Sobre Samuel Huntington (II)
Caro Jaldes,
temos percepções muito diferentes do Huntington. Eu jamais o chamaria de “liberal”. Considero-o um reacionário. Eu já o via assim em 1999, quando escrevi a primeira parte de um texto sobre “O choque de civilizações” para o “Mais”. Este, não o publicou, de modo que não cheguei a escrever a segunda parte. Envio-lhe essa primeira em apêndice. Para Huntington, a democracia liberal é possível no mundo anglo-protestante desde que, como ocorria na primeira metade do século XX nos Estados Unidos, a religião protestante a enquadre. Mas, no fundo, como fica claro nos seus últimos artigos, em particular naquele citado por mim, ele considera a sociedade aberta uma espécie de excrescência da Civilização Ocidental, um câncer que ameaça não só as demais civilizações, mas a própria sociedade em que surgiu.
De fato, a sociedade aberta não pertence ao “Ocidente” ou a qualquer cultura particular. Simplesmente uma sociedade é tanto mais aberta quanto mais irrestrito for o uso que faça da razão crítica, que não pertence a sociedade particular nenhuma. A definição de bolso de Watkins é muito boa: a sociedade aberta é aquela “em que nenhuma ideologia ou religião goza de monopólio, em que existe um interesse crítico por novas idéias, seja qual for a sua origem, em que os processos políticos estão abertos ao exame e à crítica públicos, em que há liberdade para viajar, em que as restrições ao comércio com outros países são mínimas e em que a finalidade da educação é transmitir conhecimentos em vez de imbuir doutrinas sectárias”. O que não é uma sociedade aberta é uma sociedade fechada, inaceitável para a razão crítica. Ela deve, por isso, ser criticada. A sociedade dos talibãs é fechada e deve ser por isso criticada, mas a que Huntington defendia e a que Bush tentou realizar também.
Grande abraço,
Antonio Cicero
O ARTIGO:
Segundo o próprio Samuel Huntington (p.395), a tese principal do seu livro, ‘O choque de civilizações’, afirma a falsidade da crença ocidental na universalidade da própria cultura ocidental. Para ele, esta não passa de uma das nove civilizações em que se divide o mundo de hoje. Cada uma dessas civilizações é liderada por um ou por alguns poucos Estados-núcleos. Consequentemente, uma vez que os Estados Unidos são tidos como Estado-núcleo da civilização ocidental, “a sobrevivência do Ocidente depende de os norte-americanos reafirmarem sua identidade ocidental e de os ocidentais aceitarem que sua civilização é singular e não universal, e de se unirem para renová-la” (p.19). Aceitar que a civilização ocidental é singular significa, por exemplo, concordar com a afirmação de Arthur Schlesinger Jr., citada por Huntington (p.396), de que a Europa “é a fonte – a fonte singular” das
"idéias de liberdade individual, democracia política, império da lei, direitos humanos e liberdade cultural.(...) Essas são idéias européias, não idéias asiáticas, nem africanas, nem do Oriente Médio, a não ser por adoção".
Assim sendo, os Estados Unidos deveriam, por exemplo, evitar confrontações como a que,
"na Conferência de Direitos Humanos em Viena, opôs o Ocidente, liderado pelo secretário de Estado norte americano, Warren Christopher, denunciando o ‘relativismo cultural’, a uma coligação de Estados islâmicos e confucianos rejeitando o ‘universalismo ocidental’" (p.41).
O que estava sendo atacado pelos “Estados islâmicos e confucianos” era o “universalismo ocidental”. Observe-se que em tais ataques a ênfase não recai na palavra ocidental mas na palavra ‘universalismo’. Não é em primeiro lugar o caráter ocidental do “universalismo ocidental” mas sim o seu caráter universal que é atacado. O universalismo é atacado em nome da negação do direito não apenas ao “Ocidente” mas a quem quer que seja de efetuar, a uma cultura ou a um fenômeno cultural particular, qualquer crítica a partir de um ponto de vista externo ou transcendente a ela. Assim sendo, Christopher tinha razão de falar de “relativistas culturais”, pois o que estes afirmavam era a ilegitimidade de se criticar qualquer fenômeno cultural -- logo, em última análise, qualquer atitude ou ação -- senão, quando muito, imanentemente, isto é, relativamente aos valores professados pela cultura de que tal fenômeno fosse solidário.
Desse modo, o próprio autor de “O choque das civilizações” deve ser considerado um relativista cultural. É verdade que certa confusão pode ser propiciada pelo fato de que, ao se perguntar se “a futilidade do universalismo ocidental e a realidade da diversidade global conduzem inevitável e irrevogavelmente ao relativismo moral e cultural”, sua resposta é que “as culturas são relativas, a moralidade é absoluta” (p.405). Mas a moralidade absoluta, para ele, não passa do que chama de uma “delgada” moralidade minimalista que encarna, nas palavras de Michael Waltzer, por ele citadas aprobativamente, (p.406) “aspectos reiterados das moralidades espessas ou maximalistas”, isto é, das moralidades relativas. “Os seres humanos em praticamente todas as sociedades”, diz Huntington (p.65), “compartilham certos valores básicos, tais como considerar o assassinato um mal, além de certas instituições básicas, tais como alguma forma de família”.
Contudo, como com razão ele mesmo reconhece, esse tipo de coisa é “ao mesmo tempo profundo e profundamente importante, mas também não é novo nem relevante”(p.65). De fato, o que é que realmente ganho ao saber que todas as culturas condenam o assassinato, se essa generalização somente é verdadeira caso a minha cultura, inclusive eu, já o condene? A verdade é que se não levo em conta as atitudes de culturas alheias quando diferem das atitudes da minha cultura, não as levo em conta, ponto.
Huntington pensa que “num mundo multicivilizacional, o caminho construtivo reside em renunciar ao universalismo, aceitar a diversidade e buscar os aspectos em comum” (p.406), como a condenação do assassinato. Mas examinemos esse exemplo. Nem sempre o que certas sociedades consideram assassinato é considerado como tal por outras. Para algumas culturas não constitui assassinato matar uma pessoa, desde que sob a égide de figuras legais tais como por exemplo a da ‘execução’, a da ‘defesa da honra’, a da ‘vendeta’ ou a da ‘suttee’ (em que a viúva se imola na pira funeral de seu marido), que outras culturas rejeitam veementemente. Por outro lado, certas sociedades institucionalizaram o aborto e a eutanásia assistida, que outras chamam de assassinato. Terroristas que explodem aviões civis são considerados assassinos por uns mas não por outros. Em determinadas comunidades religiosas, matar infiéis e roubar os seus bens -- que outros consideram latrocínio -- pode ser uma atividade premiada. Tudo isso mostra que para ser aceita por todos, a condenação do assassinato teria que ser não apenas “delgada” mas raquítica.
Façamos também um experimento virtual. Suponhamos que, tendo encontrado uma forma de assassinato condenada em todas as civilizações, descubramos, daqui a dois anos, que, em uma dessas civilizações, ele começa a ser tolerado (ou mesmo premiado em certas circunstâncias, como quando o assassino é um policial militar a serviço, no Rio de Janeiro de hoje). Que acontece então? Pelo raciocínio de Huntington, o assassinato deixa de fazer parte da moralidade “absoluta”. Isso mostra que uma moralidade minimalista baseada em generalizações empíricas está por princípio sujeita a revisões, o que significa não apenas que ela não pode ser universal, como Huntington mesmo reconhece, mas que tampouco pode ser absoluta. Não deve, portanto, ser chamada de tal. É por ser de fato um relativista cultural, para quem a própria moralidade é relativa, que Huntington critica o universalismo.
Mas por que, sendo relativista, Huntington não ousa chamar-se de tal? Uma possível razão é que, desde que a onda multiculturalista se abateu sobre os Estados Unidos, ‘cultural relativism’ tornou-se uma ‘bad word’ no establishment acadêmico conservador daquele país. Só isso porém constituiria uma consideração demasiadamente frívola ou oportunística. A bem da verdade, há razões mais ponderáveis. O relativismo de Huntington é uma modificação do relativismo multiculturalista e deveria ser antes chamado de ‘civilizational relativism’.
Como seu nome indica, o relativismo civilizacional diz respeito somente às civilizações. Após apresentar uma série de definições de ‘civilização’ colhidas em diferentes autores, de Spengler a Braudel, cujo único traço comum é seu caráter vago e esquemático, Huntington consegue definir essa noção de modo ainda mais impreciso como “o mais alto agrupamento cultural de pessoas e o mais amplo nível de identidade cultural que as pessoas têm aquém daquilo que distingue os seres humanos das demais espécies”(p.48). Pois bem, no que se refere a agrupamentos desse nível, o relativismo civilizacional funciona exatamente como qualquer relativismo cultural. Isso significa evidentemente que, para ele, as atitudes, as concepções, os valores – por comodidade, restrinjamo-nos daqui para a frente a esta última palavra – são corretos ou verdadeiros somente em relação à civilização que os institucionaliza. Isso significa também que, exatamente porque não faz sentido questionar os valores de uma civilização a partir dos que são adotados por outra, os valores institucionalizados por uma civilização dada podem, no interior das fronteiras desta, ser tomados como absolutamente corretos ou verdadeiros. Tal concepção implica, evidentemente, negar direitos semelhantes a unidades culturais menores do que uma civilização. Nesse ponto, o relativismo civilizacional se opõe frontalmente ao relativismo cultural mais comum, que é aquele que fundamenta, por exemplo, a noção de ‘multiculturalismo’.
Relativismo para fora das fronteiras da civilização em que nos encontramos, absolutismo (interpretando esta palavra como o antônimo de “relativismo”) para dentro das mesmas: eis a fórmula do relativismo civilizacional preconizado por Huntington. Nesse esquema, cada país deve, sob pena de se dilacerar, optar pela integração a uma das grandes civilizações. Cada civilização possui inúmeras variantes culturais mas nenhuma dessas variantes subcivilizacionais jamais poderá se integrar a outra civilização. Ela será sempre um corpo estranho nesta última. No que diz respeito à civilização ocidental, inferem-se facilmente as conseqüências práticas de semelhante postura. O absolutismo de uso exclusivamente interno significa jogar-se na lata de lixo da história a idéia de que um país possa ser multicultural, no sentido forte desta palavra, e fornece racionalização para a política xenófoba de imigração defendida pelas direitas européias e americanas. Já o relativismo de uso exclusivamente externo implica por exemplo, como já observei, abdicar da pretensão a considerar universais os direitos humanos.
Embora, fazendo uso de uma vasta documentação, ‘O choque das civilizações’ ofereça e comente uma grande quantidade de informações, característica que torna sua leitura bastante instrutiva, é preciso declarar sem rodeios que se trata de uma obra teoricamente claudicante e mesmo inconsistente. Essa inconsistência pode ser encontrada quer nas suas teses principais quer nas secundárias. Em relação a estas últimas, podemos citar uma que interessa ao Brasil em particular. Hesitante entre classificar a América Latina como ocidental ou não-ocidental, Huntington tende a considerá-la, no final das contas, “uma subcivilização dentro da civilização ocidental ou uma civilização separada, intimamente afiliada ao Ocidente e dividida quanto a se seu lugar é ou não no Ocidente”(p.52).
Acontece que Huntington havia antes afirmado que
"de todos os elementos que definem as civilizações, o mais importante geralmente é a religião... Em larga medida, as principais civilizações na História da Humanidade se identificaram intimamente com as grandes religiões do mundo" (p.46).
Se aceitarmos esse critério, a “civilização ocidental” se distinguirá pelo Cristianismo. Aqui se apresenta uma das dificuldades de tais classificações, pois o Cristianismo pode ser subdivido em, por exemplo, Cristianismo oriental e Cristianismo ocidental, e este por sua vez pode, por exemplo, ser subdivido em Catolicismo e Protestantismo. Poderíamos prosseguir essas subdivisões, mas já aqui temos, segundo o critério religioso, três civilizações, e não uma. Contudo, em virtude da invocação de outros critérios, de natureza não-religiosa, Huntington decide aceitar a primeira divisão mas não a segunda. Observemos en passant que não há como não perceber que tais critérios são escolhidos inteiramente ad hoc, de modo que é perfeitamente procedente a crítica de Sérgio Paulo Rouanet, que chama atenção para a irrefutabilidade, no sentido popperiano, das teses desse livro.
De qualquer modo, tendo associado a civilização ocidental ao Cristianismo ocidental, que inclui o Catolicismo e o Protestantismo, era de se esperar que a América Latina, sendo predominantemente católica e esmagadoramente cristã, pertencesse, sem sombra de dúvida, à civilização ocidental. Como então explica Huntington o fato de que, como já mencionamos, ele não tem tanta certeza quanto a esse último ponto? De novo, razões ad hoc são aduzidas. Por um lado, a América Latina incorpora, segundo ele, “elementos de civilizações indígenas que não se encontram na América do Norte e na Europa”(p.52). Mas é evidente que, embora isso seja verdadeiro no que toca ao México, por exemplo, não se aplica nem ao Brasil nem, menos ainda, à Argentina ou ao Uruguai. Necessitado de outra razão, ele não hesita em buscá-la no caráter exclusivo do Catolicismo latino-americano. “A Europa e a América do Norte”, afirma, “sentiram, ambas, o efeito da Reforma e combinaram as culturas católica e protestante. Historicamente, embora isso possa estar mudando, a América Latina sempre foi católica”(p.52). Em primeiro lugar é preciso observar que, segundo o próprio Huntington, “a civilização ocidental emergiu nos séculos VIII e IX e desenvolveu suas características diferenciadoras nos séculos que se seguiram” (p.82). Se por “séculos que se seguiram” entendermos, como é razoável, uns três a cinco séculos, então ela teria desenvolvido tais características até o século XIV, isto é, antes da Reforma. Isso significa que a reforma não é essencial à civilização ocidental em geral. Por que seria diferente na América Latina? Além disso, pelo critério da Reforma, que dizer de Espanha, Portugal ou Itália, por exemplo?
A flagrante inconsistência de Huntington no tratamento da América Latina constitui sem dúvida sintoma de outra coisa. Seria ingênuo não lembrar que Huntington não é “apenas” professor de Harvard mas também diretor do Instituto para Estudos Estratégicos John M. Olin. Além disso, ex-diretor de planejamento estratégico do Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos, ele é um dos fundadores e co-editores da revista ‘Foreign Policy’ e presidente da Associação Americana de Ciência Política. ‘The Clash of Civilizations’ foi primeiro um artigo publicado por ele na revista ‘Foreign Affairs’, em 1993. Essa revista é publicada pelo influente Conselho de Relações Estrangeiras que, embora entidade não-governamental, tem, há anos, ajudado a traçar as diretrizes do pensamento estratégico do Departamento de Estado. As preocupações de Huntington estão portanto longe de serem puramente teóricas. A verdade é que suas teorias contribuem para articular a estratégia e fornecer a racionalização ideológica da Realpolitik norte-americana. E de fato não é a irrefutabilidade uma das principais características das ideologias?
Tendo isso em mente, não é difícil entender em que consiste o problema da América Latina do ponto de vista do autor de ‘O choque de civilizações’. Por um lado, não somente ela é ocidental, segundo o critério religioso, mas também os Estados Unidos gostariam ter o continente que consideram seu backyard como um aliado “natural”. Por outro lado, ela é subdesenvolvida em relação à Europa e aos Estados Unidos, e este país percebe como um problema a imigração latina, principalmente mexicana. Eis os cornos do dilema de Huntington:
(1) se a América Latina for considerada ocidental, então
(1.a) ela é aliada natural dos Estados Unidos, o que ele aprova mas, nesse caso,
(1.b) desaparece a razão para considerar a imigração latina uma ameaça cultural e, com ela, a razão para reprimir essa imigração, o que ele, como bom conservador, deplora;
(2) se, ao contrário, a América Latina for considerada como não-ocidental, então
(2.a) o absolutismo interno justifica a repressão à imigração latina, o que ele aprova mas, nesse caso,
(2.b) a América Latina deixa de ser aliada natural dos Estados Unidos, o que ele deplora.
Qual é a solução? Para Huntington, é tomar a América Latina como uma subcivilização (o prefixo “sub” funcionando como na palavra “subdesenvolvido”) orientada naturalmente para a sua civilização-mãe, isto é, a ocidental. Assim, ao mesmo tempo que (1.a) sua orientação natural a predispõe à aliança, em status subordinado, com a civilização ocidental, (2.a) a diferença específica dessa subcivilização subdesenvolvida justifica a discriminação oficial à migração latina.
Contudo, acima acusamos de inconsistentes não somente as teses secundárias, tomando como exemplo a que diz respeito à América Latina, mas também as teses principais de ‘O choque de civilizações’. Isso será demonstrado na segunda parte deste artigo.
temos percepções muito diferentes do Huntington. Eu jamais o chamaria de “liberal”. Considero-o um reacionário. Eu já o via assim em 1999, quando escrevi a primeira parte de um texto sobre “O choque de civilizações” para o “Mais”. Este, não o publicou, de modo que não cheguei a escrever a segunda parte. Envio-lhe essa primeira em apêndice. Para Huntington, a democracia liberal é possível no mundo anglo-protestante desde que, como ocorria na primeira metade do século XX nos Estados Unidos, a religião protestante a enquadre. Mas, no fundo, como fica claro nos seus últimos artigos, em particular naquele citado por mim, ele considera a sociedade aberta uma espécie de excrescência da Civilização Ocidental, um câncer que ameaça não só as demais civilizações, mas a própria sociedade em que surgiu.
De fato, a sociedade aberta não pertence ao “Ocidente” ou a qualquer cultura particular. Simplesmente uma sociedade é tanto mais aberta quanto mais irrestrito for o uso que faça da razão crítica, que não pertence a sociedade particular nenhuma. A definição de bolso de Watkins é muito boa: a sociedade aberta é aquela “em que nenhuma ideologia ou religião goza de monopólio, em que existe um interesse crítico por novas idéias, seja qual for a sua origem, em que os processos políticos estão abertos ao exame e à crítica públicos, em que há liberdade para viajar, em que as restrições ao comércio com outros países são mínimas e em que a finalidade da educação é transmitir conhecimentos em vez de imbuir doutrinas sectárias”. O que não é uma sociedade aberta é uma sociedade fechada, inaceitável para a razão crítica. Ela deve, por isso, ser criticada. A sociedade dos talibãs é fechada e deve ser por isso criticada, mas a que Huntington defendia e a que Bush tentou realizar também.
Grande abraço,
Antonio Cicero
O ARTIGO:
Segundo o próprio Samuel Huntington (p.395), a tese principal do seu livro, ‘O choque de civilizações’, afirma a falsidade da crença ocidental na universalidade da própria cultura ocidental. Para ele, esta não passa de uma das nove civilizações em que se divide o mundo de hoje. Cada uma dessas civilizações é liderada por um ou por alguns poucos Estados-núcleos. Consequentemente, uma vez que os Estados Unidos são tidos como Estado-núcleo da civilização ocidental, “a sobrevivência do Ocidente depende de os norte-americanos reafirmarem sua identidade ocidental e de os ocidentais aceitarem que sua civilização é singular e não universal, e de se unirem para renová-la” (p.19). Aceitar que a civilização ocidental é singular significa, por exemplo, concordar com a afirmação de Arthur Schlesinger Jr., citada por Huntington (p.396), de que a Europa “é a fonte – a fonte singular” das
"idéias de liberdade individual, democracia política, império da lei, direitos humanos e liberdade cultural.(...) Essas são idéias européias, não idéias asiáticas, nem africanas, nem do Oriente Médio, a não ser por adoção".
Assim sendo, os Estados Unidos deveriam, por exemplo, evitar confrontações como a que,
"na Conferência de Direitos Humanos em Viena, opôs o Ocidente, liderado pelo secretário de Estado norte americano, Warren Christopher, denunciando o ‘relativismo cultural’, a uma coligação de Estados islâmicos e confucianos rejeitando o ‘universalismo ocidental’" (p.41).
O que estava sendo atacado pelos “Estados islâmicos e confucianos” era o “universalismo ocidental”. Observe-se que em tais ataques a ênfase não recai na palavra ocidental mas na palavra ‘universalismo’. Não é em primeiro lugar o caráter ocidental do “universalismo ocidental” mas sim o seu caráter universal que é atacado. O universalismo é atacado em nome da negação do direito não apenas ao “Ocidente” mas a quem quer que seja de efetuar, a uma cultura ou a um fenômeno cultural particular, qualquer crítica a partir de um ponto de vista externo ou transcendente a ela. Assim sendo, Christopher tinha razão de falar de “relativistas culturais”, pois o que estes afirmavam era a ilegitimidade de se criticar qualquer fenômeno cultural -- logo, em última análise, qualquer atitude ou ação -- senão, quando muito, imanentemente, isto é, relativamente aos valores professados pela cultura de que tal fenômeno fosse solidário.
Desse modo, o próprio autor de “O choque das civilizações” deve ser considerado um relativista cultural. É verdade que certa confusão pode ser propiciada pelo fato de que, ao se perguntar se “a futilidade do universalismo ocidental e a realidade da diversidade global conduzem inevitável e irrevogavelmente ao relativismo moral e cultural”, sua resposta é que “as culturas são relativas, a moralidade é absoluta” (p.405). Mas a moralidade absoluta, para ele, não passa do que chama de uma “delgada” moralidade minimalista que encarna, nas palavras de Michael Waltzer, por ele citadas aprobativamente, (p.406) “aspectos reiterados das moralidades espessas ou maximalistas”, isto é, das moralidades relativas. “Os seres humanos em praticamente todas as sociedades”, diz Huntington (p.65), “compartilham certos valores básicos, tais como considerar o assassinato um mal, além de certas instituições básicas, tais como alguma forma de família”.
Contudo, como com razão ele mesmo reconhece, esse tipo de coisa é “ao mesmo tempo profundo e profundamente importante, mas também não é novo nem relevante”(p.65). De fato, o que é que realmente ganho ao saber que todas as culturas condenam o assassinato, se essa generalização somente é verdadeira caso a minha cultura, inclusive eu, já o condene? A verdade é que se não levo em conta as atitudes de culturas alheias quando diferem das atitudes da minha cultura, não as levo em conta, ponto.
Huntington pensa que “num mundo multicivilizacional, o caminho construtivo reside em renunciar ao universalismo, aceitar a diversidade e buscar os aspectos em comum” (p.406), como a condenação do assassinato. Mas examinemos esse exemplo. Nem sempre o que certas sociedades consideram assassinato é considerado como tal por outras. Para algumas culturas não constitui assassinato matar uma pessoa, desde que sob a égide de figuras legais tais como por exemplo a da ‘execução’, a da ‘defesa da honra’, a da ‘vendeta’ ou a da ‘suttee’ (em que a viúva se imola na pira funeral de seu marido), que outras culturas rejeitam veementemente. Por outro lado, certas sociedades institucionalizaram o aborto e a eutanásia assistida, que outras chamam de assassinato. Terroristas que explodem aviões civis são considerados assassinos por uns mas não por outros. Em determinadas comunidades religiosas, matar infiéis e roubar os seus bens -- que outros consideram latrocínio -- pode ser uma atividade premiada. Tudo isso mostra que para ser aceita por todos, a condenação do assassinato teria que ser não apenas “delgada” mas raquítica.
Façamos também um experimento virtual. Suponhamos que, tendo encontrado uma forma de assassinato condenada em todas as civilizações, descubramos, daqui a dois anos, que, em uma dessas civilizações, ele começa a ser tolerado (ou mesmo premiado em certas circunstâncias, como quando o assassino é um policial militar a serviço, no Rio de Janeiro de hoje). Que acontece então? Pelo raciocínio de Huntington, o assassinato deixa de fazer parte da moralidade “absoluta”. Isso mostra que uma moralidade minimalista baseada em generalizações empíricas está por princípio sujeita a revisões, o que significa não apenas que ela não pode ser universal, como Huntington mesmo reconhece, mas que tampouco pode ser absoluta. Não deve, portanto, ser chamada de tal. É por ser de fato um relativista cultural, para quem a própria moralidade é relativa, que Huntington critica o universalismo.
Mas por que, sendo relativista, Huntington não ousa chamar-se de tal? Uma possível razão é que, desde que a onda multiculturalista se abateu sobre os Estados Unidos, ‘cultural relativism’ tornou-se uma ‘bad word’ no establishment acadêmico conservador daquele país. Só isso porém constituiria uma consideração demasiadamente frívola ou oportunística. A bem da verdade, há razões mais ponderáveis. O relativismo de Huntington é uma modificação do relativismo multiculturalista e deveria ser antes chamado de ‘civilizational relativism’.
Como seu nome indica, o relativismo civilizacional diz respeito somente às civilizações. Após apresentar uma série de definições de ‘civilização’ colhidas em diferentes autores, de Spengler a Braudel, cujo único traço comum é seu caráter vago e esquemático, Huntington consegue definir essa noção de modo ainda mais impreciso como “o mais alto agrupamento cultural de pessoas e o mais amplo nível de identidade cultural que as pessoas têm aquém daquilo que distingue os seres humanos das demais espécies”(p.48). Pois bem, no que se refere a agrupamentos desse nível, o relativismo civilizacional funciona exatamente como qualquer relativismo cultural. Isso significa evidentemente que, para ele, as atitudes, as concepções, os valores – por comodidade, restrinjamo-nos daqui para a frente a esta última palavra – são corretos ou verdadeiros somente em relação à civilização que os institucionaliza. Isso significa também que, exatamente porque não faz sentido questionar os valores de uma civilização a partir dos que são adotados por outra, os valores institucionalizados por uma civilização dada podem, no interior das fronteiras desta, ser tomados como absolutamente corretos ou verdadeiros. Tal concepção implica, evidentemente, negar direitos semelhantes a unidades culturais menores do que uma civilização. Nesse ponto, o relativismo civilizacional se opõe frontalmente ao relativismo cultural mais comum, que é aquele que fundamenta, por exemplo, a noção de ‘multiculturalismo’.
Relativismo para fora das fronteiras da civilização em que nos encontramos, absolutismo (interpretando esta palavra como o antônimo de “relativismo”) para dentro das mesmas: eis a fórmula do relativismo civilizacional preconizado por Huntington. Nesse esquema, cada país deve, sob pena de se dilacerar, optar pela integração a uma das grandes civilizações. Cada civilização possui inúmeras variantes culturais mas nenhuma dessas variantes subcivilizacionais jamais poderá se integrar a outra civilização. Ela será sempre um corpo estranho nesta última. No que diz respeito à civilização ocidental, inferem-se facilmente as conseqüências práticas de semelhante postura. O absolutismo de uso exclusivamente interno significa jogar-se na lata de lixo da história a idéia de que um país possa ser multicultural, no sentido forte desta palavra, e fornece racionalização para a política xenófoba de imigração defendida pelas direitas européias e americanas. Já o relativismo de uso exclusivamente externo implica por exemplo, como já observei, abdicar da pretensão a considerar universais os direitos humanos.
Embora, fazendo uso de uma vasta documentação, ‘O choque das civilizações’ ofereça e comente uma grande quantidade de informações, característica que torna sua leitura bastante instrutiva, é preciso declarar sem rodeios que se trata de uma obra teoricamente claudicante e mesmo inconsistente. Essa inconsistência pode ser encontrada quer nas suas teses principais quer nas secundárias. Em relação a estas últimas, podemos citar uma que interessa ao Brasil em particular. Hesitante entre classificar a América Latina como ocidental ou não-ocidental, Huntington tende a considerá-la, no final das contas, “uma subcivilização dentro da civilização ocidental ou uma civilização separada, intimamente afiliada ao Ocidente e dividida quanto a se seu lugar é ou não no Ocidente”(p.52).
Acontece que Huntington havia antes afirmado que
"de todos os elementos que definem as civilizações, o mais importante geralmente é a religião... Em larga medida, as principais civilizações na História da Humanidade se identificaram intimamente com as grandes religiões do mundo" (p.46).
Se aceitarmos esse critério, a “civilização ocidental” se distinguirá pelo Cristianismo. Aqui se apresenta uma das dificuldades de tais classificações, pois o Cristianismo pode ser subdivido em, por exemplo, Cristianismo oriental e Cristianismo ocidental, e este por sua vez pode, por exemplo, ser subdivido em Catolicismo e Protestantismo. Poderíamos prosseguir essas subdivisões, mas já aqui temos, segundo o critério religioso, três civilizações, e não uma. Contudo, em virtude da invocação de outros critérios, de natureza não-religiosa, Huntington decide aceitar a primeira divisão mas não a segunda. Observemos en passant que não há como não perceber que tais critérios são escolhidos inteiramente ad hoc, de modo que é perfeitamente procedente a crítica de Sérgio Paulo Rouanet, que chama atenção para a irrefutabilidade, no sentido popperiano, das teses desse livro.
De qualquer modo, tendo associado a civilização ocidental ao Cristianismo ocidental, que inclui o Catolicismo e o Protestantismo, era de se esperar que a América Latina, sendo predominantemente católica e esmagadoramente cristã, pertencesse, sem sombra de dúvida, à civilização ocidental. Como então explica Huntington o fato de que, como já mencionamos, ele não tem tanta certeza quanto a esse último ponto? De novo, razões ad hoc são aduzidas. Por um lado, a América Latina incorpora, segundo ele, “elementos de civilizações indígenas que não se encontram na América do Norte e na Europa”(p.52). Mas é evidente que, embora isso seja verdadeiro no que toca ao México, por exemplo, não se aplica nem ao Brasil nem, menos ainda, à Argentina ou ao Uruguai. Necessitado de outra razão, ele não hesita em buscá-la no caráter exclusivo do Catolicismo latino-americano. “A Europa e a América do Norte”, afirma, “sentiram, ambas, o efeito da Reforma e combinaram as culturas católica e protestante. Historicamente, embora isso possa estar mudando, a América Latina sempre foi católica”(p.52). Em primeiro lugar é preciso observar que, segundo o próprio Huntington, “a civilização ocidental emergiu nos séculos VIII e IX e desenvolveu suas características diferenciadoras nos séculos que se seguiram” (p.82). Se por “séculos que se seguiram” entendermos, como é razoável, uns três a cinco séculos, então ela teria desenvolvido tais características até o século XIV, isto é, antes da Reforma. Isso significa que a reforma não é essencial à civilização ocidental em geral. Por que seria diferente na América Latina? Além disso, pelo critério da Reforma, que dizer de Espanha, Portugal ou Itália, por exemplo?
A flagrante inconsistência de Huntington no tratamento da América Latina constitui sem dúvida sintoma de outra coisa. Seria ingênuo não lembrar que Huntington não é “apenas” professor de Harvard mas também diretor do Instituto para Estudos Estratégicos John M. Olin. Além disso, ex-diretor de planejamento estratégico do Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos, ele é um dos fundadores e co-editores da revista ‘Foreign Policy’ e presidente da Associação Americana de Ciência Política. ‘The Clash of Civilizations’ foi primeiro um artigo publicado por ele na revista ‘Foreign Affairs’, em 1993. Essa revista é publicada pelo influente Conselho de Relações Estrangeiras que, embora entidade não-governamental, tem, há anos, ajudado a traçar as diretrizes do pensamento estratégico do Departamento de Estado. As preocupações de Huntington estão portanto longe de serem puramente teóricas. A verdade é que suas teorias contribuem para articular a estratégia e fornecer a racionalização ideológica da Realpolitik norte-americana. E de fato não é a irrefutabilidade uma das principais características das ideologias?
Tendo isso em mente, não é difícil entender em que consiste o problema da América Latina do ponto de vista do autor de ‘O choque de civilizações’. Por um lado, não somente ela é ocidental, segundo o critério religioso, mas também os Estados Unidos gostariam ter o continente que consideram seu backyard como um aliado “natural”. Por outro lado, ela é subdesenvolvida em relação à Europa e aos Estados Unidos, e este país percebe como um problema a imigração latina, principalmente mexicana. Eis os cornos do dilema de Huntington:
(1) se a América Latina for considerada ocidental, então
(1.a) ela é aliada natural dos Estados Unidos, o que ele aprova mas, nesse caso,
(1.b) desaparece a razão para considerar a imigração latina uma ameaça cultural e, com ela, a razão para reprimir essa imigração, o que ele, como bom conservador, deplora;
(2) se, ao contrário, a América Latina for considerada como não-ocidental, então
(2.a) o absolutismo interno justifica a repressão à imigração latina, o que ele aprova mas, nesse caso,
(2.b) a América Latina deixa de ser aliada natural dos Estados Unidos, o que ele deplora.
Qual é a solução? Para Huntington, é tomar a América Latina como uma subcivilização (o prefixo “sub” funcionando como na palavra “subdesenvolvido”) orientada naturalmente para a sua civilização-mãe, isto é, a ocidental. Assim, ao mesmo tempo que (1.a) sua orientação natural a predispõe à aliança, em status subordinado, com a civilização ocidental, (2.a) a diferença específica dessa subcivilização subdesenvolvida justifica a discriminação oficial à migração latina.
Contudo, acima acusamos de inconsistentes não somente as teses secundárias, tomando como exemplo a que diz respeito à América Latina, mas também as teses principais de ‘O choque de civilizações’. Isso será demonstrado na segunda parte deste artigo.
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