Sobre Samuel Huntington

No dia de domingo (25/01/09) troquei uma série de mensagens por e-mail com o poeta e filósofo Antonio Cicero, provocado pela leitura de um post meu comentando um artigo escrito por ele sobre a posse de Barack Obama. O artigo de Cícero foi publicado em sua coluna na Folha de S. Paulo (24/01/09). As polêmicas giraram em torno da vasta obra do cientista político americano Samuel Huntington (que ficou mais famoso do já era por ter lançado no mercado de idéias a tese do “choque de civilizações”, na década de 1990, antes mesmo do antentado às Torres Gêmeas), mas abrange um raio de interesses temáticos mais amplos sobre a compreensão do conceito de “sociedade aberta” e o legado político da tradição liberal. Não faria sentido que o conteúdo de interesse contido na correspondência ficasse restrito aos interlocutores, por isso tomei a deliberação de divulgar, após a aquiescência de Antonio Cicero, o resultado sem fim (parafraseando o título do livro de Cicero sobre estética, Finalidades sem fim, Cia das Letras) nos três posts a seguir. Tertúlias de grandes temas excedem à lógica ou ao puro debate de idéias (dois recursos intelectuais fundamentais). Grandes temas são caminhos de hegemonia (Gramsci), veredas afinal decididas pelos rumos que a sociedade tomar. Contudo, a sociedade só se faz consciente, e a hegemonia só se firma, por meio do debate livre e desabusado de idéias. (Jaldes Reis de Meneses):

Caro Jaldes,
Visito sempre o seu “Campo de Ensaio”, que é excelente. Quase postei este comentário lá, mas decidi que só o faria se você assim preferisse.
Fico contente de saber que você apreciou o meu artigo sobre Barack Obama. Entretanto, não considero justificada sua objeção ao conceito de “sociedade aberta”. Você afirma que ela foi empregada por Samuel Huntington para afirmar que “há e haverá no século XXI um ‘choque de civilizações’ entre as ‘sociedades abertas’ e as ‘sociedades fechadas’ do chamado oriente próximo’”.
Primeiro, quero observar que a apropriação indébita de um conceito não o invalida. Do contrário, os conceitos de “razão”, “democracia”, “verdade”, ciência etc. já não valeriam nada. Se Huntington usou indevidamente o conceito de “sociedade aberta”, é ele que está errado, não esse conceito.
Em segundo lugar, Huntington está longe de aprovar a sociedade aberta ou de pensar que ela constitui a principal característica – ou mesmo uma característica significativa – do que chama “civilização ocidental”. Para Huntington, pelo menos desde O choque de civilizações (1996) “de todos os elementos que definem as civilizações, o mais importante geralmente é a religião... Em larga medida, as principais civilizações na História da Humanidade se identificaram intimamente com as grandes religiões do mundo” (p.46).
Mais recentemente, em ensaio intitulado “Dead souls: the denationalization of the American elite”, publicado no número da primavera de 2004 em “The National Interest”, ele ataca nominalmente a idéia de sociedade aberta.
Segundo ele, os Estados Unidos estavam diante de três possibilidades de relacionamento com o mundo. A primeira, “cosmopolita” seria a de se abrir a outros povos e culturas. A segunda, “imperialista”, seria a de tentar reformar as outras sociedades em termos da cultura e dos valores americanos. A terceira, “nacional”, seria a de tentar manter a sociedade e a cultura americanas distintas das dos outros povos. Huntington favorece esta última, considerando as alternativas cosmopolita e imperialista inviáveis porque “a América não pode tornar-se o mundo e continuar sendo a América. Outros povos não podem tornar-se americanos e continuar a ser eles mesmos. A América é diferente e essa diferença se define em grande parte pelo seu compromisso religioso e a cultura anglo-protestante” [ênfase minha].
Mas como é que ele define o ideal da primeira alternativa, que mais o repugna? Como o de “uma sociedade aberta com fronteiras abertas, que estimule identidades subnacionais étnicas, raciais e culturais, cidadania dupla, diásporas, e que seja liderada por elites cada vez mais identificadas com instituições, normas e regras globais, e não nacionais”.
Ou seja, longe de ser pela sociedade aberta, Huntington quer fechar a sociedade americana em torno da sua herança religiosa.
A propósito do que penso sobre a tese do "choque das civilizações" de Huntington, aliás, recomendo-lhe que leia o artigo que publiquei na Folha em 14 de junho do ano passado, intitulado “Sobre ‘Identidade e violência”, http://antoniocicero.blogspot.com/search/label/Amartya%20Sen, e o que lá publiquei em 1º de novembro do mesmo ano, “Sobre ‘O roubo da história’”, http://antoniocicero.blogspot.com/search/label/Jack%20Goody.

Um grande abraço,
Antonio Cicero


Prezado Antonio Cicero,

Obrigado pelos generosos elogios ao conteúdo de meu blog – Campo de Ensaio – e fico feliz em saber que um poeta e filósofo que admiro visita a minha janela eletrônica.
Faço questão, seria mesmo um prazer, que poste a sua mensagem no blog.
Claro, o uso errado do conceito não torna o conceito errado. Sobre o conceito de “sociedade aberta”, e da maneira como o utiliza, me parece evidente que se trata de uma apropriação das formulações de Karl Popper em sua campanha na guerra fria contra o totalitarismo soviético, quando aquele intelectual foi em busca de uma fundamentação na história da filosofia visando entender a terrível novidade que se passava a seus olhos. Divagando um pouco, gosto dos lineamentos gerais do termo - “sociedade aberta”. Tanto que escrevi assim, “... é claro, todos queremos [ao menos pessoas como eu e você], em sã consciência, uma ‘sociedade aberta’”. O conceito exibe sentimentos de autonomia e liberdade quando consegue exprimir o desejo das sociedades escolherem conscientemente os rumos, o que significa estar verdadeiramente aberta à manufatura de novos modelos institucionais da democracia, e até – por que não? – à idéia da revolução.
Dessa maneira, o conceito deve ser abrir em dois âmbitos: no contraponto às “sociedades fechadas”; mas também no processo de crítica interna da sociedade aberta, pois, ausente a crítica, há sempre a possibilidade de retrocessos.
Com sinceridade, no uso (e abuso) do termo (neste caso, não chega a ser um conceito) “sociedade aberta” no discurso político de vários agentes do poder mundial (banqueiros, economistas, governantes, diplomatas, etc.), percebe-se muita retórica e pouco crítica, como nos tempos da guerra fria, ou seja, trata-se de apontar o dedo em riste às “sociedades fechadas”, esquecendo de fazer a crítica ao próprio ocidente. Faz-se um uso “fechado” da “sociedade aberta”. Não me parece ser o seu caso, como fica lídimo no trabalho sobre a modernidade (O mundo desde o fim).
Sobre Huntington, sem dúvida é um autor importante, que pautou, ou traduziu, desde os anos 60, muitas das políticas do Departamento de Estado americano. Desde a explicação dos processos de modernização na periferia do capitalismo, o exame do caso do Brasil pós 64 para ele foi um campo de provas fundamental (contra o otimismo de alguns teóricos da modernização, ele dissociou desenvolvimento econômico de democracia); na análise dos processos da “onda” democratizadora dos anos 70 (Portugal, Espanha, etc.); do diagnóstico do “excesso de demandas” da sociedade sobre os Estados de Bem-Estar, base da teoria da governabilidade; last but not least, a teoria do “choque de civilizações”...
Huntington, nas várias oportunidades em que pode ser pronunciar, se dizia um liberal diferente – realista –, "realismo" este que funcionava como uma espécie de chão, de fundamento, de sua análise estratégica.
Acho que a teoria do “choque de civilizações” funcionou como uma viragem, ou ao menos revelou elementos subterrâneos, de seu pensamento político. O “choque de civilizações” nada tem de liberal, se assemelha mais à longa tradição das histórias de “decadência” das civilizações, à Spengler. Esse um dos motivos de ter feito remissão em historicismo em meu post.
Doravante, cito uma passagem de seu e-mail: “Para Huntington, pelo menos desde O choque de civilizações (1996) de todos os elementos que definem as civilizações, o mais importante geralmente é a religião... Em larga medida, as principais civilizações na História da Humanidade se identificaram intimamente com as grandes religiões do mundo” (p.46). Huntington fala isso, mas muito antes dele, por exemplo, um Weber fala a mesma coisa.
Por que cito Weber? Huntington pensa mais ou menos nos mesmos termos da sociologia weberiana das religiões a relação dos Estados Unidos com o mundo, estabelecendo uma relação causal direta entre religião e cultura. Cito outra passagem sua, “a América é diferente e essa diferença se define em grande parte pelo seu compromisso religioso e a cultura anglo-protestante”. Mas acho que o pensamento só se completa caso em seguida da menção à religião e à cultura, emergir a institucionalidade política. Ainda mais, forçando o raciocínio: a democracia liberal – é somente possível no âmbito de uma cultura “anglo-protestante”. [Um parêntesis, por isso Huntington chamou o Brasil na época do regime militar de uma “sociedade pretoriana” e considera, em Dead souls, indesejável a presença e a penetração da cultura hispânica no território americano, pois, para ele, os valores americanos somente são passíveis de reprodução em uma América branca e cristã. No fim da vida, completou-se o ciclo do pensamento de Samuel Huntington.].
Prezado Cicero, com o arrazoado acima quero dizer que Huntington defende uma sociedade a um só tempo liberal e fechada. O que é uma impossibilidade lógica tornou-se, na verdade, um projeto político de larga aceitação em círculos liberais que se pretendem mais realistas, geralmente acantonados nos escalões do Estado e do grande capital. Para esse pessoal “realista”, o uso do termo “sociedade aberta” para fazer a crítica, sei lá, aos tabibãs, passa perfeitamente. Sabe por quê? O par – liberal e fechado – é ilógico, mas permite circular ecleticamente pelas zonas de vários matizes de pensamento. Irracionalidades do mundo.
Após a leitura de seu e-mail, percebi que posso estar cometendo uma injustiça. A minha diferença não é precisamente com o seu conceito de “sociedade aberta”, mas os usos (e abusos) da expressão. Juntei tudo numa carrada só. Teclo esses post muito rápido, na velocidade de deslizar os dedos no teclado. Tanto que em primeira versão eles saem repletos de erros ortográficos. Refaço os textos pelo menos umas três vezes, mas já publico de primeira.

Um forte abraço,

Jaldes.

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