim de que tua beleza
Teu langor
Tua elegância
Reinem sobre as cobras não corais.

Canção da Serpente

Serpente, pare:
Pare serpente,
Para que minha irmã
Possa fazer um colar
Imitando as formas e os desenhos
Da tua pele,
E eu possa ofertá-lo à minha amada:
Que tua beleza e tuas formas
Sejam sempre preferidas
Entre outras serpentes
.

In: SOUSA FILHO, José Alexandrino. Projeto “Livraria” de Montaigne. João Pessoa, UFPB, 2007.

(Jaldes Reis de Meneses)

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Resenha

Vinícius de Moraes: meu tempo é quando

Colômbia: 100 anos de solidão política