O quarto e O Leitor: polêmicas
Recebi um e-mail do professor Luiz Felipe Pondé, contestando a minha versão a propósito de sua interpretação do filme "O Leitor", que publico a seguir. Em sequência, respondo à Pondé. (Jaldes Reis de Meneses).
O e-mail de Pondé:
Caro Jaldes,
Obrigado por dedicar um texto a minha coluna. Infelizmente vc faz uma analise equivocada e permeada por preconceitos tipicos de nossa epoca.
1. a analise que faço do filme e meu miniconto estao em profunda relação com criticas de gente como Hanna Arendt e Zygmunt Bauman, judeus como eu. Não se trata de um tema colateral, mas sim central. Sua leitura é estreita.
2. acreditar que autonomia é fato evidente no ser humano é acreditar em papai noel, sinto muito se meu trabalho estilhaça sua vsião de mundo; o tema ao qual me refiro nada tem de 'duvidoso', ele é questao central no debate dos dois autores referidos acima.
3. minha caracterização como 'conservador' é acompanhada de um relato seu do que seria essa tradição, que revela superficialidade no trato com ela, titpico de quem alimenta preconceitos 'iluministas'; De Maistre esta muito longe de Burke, assim como céticos (ha uma estreita relação entre pensamento conservador e duvida, convido vc a ler mais sobre isso) como Hume e Oakeshott são claros 'fundadores' disso que muito pouco se conhecer entre nós, chamado tradição conservadora, alem é claro, de Tocqueville, alguem muito longe de De Maistre tbem.
4 como é tipico na tribo que tudo torna superficial para servir aos seus preconceitos, sua leitura não entende o que eu falei, mas ha muitas pessoas que entenderam, principalmente pq nao vivem num mundo maniqueista como o que parecer dominar sua analise.
5. perdão se cometi o mesmo pecado que vc: não entender o outro e reduzi-lo ao que eu quero que ele seja para poder critica-lo mais facilmente.
5. o tratamento que dei a questao é tao evidente como dado da reflexao sobre o tema, que me assusta seu nao-entendimento.
Obrigado, Pondé
Minha resposta:
Caro Pondé,
Fiquei feliz em receber a resposta ao meu artigo, a propósito de sua interpretação do filme “O leitor” publicada em coluna do jornal Folha de S. Paulo, dia 23 de fevereiro, segunda-feira de carnaval. A felicidade (desculpe-me por utilizar uma perigosa expressão “iluminista”) foi acrescida porque você aceitou – talvez irrefletidamente – a minha notação de “minoconto” como esquema interpretativo-explicativo do artigo. Falta apenas assumir que a estrutura do “miniconto” era, no caso, autosuficiente, sendo desnecessário, rebarbativo e tautológico o auxílio à pseudo "sondagem de opinião", por um motivo simples, você já tem, deste antes, uma conclusão, dogmática, na cabeça.
Doravante, respondo as suas objeções:
1. Qualquer filme ou obra de arte comporta distintas leituras, nenhuma mais ou menos válida. Jamais deixaria de negar o campo de validade de sua interpretação, ao contrário, pois até escrevi, em contrafeita, um artigo polêmico. Contudo, apelar, como faz na resposta que me redigiu, para Hannah Arendt e Zygmunt Bauman, a guisa de “argumento de autoridade” trata-se simplesmente de um autoritário hábito trentino. Devemos falar por nós mesmos e não pela boca dos outros. Mais estranho, vem a ser alegar uma descendência judaica, de maneira cifrada talvez visando cultivar uma crença, totalmente equivocada, de que a terrível experiência do holocausto diz respeito, em primeiro lugar, aos judeus. Nem vem que não tem: a reflexão e o sentimento da tragédia inaudita do holocausto são tão suas como minhas. É de toda a humanidade.
2. Sem pretender recusar a possibilidade de leituras colaterais ou sintomais, é evidente que o foco narrativo de “O Leitor” encontra-se na relação entre Hanna e “O Garoto”. A urdidura do filme, aliás, é bastante tradicional e acadêmica, responde aos esquemas da tradição romanesca adaptados por Hoolywood. Mal comparando, seria como afirmar que o foco de “O vento levou...” estivesse afastado da relação entre Scarlett O'Hara (Vivien Leigh) e Rett Butler (Clark Gable).
3. Por mais que esprema os miolos da cabeça não encontrei em meu artigo nenhuma afirmação de que a autonomia é fato evidente no ser humano, porém, sem dúvida, para repetir um truísmo, o problema da autonomia surgiu com força na modernidade ocidental. Gostei da menção à crença no Papai Noel, ainda que outras pudessem ser convocadas, como, por exemplo, o da virgindade de Maria. Mas acho que entendi o motivo subliminar de sua fixação involuntária na figura do Papai Noel: com efeito, trata-se de uma criação moderna, não medieval; de alguma maneira, remete aos moinhos de vento da felicidade e do consumo, atacados em sua pregação. Antes que me esqueça: não acredito nem em Papai Noel nem na virgindade de Maria.
4. Somente posso atribuir o seu desentendimento ao que eu quis definir como “tradição conservadora moderna” a uma leitura “corrida” de meu texto, pois custo a acreditar que seja ignorante num assunto pelo qual se jacta. Até imitei a mesma embocadura de Hannah Arendt, no livro “De revolução”, juntando Burke e De Maistre Evidentemente, Burke e De Maistre são pensadores diferentes, na ontologia e na epistemologia, mas existe um traço que os une: o combate ao universalismo dos direitos do homem versus o relativismo dos mores. Por isso, fiz questão de grafar a expressão “filosofia política” do iluminismo, circunscrevendo o debate à esfera do político. Se quisermos um texto aceito em vasta fortuna critica como marco do pensamento conservador, eis “Reflexões sobre a Revolução na França”, de Burke, não por acaso uma obra de polêmica que motivou uma resposta clássica de Thomas Paine (Rights of Man). Sobre as motivações, em primeiro lugar, políticas e polêmicas, do pensamento conservador, recomendo a bela obra de um autor que certamente não freqüenta a sua grade de leituras, A. O. Hirschman (A retórica da intransigência – perversidade, futilidade, ameaça).
5. Sinto-me à vontade numa academia filosófica em presença de Hume, bem como de Locke e Adam Smith. Legal que manifeste interesse participar desse clube. Em nome da democracia (mais uma expressão de sua antipatia), defenderia que tivesse acesso à nossa academia. Apenas teria dois reparos: 1) Hume morreu dois anos antes dos acontecimentos franceses, capitais na fundação do conservadorismo moderno, de maneira que é precipitado, de pronto, assimilá-lo ao conservadorismo político; 2) você é um discípulo infiel dos antigos mestres, um subversivo do iluminismo escocês, pois parece juntar num único balaio a conjuntura em que surge o ceticismo moderno com o ceticismo em geral e antigo.
6. Por último, a suprema heresia de uma galhofa à lá Voltaire: o seu artigo sobre “O leitor” faz tabula rasa das recomendações de Hume na crítica ao princípio da causalidade. O pensador escocês jamais enxergaria relações mecânicas e diretas de causa e efeito entre os comportamentos de pais e filhos acossados pelo nazismo. Neste caso, não existe a relação de “causa” e “efeito”, como você compreende, mas simplesmente um “antes” seguido de um “depois”. O sertanejo de Guimarães Rosa resmungaria assim: nenhum, nenhuns...
Um abraço,
Jaldes.
O e-mail de Pondé:
Caro Jaldes,
Obrigado por dedicar um texto a minha coluna. Infelizmente vc faz uma analise equivocada e permeada por preconceitos tipicos de nossa epoca.
1. a analise que faço do filme e meu miniconto estao em profunda relação com criticas de gente como Hanna Arendt e Zygmunt Bauman, judeus como eu. Não se trata de um tema colateral, mas sim central. Sua leitura é estreita.
2. acreditar que autonomia é fato evidente no ser humano é acreditar em papai noel, sinto muito se meu trabalho estilhaça sua vsião de mundo; o tema ao qual me refiro nada tem de 'duvidoso', ele é questao central no debate dos dois autores referidos acima.
3. minha caracterização como 'conservador' é acompanhada de um relato seu do que seria essa tradição, que revela superficialidade no trato com ela, titpico de quem alimenta preconceitos 'iluministas'; De Maistre esta muito longe de Burke, assim como céticos (ha uma estreita relação entre pensamento conservador e duvida, convido vc a ler mais sobre isso) como Hume e Oakeshott são claros 'fundadores' disso que muito pouco se conhecer entre nós, chamado tradição conservadora, alem é claro, de Tocqueville, alguem muito longe de De Maistre tbem.
4 como é tipico na tribo que tudo torna superficial para servir aos seus preconceitos, sua leitura não entende o que eu falei, mas ha muitas pessoas que entenderam, principalmente pq nao vivem num mundo maniqueista como o que parecer dominar sua analise.
5. perdão se cometi o mesmo pecado que vc: não entender o outro e reduzi-lo ao que eu quero que ele seja para poder critica-lo mais facilmente.
5. o tratamento que dei a questao é tao evidente como dado da reflexao sobre o tema, que me assusta seu nao-entendimento.
Obrigado, Pondé
Minha resposta:
Caro Pondé,
Fiquei feliz em receber a resposta ao meu artigo, a propósito de sua interpretação do filme “O leitor” publicada em coluna do jornal Folha de S. Paulo, dia 23 de fevereiro, segunda-feira de carnaval. A felicidade (desculpe-me por utilizar uma perigosa expressão “iluminista”) foi acrescida porque você aceitou – talvez irrefletidamente – a minha notação de “minoconto” como esquema interpretativo-explicativo do artigo. Falta apenas assumir que a estrutura do “miniconto” era, no caso, autosuficiente, sendo desnecessário, rebarbativo e tautológico o auxílio à pseudo "sondagem de opinião", por um motivo simples, você já tem, deste antes, uma conclusão, dogmática, na cabeça.
Doravante, respondo as suas objeções:
1. Qualquer filme ou obra de arte comporta distintas leituras, nenhuma mais ou menos válida. Jamais deixaria de negar o campo de validade de sua interpretação, ao contrário, pois até escrevi, em contrafeita, um artigo polêmico. Contudo, apelar, como faz na resposta que me redigiu, para Hannah Arendt e Zygmunt Bauman, a guisa de “argumento de autoridade” trata-se simplesmente de um autoritário hábito trentino. Devemos falar por nós mesmos e não pela boca dos outros. Mais estranho, vem a ser alegar uma descendência judaica, de maneira cifrada talvez visando cultivar uma crença, totalmente equivocada, de que a terrível experiência do holocausto diz respeito, em primeiro lugar, aos judeus. Nem vem que não tem: a reflexão e o sentimento da tragédia inaudita do holocausto são tão suas como minhas. É de toda a humanidade.
2. Sem pretender recusar a possibilidade de leituras colaterais ou sintomais, é evidente que o foco narrativo de “O Leitor” encontra-se na relação entre Hanna e “O Garoto”. A urdidura do filme, aliás, é bastante tradicional e acadêmica, responde aos esquemas da tradição romanesca adaptados por Hoolywood. Mal comparando, seria como afirmar que o foco de “O vento levou...” estivesse afastado da relação entre Scarlett O'Hara (Vivien Leigh) e Rett Butler (Clark Gable).
3. Por mais que esprema os miolos da cabeça não encontrei em meu artigo nenhuma afirmação de que a autonomia é fato evidente no ser humano, porém, sem dúvida, para repetir um truísmo, o problema da autonomia surgiu com força na modernidade ocidental. Gostei da menção à crença no Papai Noel, ainda que outras pudessem ser convocadas, como, por exemplo, o da virgindade de Maria. Mas acho que entendi o motivo subliminar de sua fixação involuntária na figura do Papai Noel: com efeito, trata-se de uma criação moderna, não medieval; de alguma maneira, remete aos moinhos de vento da felicidade e do consumo, atacados em sua pregação. Antes que me esqueça: não acredito nem em Papai Noel nem na virgindade de Maria.
4. Somente posso atribuir o seu desentendimento ao que eu quis definir como “tradição conservadora moderna” a uma leitura “corrida” de meu texto, pois custo a acreditar que seja ignorante num assunto pelo qual se jacta. Até imitei a mesma embocadura de Hannah Arendt, no livro “De revolução”, juntando Burke e De Maistre Evidentemente, Burke e De Maistre são pensadores diferentes, na ontologia e na epistemologia, mas existe um traço que os une: o combate ao universalismo dos direitos do homem versus o relativismo dos mores. Por isso, fiz questão de grafar a expressão “filosofia política” do iluminismo, circunscrevendo o debate à esfera do político. Se quisermos um texto aceito em vasta fortuna critica como marco do pensamento conservador, eis “Reflexões sobre a Revolução na França”, de Burke, não por acaso uma obra de polêmica que motivou uma resposta clássica de Thomas Paine (Rights of Man). Sobre as motivações, em primeiro lugar, políticas e polêmicas, do pensamento conservador, recomendo a bela obra de um autor que certamente não freqüenta a sua grade de leituras, A. O. Hirschman (A retórica da intransigência – perversidade, futilidade, ameaça).
5. Sinto-me à vontade numa academia filosófica em presença de Hume, bem como de Locke e Adam Smith. Legal que manifeste interesse participar desse clube. Em nome da democracia (mais uma expressão de sua antipatia), defenderia que tivesse acesso à nossa academia. Apenas teria dois reparos: 1) Hume morreu dois anos antes dos acontecimentos franceses, capitais na fundação do conservadorismo moderno, de maneira que é precipitado, de pronto, assimilá-lo ao conservadorismo político; 2) você é um discípulo infiel dos antigos mestres, um subversivo do iluminismo escocês, pois parece juntar num único balaio a conjuntura em que surge o ceticismo moderno com o ceticismo em geral e antigo.
6. Por último, a suprema heresia de uma galhofa à lá Voltaire: o seu artigo sobre “O leitor” faz tabula rasa das recomendações de Hume na crítica ao princípio da causalidade. O pensador escocês jamais enxergaria relações mecânicas e diretas de causa e efeito entre os comportamentos de pais e filhos acossados pelo nazismo. Neste caso, não existe a relação de “causa” e “efeito”, como você compreende, mas simplesmente um “antes” seguido de um “depois”. O sertanejo de Guimarães Rosa resmungaria assim: nenhum, nenhuns...
Um abraço,
Jaldes.
Comentários
Fiquei quase sem fôlego -podes crer, e sem mais palavras encerro
meu comentário. 1abraço nesse
prof.Jaldes, mente brilhante,
sagaz e um eterno caminhante no
saber. Fátima Pessoa