Francisco de Oliveira: a razão crítica contra o cinismo dos sem-razão
Entrevista concedida aos professores Jaldes Reis de Meneses (DH-UFPB) e Maria Aparecida Ramos (DSS-UFPB)
Trata-se de um truísmo afirmar que o professor Francisco de Oliveira, Professor Emérito da Universidade de São Paulo (USP) é hoje um dos principais intelectuais brasileiros. Autor de uma respeitável obra de estudos sociológicos, hoje clássicos, tais como Elegia para uma re(li)gião (1977), A economia da dependência imperfeita (1989), Os direitos do antivalor (1998) e o recente e polêmico artigo O ornitorrinco, incluído no volume Crítica à razão dualista/o ornitorrinco (2003), aos 74 anos, o professor mantém-se ativo, repleto de compromissos e com uma produção intelectual intensa de quem não fica parado e pensa as questões atinentes ao Brasil e à evolução recente do capitalismo em tempo integral.
Dotado de imensa coragem e independência crítica, filiado em suas origens mais antigas a Celso Furtado, com quem compartilhou a direção intelectual da SUDENE antes de 1964, é impressionante a capacidade renovação do pensamento de Chico de Oliveira. Sempre munido da razão crítica contra o cinismo dos sem-razão, estamos diante de um pensamento em movimento, irônico e curioso, que se vale com rigor e sem preconceitos de vários matizes intelectuais, talvez para surpresa dos dogmáticos – acostumados à macaqueação como meio de sobrevivência –, num escopo que vai, por exemplo, de Antonio Gramsci, Walter Benjamin e Jurgen Habermas a Michel Foucault.
Sobretudo, Chico de Oliveira vai beber nas lições metodológicas da crítica da economia política de Marx, a qual renovou na formulação da teoria do antivalor, injetando política onde muitos conseguiam divisar somente uma espécie de movimento automatizado do capital. Lênin estava correto ao afirmar que o imperialismo significava a fusão do capital comercial e industrial (o mercantilismo e a revolução industrial, amalgamados), gerador de um novo tipo de capital financeiro e uma cúpula de poder, a oligarquia financeira. Ainda assim, distraído, relevou, nesta escalada de poder, o ápice de tudo, o banco central e o Estado, conforme acabamos de assistir no episódio de tentativa de salvação, da parte do Federal Reserve (banco central americano) e do governo Bush, das duas grandes casas de hipotecas imobiliárias norte-americanas (a Fannie Mae e a Freddie Mac). Eis o antivalor em ação.
Alguma pessoa em sã consciência pode negar a existência de duas grandes poéticas em Marx? Uma primeira contida na crítica da economia política, em especial no conceito de mercadoria, as "propriedades metafísicas" de seu famoso fetiche; e a segunda, nos estudos históricos sobre a França revolucionária oitocentista. Antevimos, assim, a uma alegoria: o Shakespeare de O mercador de Veneza no Marx de O capital (economia política); bem como no Marx o de 18 brumário de Luis Bonaparte (estudos históricos e políticos) elementos da escritura do poder desvelada em um Macbeth – mas podia ser Hamlet ou qualquer das fábulas políticas shakespearianas. A sinfonia de sonhos, máscaras e espectros do teatro elizabetano do século XVI, foi reeditado em Marx como metáfora do jogo político na luta de classes. Os personagens vão se reinterpretando. Por seu turno, Chico de Oliveira faz uso magistral de ambas as poéticas marxianas, denso e elíptico como João Cabral de Melo Neto e Graciliano Ramos. Mais vale a síntese da razão crítica que ilumina.
Na presente entrevista, podemos ler em Chico de Oliveira o fino analista da conjuntura, empenhado em análises dos principais acontecimentos da hora presente. Nas respostas às nossas perguntas, sentimos algo como uma ressonância da atitude desmistificadora de o 18 brumário, no tocante à análise das forças políticas em presença. Marx foi escritor de obras primas e formulador de uma teoria política realista, numa autêntica analítica das relações de força, fundamentada no preceito de que as lutas políticas são os resultados da evolução das lutas de classes, mesmo quando estas parecem se eclipsar, como acontece atualmente. Acostumado aos ventos e trovadas na aventura de compreender um país de história complexa e original como o Brasil, igualmente ao mouro alemão, Chico de Oliveira é ciente da dura materialidade dos enfrentamentos sociais, e que por trás da conciliação – lição de Walter Benjamin –, na verdade, se esconde a derrota, contudo, na mesma cápsula, pode-se divisar - cintilante lusco-fusco que pode avolumar -, a memória dos oprimidos.
Enfim, um clássico do pensamento brasileiro. (Jaldes Reis de Meneses e Maria Aparecida Ramos).
Pergunta – Caro professor Francisco de Oliveira, em seu instigante artigo “Política numa era de indeterminação” (publicado no livro “A era da indeterminação”, editora Boitempo, 2007), o senhor faz uma periodização do século XX brasileiro, desde principalmente 1930, como um período de “internalização das decisões” (Celso Furtado) que resultou em um momento derradeiro (a assim chamada “Nova República”, 1985-1990) em que pareceu que tínhamos um sistema político assentado num jogo de adequação de interesses, classes e representação política. De repente, tudo isso se esfumou. No Brasil de hoje (2008) se vive, ainda, uma “era da indeterminação”? Qual a governabilidade da “indeterminação”, se por paradoxo é possível?
Resposta - Creio que a indeterminação já se resolveu, ou pelo menos, seguindo uma sugestão de Vladimir Safatle em seu recente “Cinismo e a Falência da Crítica” (São Paulo, Editora Boitempo, 2008), estamos numa estabilização da indeterminação. Isto quer dizer que esta fase é marcada pelo que estou chamando “Hegemonia às Avessas”, (leiam meu artigo na revista Piauí, número 04 janeiro de 2007, páginas 56 e 57). Isto quer dizer que os dominados controlam a “pequena política” – para você, Jaldes, um cultor de Gramsci, isto é conhecido – desde que ela não afete os grandes interesses do capital, ou a “grande política”. Mas esta condução da “pequena política” é o avesso da hegemonia, pois vai na direção contrária a qualquer projeto de classe. É uma regressão política, na verdade. Creio que é uma forma de dominação periférica própria do capitalismo globalizado, e a meu juízo, ocorre também na África do Sul, onde o apartheid foi derrotado no plano da política, mas continua dominante no plano da economia. Lula é o Mandela do Brasil. Aos dominados, a política, como divertissement, e aos dominantes, o controle da economia. Mas não é tão simples, pois uma fração dos dominantes hoje provém dos dominados, que chamei uma “nova classe” no O Ornitorrinco (Crítica da razão dualista/o ornitorrinco). Como se vê, continuamos a inventar.
Pergunta – Em recente programa de televisão alusivo aos 90 anos de Antonio Candido, o senhor afirmou que a geração de autores como o próprio Candido, Caio Prado, Florestan Fernandes, etc., são “pontos de partida” e não “de chegada” na compreensão do Brasil. Como é possível chegar a algum “ponto”, em termos de espaço nacional brasileiro, diante da internacionalização da economia?
Resposta - Eles são pontos de partida, porque é a partir daí que temos que avançar na compreensão do Brasil. Não são mais pontos de chegada, por exemplo, com Celso Furtado: a globalização redefiniu os termos entre periferia e centro, por isso a teorização de Furtado não pode ser entendida como uma radiografia do Brasil de hoje e de sua inserção no sistema internacional. A partir de sua “internalização de decisões”, que foi o auge do “subdesenvolvimento”, podemos partir para entender a extroversão das decisões, mas não podemos nos contentar com as recomendações de política que decorriam do “subdesenvolvimento”. Com os outros grandes teóricos, passa-se mais ou menos o mesmo, talvez menos com Antonio Candido, pois como sabemos as mediações de sociedade, Estado e sistema econômico são mais complexas, e qualquer reducionismo aí é muito perigoso. Florestan pode ser entendido na chave também do “ponto de partida”, mas sua interpretação sobre a ausência de “revolução burguesa” no Brasil, em chave parecida com as dos nossos Carlos Nelson Coutinho e Luis Werneck Vianna, deve ser repensada, pois no capitalismo globalizado já não se faz necessária que a burguesia nacional seja revolucionária. Aliás, se a “hegemonia às avessas” tem alguma qualidade como “provocação teórica”, está exatamente em que a globalização utiliza as “energias utópicas” (Habermas) dos dominados para a nova forma de dominação.
Pergunta – Tivemos dois anos de crescimento econômico no Brasil. Sobrevém atualmente uma crise econômica internacional, com fulcro nos Estados Unidos. Diante da conjuntura, como se projetam as dificuldades no governo brasileiro, doravante?
Resposta - Pode-se produzir “descolamento” entre a crise nos USA e também na Europa, e a expansão capitalista no Brasil. Estamos nos especializando em comodities, além de que convém insistir em que a dinâmica capitalista na China e na Índia supre as demandas de outras regiões. A crise norteamericana, que é sobretudo de caráter financeiro, não necessariamente afeta as comodities. Já se produziu algo parecido na crise dos anos 30: enquanto o capitalismo central mergulhava em recessão, a economia brasileira cresceu. O problema, desta vez, é que o financiamento da acumulação de capital no Brasil se extroverteu, e então uma crise financeira pode nos afetar gravemente.
Pergunta – Na esteira das antigas e polêmicas digressões de Rui Mauro Marini, enunciadas em Dialética da dependência (México, Editora Era, 1977), ainda na década de 70 do século passado, alguns vizinhos brasileiros (Bolívia, Paraguai, e mesmo a Argentina, entre outros) voltaram a falar em um “sub-imperialismo” brasileiro. Realmente, os investimentos estatais e empresariais brasileiros têm crescido nesses países. Como analisa a questão?
Resposta - Creio que Rui Mauro Marini previu corretamente a trajetória do capitalismo brasileiro e suas relações com a América do Sul. Na época, apenas Itaipu anunciava sua tese; agora, a Petrobrás controla 15% do PIB da Bolívia. Isto é uma empresa dentro de um Estado ou um Estado dentro de uma empresa? Até o governo brasileiro tem medo da Petrobrás: a discussão atual sobre o Pré-Sal mostra que o governo não controla mais sua principal empresa. Parodiando Paul Baran [1910-1964], em conferência no Recife, que nunca foi divulgada, não é o governo brasileiro que controla a Petrobrás, mas é a Petrobrás quem controla o governo brasileiro. Perto disso, o imperialismo das antigas grandes “sete irmãs “ do petróleo é brincadeira de aprendiz.
Pergunta – Face à ciclotimia das posições do Brasil na “rodada de Doha” da OMC (começou com posições alinhadas à China, Índia e Argentina, depois reviu posições), o impasse final revela uma questão estrutural interessante: a China e a Índia pretendem aprovar mecanismo de proteção a os camponeses contra os surtos de importação do agro-negócio, inclusive o brasileiro. Fala-se em agricultura familiar, mas não há mais camponeses requisitando proteção contra os preços internacionais no Brasil? Como abordar a “questão agrária” no Brasil de hoje?
Resposta - Não sou muito bom em assuntos de comércio internacional, mas é muito evidente que o agro-negócio é quem dita a política comercial brasileira. Assim, as idas e vindas, a vacilação, a mudança de posição na Rodada Doha só confirma isso. O Brasil volta assim à era do café: suas exportações colocam-se contra as condições de vida das parcelas menos importantes das classes dominadas. A questão agrária perdeu importância na medida em que o agro-negócio resolveu a “questão agrícola”: não há mais nenhum produto importante da economia camponesa na mesa do brasileiro, daí que a solidariedade com os Sem-Terra, por exemplo, não passa do nível e superfície da retórica. Num país em que o principal sojicultor do mundo era do PPS, tudo é possível. E o principal depredador: vocês já viram um mapa de Mato Grosso? Reparem nas legendas: a enorme área sem vegetação é hoje de cultura de soja, de milho, e mesmo a pecuária está sendo varrida, assim falou esse senhor Maggi, governador daquele infeliz estado.
Pergunta – Os Estados Unidos parecem viver, nas eleições presidenciais de 2008, o esgotamento da “era Bush” (de predomínio neoconservador) e certa retomada do gosto pela política. Sumariamente, como o senhor analisa as eleições norte-americanas e o fenômeno de Barack Obama?
Não compartilho desse otimismo. Obama é tão conservador quanto Lula. Ele é mais establisment que Hilary, que no fundo não passava de uma advogada de província – ela era de Arkansas, como o marido – enquanto Obama freqüentou Harvard. Fiz um artigo para a Folha de S.Paulo [28/02/2008] que se chamava exatamente “Obama, Tocqueville e a Ilusão Americana”. Obama é uma ilusão.
Trata-se de um truísmo afirmar que o professor Francisco de Oliveira, Professor Emérito da Universidade de São Paulo (USP) é hoje um dos principais intelectuais brasileiros. Autor de uma respeitável obra de estudos sociológicos, hoje clássicos, tais como Elegia para uma re(li)gião (1977), A economia da dependência imperfeita (1989), Os direitos do antivalor (1998) e o recente e polêmico artigo O ornitorrinco, incluído no volume Crítica à razão dualista/o ornitorrinco (2003), aos 74 anos, o professor mantém-se ativo, repleto de compromissos e com uma produção intelectual intensa de quem não fica parado e pensa as questões atinentes ao Brasil e à evolução recente do capitalismo em tempo integral.
Dotado de imensa coragem e independência crítica, filiado em suas origens mais antigas a Celso Furtado, com quem compartilhou a direção intelectual da SUDENE antes de 1964, é impressionante a capacidade renovação do pensamento de Chico de Oliveira. Sempre munido da razão crítica contra o cinismo dos sem-razão, estamos diante de um pensamento em movimento, irônico e curioso, que se vale com rigor e sem preconceitos de vários matizes intelectuais, talvez para surpresa dos dogmáticos – acostumados à macaqueação como meio de sobrevivência –, num escopo que vai, por exemplo, de Antonio Gramsci, Walter Benjamin e Jurgen Habermas a Michel Foucault.
Sobretudo, Chico de Oliveira vai beber nas lições metodológicas da crítica da economia política de Marx, a qual renovou na formulação da teoria do antivalor, injetando política onde muitos conseguiam divisar somente uma espécie de movimento automatizado do capital. Lênin estava correto ao afirmar que o imperialismo significava a fusão do capital comercial e industrial (o mercantilismo e a revolução industrial, amalgamados), gerador de um novo tipo de capital financeiro e uma cúpula de poder, a oligarquia financeira. Ainda assim, distraído, relevou, nesta escalada de poder, o ápice de tudo, o banco central e o Estado, conforme acabamos de assistir no episódio de tentativa de salvação, da parte do Federal Reserve (banco central americano) e do governo Bush, das duas grandes casas de hipotecas imobiliárias norte-americanas (a Fannie Mae e a Freddie Mac). Eis o antivalor em ação.
Alguma pessoa em sã consciência pode negar a existência de duas grandes poéticas em Marx? Uma primeira contida na crítica da economia política, em especial no conceito de mercadoria, as "propriedades metafísicas" de seu famoso fetiche; e a segunda, nos estudos históricos sobre a França revolucionária oitocentista. Antevimos, assim, a uma alegoria: o Shakespeare de O mercador de Veneza no Marx de O capital (economia política); bem como no Marx o de 18 brumário de Luis Bonaparte (estudos históricos e políticos) elementos da escritura do poder desvelada em um Macbeth – mas podia ser Hamlet ou qualquer das fábulas políticas shakespearianas. A sinfonia de sonhos, máscaras e espectros do teatro elizabetano do século XVI, foi reeditado em Marx como metáfora do jogo político na luta de classes. Os personagens vão se reinterpretando. Por seu turno, Chico de Oliveira faz uso magistral de ambas as poéticas marxianas, denso e elíptico como João Cabral de Melo Neto e Graciliano Ramos. Mais vale a síntese da razão crítica que ilumina.
Na presente entrevista, podemos ler em Chico de Oliveira o fino analista da conjuntura, empenhado em análises dos principais acontecimentos da hora presente. Nas respostas às nossas perguntas, sentimos algo como uma ressonância da atitude desmistificadora de o 18 brumário, no tocante à análise das forças políticas em presença. Marx foi escritor de obras primas e formulador de uma teoria política realista, numa autêntica analítica das relações de força, fundamentada no preceito de que as lutas políticas são os resultados da evolução das lutas de classes, mesmo quando estas parecem se eclipsar, como acontece atualmente. Acostumado aos ventos e trovadas na aventura de compreender um país de história complexa e original como o Brasil, igualmente ao mouro alemão, Chico de Oliveira é ciente da dura materialidade dos enfrentamentos sociais, e que por trás da conciliação – lição de Walter Benjamin –, na verdade, se esconde a derrota, contudo, na mesma cápsula, pode-se divisar - cintilante lusco-fusco que pode avolumar -, a memória dos oprimidos.
Enfim, um clássico do pensamento brasileiro. (Jaldes Reis de Meneses e Maria Aparecida Ramos).
Pergunta – Caro professor Francisco de Oliveira, em seu instigante artigo “Política numa era de indeterminação” (publicado no livro “A era da indeterminação”, editora Boitempo, 2007), o senhor faz uma periodização do século XX brasileiro, desde principalmente 1930, como um período de “internalização das decisões” (Celso Furtado) que resultou em um momento derradeiro (a assim chamada “Nova República”, 1985-1990) em que pareceu que tínhamos um sistema político assentado num jogo de adequação de interesses, classes e representação política. De repente, tudo isso se esfumou. No Brasil de hoje (2008) se vive, ainda, uma “era da indeterminação”? Qual a governabilidade da “indeterminação”, se por paradoxo é possível?
Resposta - Creio que a indeterminação já se resolveu, ou pelo menos, seguindo uma sugestão de Vladimir Safatle em seu recente “Cinismo e a Falência da Crítica” (São Paulo, Editora Boitempo, 2008), estamos numa estabilização da indeterminação. Isto quer dizer que esta fase é marcada pelo que estou chamando “Hegemonia às Avessas”, (leiam meu artigo na revista Piauí, número 04 janeiro de 2007, páginas 56 e 57). Isto quer dizer que os dominados controlam a “pequena política” – para você, Jaldes, um cultor de Gramsci, isto é conhecido – desde que ela não afete os grandes interesses do capital, ou a “grande política”. Mas esta condução da “pequena política” é o avesso da hegemonia, pois vai na direção contrária a qualquer projeto de classe. É uma regressão política, na verdade. Creio que é uma forma de dominação periférica própria do capitalismo globalizado, e a meu juízo, ocorre também na África do Sul, onde o apartheid foi derrotado no plano da política, mas continua dominante no plano da economia. Lula é o Mandela do Brasil. Aos dominados, a política, como divertissement, e aos dominantes, o controle da economia. Mas não é tão simples, pois uma fração dos dominantes hoje provém dos dominados, que chamei uma “nova classe” no O Ornitorrinco (Crítica da razão dualista/o ornitorrinco). Como se vê, continuamos a inventar.
Pergunta – Em recente programa de televisão alusivo aos 90 anos de Antonio Candido, o senhor afirmou que a geração de autores como o próprio Candido, Caio Prado, Florestan Fernandes, etc., são “pontos de partida” e não “de chegada” na compreensão do Brasil. Como é possível chegar a algum “ponto”, em termos de espaço nacional brasileiro, diante da internacionalização da economia?
Resposta - Eles são pontos de partida, porque é a partir daí que temos que avançar na compreensão do Brasil. Não são mais pontos de chegada, por exemplo, com Celso Furtado: a globalização redefiniu os termos entre periferia e centro, por isso a teorização de Furtado não pode ser entendida como uma radiografia do Brasil de hoje e de sua inserção no sistema internacional. A partir de sua “internalização de decisões”, que foi o auge do “subdesenvolvimento”, podemos partir para entender a extroversão das decisões, mas não podemos nos contentar com as recomendações de política que decorriam do “subdesenvolvimento”. Com os outros grandes teóricos, passa-se mais ou menos o mesmo, talvez menos com Antonio Candido, pois como sabemos as mediações de sociedade, Estado e sistema econômico são mais complexas, e qualquer reducionismo aí é muito perigoso. Florestan pode ser entendido na chave também do “ponto de partida”, mas sua interpretação sobre a ausência de “revolução burguesa” no Brasil, em chave parecida com as dos nossos Carlos Nelson Coutinho e Luis Werneck Vianna, deve ser repensada, pois no capitalismo globalizado já não se faz necessária que a burguesia nacional seja revolucionária. Aliás, se a “hegemonia às avessas” tem alguma qualidade como “provocação teórica”, está exatamente em que a globalização utiliza as “energias utópicas” (Habermas) dos dominados para a nova forma de dominação.
Pergunta – Tivemos dois anos de crescimento econômico no Brasil. Sobrevém atualmente uma crise econômica internacional, com fulcro nos Estados Unidos. Diante da conjuntura, como se projetam as dificuldades no governo brasileiro, doravante?
Resposta - Pode-se produzir “descolamento” entre a crise nos USA e também na Europa, e a expansão capitalista no Brasil. Estamos nos especializando em comodities, além de que convém insistir em que a dinâmica capitalista na China e na Índia supre as demandas de outras regiões. A crise norteamericana, que é sobretudo de caráter financeiro, não necessariamente afeta as comodities. Já se produziu algo parecido na crise dos anos 30: enquanto o capitalismo central mergulhava em recessão, a economia brasileira cresceu. O problema, desta vez, é que o financiamento da acumulação de capital no Brasil se extroverteu, e então uma crise financeira pode nos afetar gravemente.
Pergunta – Na esteira das antigas e polêmicas digressões de Rui Mauro Marini, enunciadas em Dialética da dependência (México, Editora Era, 1977), ainda na década de 70 do século passado, alguns vizinhos brasileiros (Bolívia, Paraguai, e mesmo a Argentina, entre outros) voltaram a falar em um “sub-imperialismo” brasileiro. Realmente, os investimentos estatais e empresariais brasileiros têm crescido nesses países. Como analisa a questão?
Resposta - Creio que Rui Mauro Marini previu corretamente a trajetória do capitalismo brasileiro e suas relações com a América do Sul. Na época, apenas Itaipu anunciava sua tese; agora, a Petrobrás controla 15% do PIB da Bolívia. Isto é uma empresa dentro de um Estado ou um Estado dentro de uma empresa? Até o governo brasileiro tem medo da Petrobrás: a discussão atual sobre o Pré-Sal mostra que o governo não controla mais sua principal empresa. Parodiando Paul Baran [1910-1964], em conferência no Recife, que nunca foi divulgada, não é o governo brasileiro que controla a Petrobrás, mas é a Petrobrás quem controla o governo brasileiro. Perto disso, o imperialismo das antigas grandes “sete irmãs “ do petróleo é brincadeira de aprendiz.
Pergunta – Face à ciclotimia das posições do Brasil na “rodada de Doha” da OMC (começou com posições alinhadas à China, Índia e Argentina, depois reviu posições), o impasse final revela uma questão estrutural interessante: a China e a Índia pretendem aprovar mecanismo de proteção a os camponeses contra os surtos de importação do agro-negócio, inclusive o brasileiro. Fala-se em agricultura familiar, mas não há mais camponeses requisitando proteção contra os preços internacionais no Brasil? Como abordar a “questão agrária” no Brasil de hoje?
Resposta - Não sou muito bom em assuntos de comércio internacional, mas é muito evidente que o agro-negócio é quem dita a política comercial brasileira. Assim, as idas e vindas, a vacilação, a mudança de posição na Rodada Doha só confirma isso. O Brasil volta assim à era do café: suas exportações colocam-se contra as condições de vida das parcelas menos importantes das classes dominadas. A questão agrária perdeu importância na medida em que o agro-negócio resolveu a “questão agrícola”: não há mais nenhum produto importante da economia camponesa na mesa do brasileiro, daí que a solidariedade com os Sem-Terra, por exemplo, não passa do nível e superfície da retórica. Num país em que o principal sojicultor do mundo era do PPS, tudo é possível. E o principal depredador: vocês já viram um mapa de Mato Grosso? Reparem nas legendas: a enorme área sem vegetação é hoje de cultura de soja, de milho, e mesmo a pecuária está sendo varrida, assim falou esse senhor Maggi, governador daquele infeliz estado.
Pergunta – Os Estados Unidos parecem viver, nas eleições presidenciais de 2008, o esgotamento da “era Bush” (de predomínio neoconservador) e certa retomada do gosto pela política. Sumariamente, como o senhor analisa as eleições norte-americanas e o fenômeno de Barack Obama?
Não compartilho desse otimismo. Obama é tão conservador quanto Lula. Ele é mais establisment que Hilary, que no fundo não passava de uma advogada de província – ela era de Arkansas, como o marido – enquanto Obama freqüentou Harvard. Fiz um artigo para a Folha de S.Paulo [28/02/2008] que se chamava exatamente “Obama, Tocqueville e a Ilusão Americana”. Obama é uma ilusão.
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