Barack Obama

Gostei bem do artigo de Antonio Cicero, uma figura que admiro, publicado na Folha de S. Paulo de hoje (sábado, 24/01/09), sobre o otimismo das pessoas com a posse de Barack Obama. Foi uma linda festa. Acho que artigo de Cicero tem um achado feliz que praticamente nenhum comentarista que li sobre a posse tinha notado (falei a amigos, por coincidência, antes de ler o artigo de Cicero): o fato de Obama ter mencionado os ateus como parte da comunidade americana, na prática rompendo, marcando diferenças, com a santa aliança teológico-político (fundamentalistas cristãos e neoconservadores) que governou os Estados Unidos nos últimos oito anos.

Afirmar que o discurso de posse de Obama não fez história é totalmente vesgo: como se discursos fossem apenas palavras e retórica e não ambiência, momento, interação, clima, emoção.

O discurso de Obama foi sintético, com duas características: o novo presidente, ao contrário do que se pensava, aliás, foi frontalmente contra a orientação ideológica governo George W. Bush, porém, intuitivo ao clima de alento ao novo exalado na cerimônia, preferiu abordar os temas da política através da moral, dos valores que formaram a tradição democrática dos Estados Unidos. As pessoas querem perspectiva face a crise, um efeito que um discurso repleto de índices, estatísticas e planos detalhados jamais alcançaria. Alguns comentaristas se pronunciaram contra a presença de um "sebastianismo". Trata-se, é evidente, de um preconceito, mas há uma dose de verdade na alcunha. A grande política, a que movimenta o mundo, aquela que não se resume a administrar a máquina do Estado, para existir, necessidade da existência do "político [também pode ser o partido ou movimento coletivo] da mensagem", aquele que, à maneira do profeta, traga a possibilidade de boa nova.

Há muito desentendimento sobre os fundamentos da formação da democracia americana, seus defeitos e suas virtudes. Há algo de fascinante na maneira de como os americanos recriaram Maquiavel (curioso como as pessoas pouco sabem da importância da teoria política maquiavélica na constituição dos Estados Unidos): a tentativa de um projeto que consiga reunir democracia, liberdade, república. Mas há o outro lado da moeda, ainda pensando em Maquiavel: o caso de uma República que se quer também império, uma forma política expansiva, a única forma de República que deu certo no mundo antigo. Neste sentido, até a arquitetura dos palácios e jardins de Washington, mimesis de Roma republicana, traem intenção de um projeto imperial e expansivo, o "destino manifesto" a "missão" de levar a democracia e a liberdade ao mundo, ao mesmo tempo em que acumula riqueza e poder.

Não acato a experiência norte-americana como modelo doutrinário único de democracia, e tenho certa aversão ao costume - aliás, reiterado na posse - de como os americanos juntam, ao contrário dos regimes políticos da Europa Ocidental, o tempo inteiro a política e a liturgia da religião (o séquito de pastores, cânticos e orações da posse, arre!), uma questão apontada no Marx de "A questão Judaica", na passagem em que diz que a maior de democracia do século XIX é também a mais religiosa das sociedades. Se assim o for, tanto Bush como Obama compartilham elementos da tradição americana, com o importante diferencial que o presidente anterior buscou fortalecer a teologia política, ao passo que Obama exprime um projeto de nação mais plural, que ousa incluir até o ateísmo na comunidade simbólica de um dos mais crédulos países do ocidente.

Tenho uma pequena diferença com o conceito de "sociedade aberta" de Cicero. Sem tirar onda de chato nem dogmático, é preciso, de vez em quando, refrescar os significados que podem assumir a expressão "sociedade aberta". É claro, todos queremos, em sã consciência, uma "sociedade aberta". Porém, de alguma maneira, esta expressão popperiana (Karl Popper, intelectual judeu austríaco, naturalizado inglês) foi capturada (logo Popper, um anti-historicista teórico) por uma tendência ideológica do conservadorismo americano que se faz passar por liberal (cujo patrono intelectual é Samuel Huntington, recentemente falecido, em plena véspera de natal). Em Huntington, a defesa da "sociedade aberta" perde qualquer veleidade crítica e se transforma numa apologética do status quo. Ainda mais: dá. a entender que há e haverá no século XXI um "choque de civilizações" entre as nossas "sociedades abertas" e as "sociedades fechadas" do chamado "oriente próximo".

Todos os obscurantismos merecem crítica radical, neste sentido, acho que a moda pós-moderna (e politicamente correta) de pensar o outro sem levar em conta as perversões da alteridade (achar, por exemplo, que o uso da burca tabibã é um apanágio de uma cultura alienígena e distante, simplesmente, sem tecer considerações de valor) começa a ir se desmoralizando no debate político e cultural. Estou animado. Contudo, a própria versão beligerante do "choque de civilizações", menos que uma defesa da tradição iluminista (a universalidade, mais que pasteurização é precisamente pensar o outro e sua alteridade), no fundo, é um novo historicismo da pior espécie (tomo por historicismo a corrente do pensamento relativista que começa em 1799 com Burke e vai até os intelectuais da Universidade alemã novecentista, ávidos em descobrir um traço distintivo irredutível de seus povos face ao gênero humano). Isto é, pretendem colocar na cabeça das pessoas que as idéias de autonomia (e da emancipação humana, por que não?), são tipicidades do mundo ocidental e dificilmente medrarão em outras culturas. Mais que o oriente, a idéia do "choque de civilizações" pretende na verdade é congelar as mazelas do ocidente; foram essas as idéias que fizeram erguer o dogma dos mercados dos anos noventa, criticados por Cicero. (Jaldes Reis de Meneses).



ANTONIO CICERO

O fenômeno Barack Obama

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As ideias de que o mundo mudou e devemos mudar irritam direitistas e esquerdistas
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NEM OS representantes da direita cínica nem os da esquerda dogmática conseguem esconder seu rancor contra a alegria com que tanta gente saudou a posse de Barack Obama. Tanto uns quanto os outros debocham da "ingenuidade" dos que pensam que, com o novo presidente, alguma coisa possa melhorar nos Estados Unidos ou em qualquer outra parte do mundo. Segundo eles, nada pode mudar senão para pior.
Acontece que as pessoas que conheço e que ficaram admiradas e alegres com a eleição e a posse de Obama estão longe de ser tão ingênuas quanto eles supõem. Elas não acreditam em milagres ou messias ou "grandes timoneiros"; são conscientes de que o presidente dos Estados Unidos não pode fazer tudo o que quer; percebem que Obama ainda não se provou como administrador; sabem que vivemos um momento de crise econômica mundial sem precedentes; entendem a gravidade das guerras no Oriente Médio e no Afeganistão; compreendem que vivemos um momento instável de imprevisíveis transformações nas correlações internacionais de forças econômicas, políticas e militares etc. etc.
Apesar disso, os que celebram a posse de Obama -entre os quais me incluo- acreditam que já há bastante razão para fazê-lo. Em primeiro lugar, é extraordinário que um homem negro, filho de imigrante, com um nome de origem árabe, tenha sido eleito presidente dos Estados Unidos. Em segundo lugar, é maravilhoso que tal homem deva sua eleição, em grande parte, à superioridade do seu brilho, do seu carisma, das suas ideias. Em terceiro lugar, é esplêndido que, ao eleger Obama, os eleitores americanos tenham claramente repudiado o governo mais vil de que se tem memória nos Estados Unidos, que foi o da extrema direita do Partido Republicano, na figura lamentável de George W. Bush. Em resposta aos que afirmam que nada poderá mudar no novo governo, pode-se dizer que esses três fatos já representam uma imensa mudança.
Mas há mais. Curiosamente, sob influência de comentaristas das grandes redes de televisão norte-americanas, muitos afirmam que Obama nada disse de novo no seu discurso de posse. Isso é uma falsidade. De modo educado, porém firme, ele deixou bem claras as suas diferenças em relação ao antecessor. Entre outras coisas, falou de restaurar ao devido lugar a ciência (que foi vilipendiada, como se sabe, pelo apoio ideológico e material dado por Bush à charlatanice do "design inteligente"); declarou ser falsa a oposição entre os princípios e a segurança (quando Bush, em nome desta, sacrificou aqueles); ressaltou a necessidade de abandonar dois dogmas: o primeiro, quanto ao tamanho do Estado (que o governo Bush pretendeu tornar mínimo no que diz respeito à segurança social, mas não no que diz respeito às forças de repressão e guerra); e o segundo, quanto ao papel do mercado (que o governo Bush quis maximizar por meio, entre outras coisas, de uma desregulamentação cujas consequências se manifestam na atual crise econômica); observou, contra o fanatismo religioso (que Bush sempre cortejou), que o povo dos EUA não se compõe apenas de crentes, mas também de incréus; e afirmou, contra os conservadores, que "o mundo mudou e nós devemos mudar com ele".
As ideias de que o mundo mudou -que o próprio Obama não só afirma mas encarna- e de que devemos mudar com ele são, no fundo, as que mais irritam tanto os direitistas cínicos quanto os esquerdistas dogmáticos. Outra ideia que lhes é inaceitável -e que constitui o próprio teor do discurso de posse- é a de que a sociedade aberta é melhor do que a fechada.
Quanto à direita, ninguém ignora que ela se define exatamente em oposição às ideias de mudança para melhor e de sociedade aberta. Já para a esquerda dogmática, a situação é um pouquinho mais complexa. O que ela é incapaz de admitir é que possa haver qualquer melhora real ou substancial no mundo antes da superação do capitalismo, isto é, antes da "Revolução". Sendo assim, dado que qualquer mudança real desmentiria suas teses, não lhe resta senão crer que toda mudança e todo projeto de mudança que se apresente como tal seja um mero engodo. Assim lhe parece ser também a sociedade aberta, que ela descarta como "democracia burguesa".
A meu ver, o que não consegue mudar são as ideologias. As coisas reais mudam o tempo todo, ora para pior, ora para melhor e, embora não possamos saber o que acontecerá daqui para frente, a verdade é que, no momento em que escrevo, o fenômeno Obama já representa uma mudança real para melhor.

Comentários

FátimaPessoa disse…
O "Kennedy negro".
Nas grandes crises do capitalismo são procuradas personalidades carismáticas, que possam gerar
um ambiente estimulante de despertar. O momento religioso desse mecanismo é inconfundível.
As esperanças, desejos e medos ligam-se a um messias político, quando a ruptura de uma era
sacode qualquer sociedade. A questão é se o carisma será capaz de suportar o novo ou se
apenas dá uma forma de desenvolvimento à catástrofe do velho.
O "Kennedy negro" Barack Obama não representa a suplantação do capitalismo global, mas
a sua renovação.A ruptura de 1989 levou à transformação do velho capitalismo de Estado no
capitalismo financeiro globalizado. Em vez disso, a ruptura de 2008 marca a crise e os limites
internos desse sistema mundial em si. Será que Obama se tornará o homem mais poderoso
de um mundo que conseguirá mais transformar a partir de seus próprios fundamentos?
Se Obama se tornou depositário da simpatia do mundo inteiro e comove as
pessoas nos EUA até às lágrimas, isso ocorre porque ele representa a fé no regresso a um
crescimento substancial e regulado pelo Estado, que crie bons postos de trabalho e preserve
o ambiente?
Não esqueçamos que algumas concepções religiosas em diversas nações de nosso palentinha azul
Obama é um individuo que tem similitude "Mefistofélico"- célebre personagem de Fausto... O tempo dirá,
caríssimo professor Jaldes!
(PARABÉNS PELA CRÕNICA, sempre brilhante no seu blog).
Fátima Pessoa

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