Papéis extemporâneos II: 1930, Gramsci e Florestan; ordem social e bloco histórico

O artigo que segue abaixo é mais um “papel extemporâneo”. Foi escrito em 2000, como uma espécie de roteiro pessoal, na ocasião de participação em uma mesa-redonda de balanço sobre o movimento “revolucionário” de 1930, certamente o principal episódio histórico do século XX brasileiro.

Embora confeccionado para exposição pública, originariamente não pensava em publicar este material, entre outros motivos porque destoa do chatíssimo formato de “paperacadêmico (imaginem a perda para a filosofia se Nietzsche tivesse cometido mais um desatino, trocando os aforismas desconsertantes pela forma-paper), mas principalmente por motivo de seu tom ser mais de auto-esclarecimento, uma espécie de solilóquio comigo mesmo, testando a validade de certas ideias no papel, com base em leituras sistemáticas de autores que estudaram a formação do Brasil. As leituras incluíam, entre outros, de Manuel Bonfim (o primeiro a desmontar as teses racialistas em plena república velha, uma personalidade cuja solidão estratégica e a coragem política são comovedores) a Gilberto Freyre (um gênio criador que demorei a admirar, cuja démarche sobre a especificidade da economia política da família patriarcal no nordeste colonial, por incrível que pareça, é muito citada ao mesmo tempo em que é insuficientemente compreendido).

Todavia, minhas ênfases recaiam principalmente em Gramsci (um italiano universal com muitos conceitos importantes para entender o processo histórico na periferia do capitalismo) e Florestan Fernandes (especialmente o de sua última fase de produção intelectual, nos idos de 1970-80). Aproveitei bem aqueles tempos de leitura sistemática: fiz meu doutorado sobre os "Cadernos do Cárcere" de Gramsci. Florestan Fernandes ficou no congelador.

Há poucos dias, em troca de e-mails com uma amiga recente, Heloísa Fernandes, uma ideia que havia despercebido me fez retornar à leitura de Florestan: a centralidade e a originidade do conceito de "ordem social". Escuto algumas pessoas citando para lá e para cá "ordem burguesa", desatentas à trama do conceito. Nada disso.

Escreve Heloísa: "...eu costumava discutir com o meu pai sobre o ecletismo mas, hoje, penso que o "ecletismo bem temperado" do Florestan permitiu que ele inventasse o conceito de ordem social - sei que é de marca weberiana, mas é uma invenção do Florestan, porque, para Weber a ordem capitalista, definindo-se pelo mercado, é uma ordem econômica enquanto a ordem social é mais propriamente a estamental e de castas, que se define pelo modo de vida. De todo modo, digo eu, este conceito de ordem social é o que há de mais rico no Florestan porque, graças a ele, como escrevo na introdução da coletânea, 'o sociólogo manteve-se atento à exclusão da maioria da plena cidadania e o socialista não submergiu numa narrativa teleológica das classes sociais'".

Para mim, é ainda mais: entender o capitalismo brasileiro na condição de "ordem social", não apenas como modo de produção, permite integrar na análise - mais ou menos à maneira do conceito de "bloco histórico" em Gramsci, - blocos temporais relativamente longos amalgamando economia, cultura e política, estrutura e superestrutura em mútua incidência. Bloco histórico e ordem social, uma interessante fusão. Por que não? (Meio feito Florestan, assumidamente eclético, me exponho ao ridículo em várias direcões: poesia, filosofia, história e análise política. Ao menos, é divertido. Liberal e anti liberal [Antonio Mora, apud F. Pessoa]: minha "sociedade aberta", que almejo, inclui tanto a mutação dos indivíduos sociais como das instituições.)

Se Marx e Engels entregaram todo o manuscrito de “A ideologia alemã” à “crítica roedora dos ratos”, imaginem o caso de um intelectual de província às voltas com seus fantasmas. Para surpresa minha, e à revelia, contudo, meu roteiro de exposição pessoal terminou por ser publicado ano passado (2007), na coletânea do Seminário sobre 1930 (A revolução que mudou o Brasil?, ed. UEPB, 2007), organizado pelo historiador e professor José Octávio de Arruda Melo, meu condescendente amigo. Relendo de hoje (2008) o artigo, acho que melhoraria o estilo literário do escrito, demasiado áspero, porém mantendo, digamos, a "ideia-núcleo" de minha análise, uma embocadura de compreensão do Brasil contemporâneo: a percepção de que 1930 abre um novo bloco histórico, uma nova ordem social, que perdurou na história brasileira mais ou menos até os anos oitenta do século passado. Afirmar, portanto, que “o bloco de 30 morreu” resulta em várias consequências analíticas, uma compreensão do Brasil que perpassa da política à cultura. Não vou me demorar. Deixo a leitura e as conclusões a quem tiver a pachorra. Pachorra? Estou retornando o estilo de 2000? (Jaldes Reis de Meneses).

1930 E O BRASIL

Jaldes Reis de Meneses
Professor do DH-UFPB

“Reduzir uma sociedade de 100 milhões de pessoas a um mercado de 25 milhões exige um processo cultural muito intenso e muito sofisticado. É preciso embrutecer esta sociedade de uma forma que só se consegue com o refinamento dos meios de comunicação, dos meios de publicidade, com um certo paisagismo urbana que disfarça a favela, que esconde as coisas”
Oduvaldo Vianna Filho, em 1974, pouco antes de falecer.

O Bloco Histórico de 1930 morreu, não existe mais. Seu falecimento deu-se mais ou menos em meados da década de 1980 – no intermezzo do fim da ditadura e do começo do que o jornalista Jânio de Freitas chamou, à época, de transição transada. O sinal mais evidente desse falecimento foi a quebra do Estado que denomino de desenvolvimentista-conservador na famosa do crise da dívida externa, em 1982. Essa crise não foi apenas de circunstância, mas, sabe-se de hoje, que com ela estava-se indo, definitivamente, a forma estatal que arrancou o Brasil da condição de país agrário para ocupar, como ufanam alguns, a posição de décima economia industrial do mundo. Parafraseando Drummond, 1930 é cada vez mais um retrato na parede. Mas como dói.

Com isso queremos dizer que o complexo amalgama de classes sociais, oligarquias regionais, empresários nacionais e capital estrangeiro, militares e tecnocratas, intelectuais e sindicatos, de alguma maneira, realizou sua missão. Contemplando do posto avançado de hoje a obra, à maneira da coruja de Minerva de Hegel, o resultado é uma formação social que Florestan Fernandes denomina de capitalismo tardio dependente e subdesenvolvido.

O Brasil não é Uganda ou o Afeganistão, mas também não é os Estados Unidos ou a Alemanha. Para compreender a particularidade da posição brasileira no concerto mundial, temos que mergulhar na história do país. E na história do Brasil contemporâneo, a assim chamada Revolução de 1930 apresenta-se como uma data capital.

Beneficiamo-nos, entre os decênios de 1930 e 1970, de uma onda longa expansiva na economia capitalista mundial. Como herança desse período histórico, a problemática do Brasil passou a ser a problemática do capitalismo em sua fase tardia: um regime de acumulação industrial relativamente completo, um Estado e uma sociedade civil razoavelmente articulados.

Porém, esse período histórico não deve ser fantasiado. O Brasil teve, sem dúvida, um processo de desenvolvimento econômico, crescimento industrial, urbanização e fortalecimento da sociedade civil, mas ao não talante de saltar por cima das vicissitudes do processo de desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo mundial, que situa o Brasil na esfera dependente do globo.

Esse o ponto frágil do processo brasileiro de modernização, e ademais latino americano; não ocorreu entre os países latino-americanos que saltaram da periferia para a semiperiferia do capitalismo durante a vigência da onda longa expansiva do capitalismo (Brasil, México e Argentina), um processo de industrialização orgânico, uma autonomização da dependência do Estado nacional em relação ao poder mundial, uma independência da sociedade civil. Está certo, assim, Florestan Fernandes, ao afirmar, em 1989 do século passado, que “a ‘revolução burguesa’ no Brasil não se deu pela burguesia nacional, mas pelo capital monopolista. É o imperialismo que tem o papel hegemônico e realiza os papéis dos prussianos ou então da dinastia Meiji.(...).”

Ao utilizar a expressão “revolução burguesa” para designar o processo de modernização das estruturas produtivas e sociais do Brasil, Fernandes não está utilizando o conceito ao molde de identidade com as revoluções burguesas clássicas, como, principalmente, a francesa, onde, em sangrenta luta movimentada no seio da sociedade civil, a nova classe ascendente, a burguesia, logrou desalojar do poder de Estado a monarquia absoluta representante do poder feudal. Não. O conceito de “revolução burguesa”, aqui, diz respeito a um processo de longa duração, referente ao demorado processo brasileiro de transição ao capitalismo. O conceito de “revolução burguesa”, assim, apanha no seu âmago não apenas as características “revolucionárias” de uma revolução, mas, também, paramenta as contra-revolucionárias e desintegradoras, em especial o aproveitamento e reforço, pelo capital monopolista, de todos os elementos pré-capitalistas de atraso.

Um conceito talvez mais preciso do que o de revolução burguesa, na forma cunhada por Fernandes, para designar o processo de transição não clássica do Brasil ao capitalismo, parece-me ser o de revolução passiva, da lavra de Gramsci, no caso brasileiro, à interpretação um tipo de revolução burguesa não jacobina, ou seja, um processo de transformações pelo alto, via Estado, como é o caso do processo deslanchado em 1930.

De todo modo, revolução passiva ou revolução burguesa prolongada, o fato é que, tivemos uma burguesia incapaz de conduzir autonomamente, sem o amparo forâneo, a “transformação capitalista” e, portanto, de conciliar revolução nacional e revolução democrática, mas que nem por isso (e talvez exatamente por causa disso), jamais deixou de estar no centro de controle do poder econômico, social e político da sociedade brasileira. Essa questão é decisiva, e pode ser considerado o eixo da particularidade brasileira de objetivação não-clássica do capitalismo. Conquanto encetado com a participação fundamental do capital monopolista e financeiro (principalmente estrangeiro), não houve no processo de transformação capitalista brasileiro nada parecido com uma ocupação direta do estrangeiro no Estado ou no território nacional, numa situação onde as elites locais fazem o papel de simples marionetes.

Por outro lado, diferentemente de outros exemplos de objetivação não clássica do capitalismo, - como no caso da transformação capitalista da Alemanha pela chamada via prussiana - o ponto de apoio da transformação capitalista brasileira não adveio somente dos estamentos aristocráticos e da burocracia estatal civil e militar internos, mas o condomínio do Bloco Histórico no poder sempre teve um lugar privilegiado reservado para os interesses das nações capitalistas hegemônicas e do capital financeiro internacional.

A participação dos interesses das nações imperialistas e do capital financeiro no condomínio do bloco no poder cavou uma funda inflexão: a ausência, por parte da burguesia brasileira, de um projeto nacional brasileiro conjurado pari passu à transformação capitalista.

Não devemos jogar a criança junto com a água suja do banho. No tocante ao Bloco Histórico de 1930, temos a obra (o capitalismo tardio dependente e subdesenvolvido) e o processo (o complexo e contraditório movimento de mudanças sociais). Os de baixo, como gostava de designar Florestan Fernandes, sempre irromperam subversivamente, desagradando o coro dos contentes – digo isso pensando na formação do partido comunista em 1922, nas ligas camponesas, nas greves do ABC e na formação do PT, na campanha das diretas-já. Contestar a obra não significa abrir mão do processo...

Comecei citando Vianinha, termino com o premonitório “Estudo introdutório” dessa obra-prima chamada Gota d’água, de Paulo Pontes e Chico Buarque, escrito em 1974: “... o capitalismo, agora, precisa de um Estado mais aberto porque já foi capaz, na prática, de assimilar os focos de rebeldia. Ao mesmo tempo, se abertura chegar ao pessoal lá de baixo... Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”. Paulo Pontes e Chico Buarque previram o neoliberalismo?

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