Machado de Assis: a má influência na formação do romance brasileiro

Pretendo glosar em rápidas palavras (praia!) o artigo do poeta e crítico literário Nelson Ascher sobre a literatura de Machado de Assis, publicado na revista Veja desta semana (21/09). O artigo tem um mérito: embora reconhecendo o evidente talento de Machado, um de nossos grandes, pretende apurar os motivos pelos quais há uma escassez, na literatura brasileira, de uma tradição romanesca realista (Ascher chama a esta literatura de “situação”) que acompanhe passo a passo, de maneira dramática, as transformações da sociedade de fundo capitalista e moderno, que funcione como uma “espécie de autoconsciência do país”. Embora tenha vergonha de citar a fonte – Ascher fala no artigo em origens “marxistas” –, o argumento é nitidamente decalcado de um conhecido ensaio de Lukács, publicado no Brasil no livro Introdução a uma estética marxista (Civilização Brasileira, 1978). Cada qual com seus motivos de vergonha. Passemos adiante.
No entanto, apesar de considerar a pergunta válida, questiono a afirmação peremptória do autor. No entendimento de Ascher, não tivemos “situação” literária no século XX brasileiro (leia-se: romance realista de elevado nível estético, ao mesmo tempo com impacto popular, milhares, senão milhões, de leitores). Ele atribui esta distorção de nossa histórica literária (torta às macheias, aliás) à sombra (castradora?, repressora?) de Machado de Assis, um autor mais da “oposição”, ou seja, mais da demolição das construções narrativas, mais do cotidiano que da épica. Machado de Assis é unanimidade somente hoje em dia, vários modernistas mais imbuídos de um "projeto nacional" questionaram a validade de seu projeto literário e mesmo seu caráter pessoal, motivo pelo qual, para escândalo de alguns, Glauber Rocha costumava dizer que preferia José de Alencar ao bruxo de Cosme Velho. Discordo do olhar vesgo dos modernistas e da boutade de Glauber.
Sinceramente, se há castração, ela pretence mais ao presente que ao passado literário brasileiro recente. Poderiamos indagar as razões da vigência hoje, em muitos casos, de uma literatura quase exclusivamente metaliguistica e intertextual, que aborda os objetos da vida indiretamente, através do textos literários.
Voltemos ao esquema de Ascher: quando se esboçou uma “situação” literária, ela se manifestou no nordeste e no Rio Grande do Sul. O argumento padece de diversos problemas: o romance social nordestino, mais que uma preocupação estrita com o mundo rural, na verdade narrou a saga da passagem do engenho à usina, como também a migração do camponês agregado do campo para a cidade. Neste sentido, a greve e as lutas sociais contidas em “Moleque Ricardo”, de José Lins do Rego, poderia se passar em qualquer lugar do Brasil, Rio de Janeiro ou São Paulo. Igualmente, “Capitães de Areia”, de Jorge Amado, romaniza um conflito urbano – a infância abandonada – típico (e ainda atual) de qualquer grande e média cidade brasileira. No fundo, de modo inconsciente, o argumento destila um preconceito: achar que o romance social feito no nordeste tinha um suposto “regional”. Apenas ele se passava, quase sempre, na geografia do nordeste. Mas a questão sociológica era a modernização brasileira. Com isso, quero infirmar que houve, sim, romance de “situação” de alto nível na literatura brasileira do século XX. Se não teve origem no Rio ou São Paulo, paciência; provinciano achar que deveria. (Jaldes Reis de Meneses).

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