Chico César

Acabei de chegar a casa começo da madrugada, depois de assistir a sessão de show de Chico César no Cineport (o festival de cinema de língua portuguesa que espero durar por longo tempo em João Pessoa).

Belo espetáculo, apinhado de gente, denso, com uma banda super bem ensaiada, de sonoridade elétrica, é de tirar o chapéu a maneira de como a pequena figura do compositor nascido em Catolé do Rocha consegue, no palco, ser o centro das atenções. Trata-se de um doutor em palco, talvez o último grande nome da história da MPB, esse campo de estilos, melodias, ritmos, atitudes, que talvez já tenha cessado a fase áurea de seus fluxos de criação e interação. Não existem mais a indústria fonográfica nem o público universitário, essa estranha simbiose entre grana e política que deu suporte à MPB. Costumo separar MPB e música brasileira. Uma coisa não é precisamente igual à outra. A música no Brasil continua excelente, porém quem sabe a MPB já tenha falecido ou esteja nos estertores, na fase dos últimos espasmos, na qual alguns criadores continuam atraindo grandes platéias, mais ávidas pelo que foi e menos interessadas no que será.

As primeiras páginas de Em busca do tempo perdido (Marcel Proust), Du côté de chez Swann, foram compostas com o narrador dispondo aos leitores recordações a esmo: um livro, a paisagem de uma igreja, as rivalidades entre Francisco I e Carlos V (uma lição escolar). Um mosaico da memória, feito o Chão de Giz de Zé Ramalho. (Alguém já percebeu que esta bela canção são memórias de uma vida vivida numa João Pessoa que nem mais existe? Os tais jornais de folhas amiúde evidentemente são edições de O Norte e o Correio da Paraíba, quem sabe a página Espetáculos de Jurandy Moura. Difícil percepção, pois se trata de uma mensagem cifrada).

Sempre que assisto a um show de Chico César (assisti vários) pareço buscar a um tipo de tempo perdido que nem sei bem se estou certo em datas (no fundo, as datas pouco interessam o que vale é a circunstância): o de que estive presente entre as quinze ou vinte pessoas (não era mais que isso) de sua primeira apresentação pública em nossa cidade. Foi no Auditório do Lyceu Paraibano, nem recordo bem o ano (1976, 1978?), numa miscelânea de música e poesia de Pedro Osmar junto com os dois irmãos Valter e Vladimir Dantas. Naquele espetáculo, para surpresa de quem os conheceu depois, os dois irmãos funcionavam como atores (depois enveredaram por outros caminhos, em seguida abandonaram o palco e foram fazer a luta política contra a ditadura, um no movimento estudantil e outro nos bairros da periferia). Ou, pensado melhor, o próprio espetáculo, metido a “vanguarda” já compunha a própria luta política contra a ditadura?

O Chico César ainda era um menino (parecia ter 15 anos, não mais) que em certo momento cantava uma ou duas canções intimistas num lado escondido do palco, feito um interregno para declamações politizadas de Valter e Vladimir. Uma pausa lírica no combate cerrado.

Ninguém vê um show de Chico César como vejo (nem ele mesmo), nem há nisso nada demais: um espetáculo que compõe uma memória afetiva especial, muito rica, de onde saem pessoas hoje distantes de minhas relações cotidianas (a vida é assim e é bom que o seja). Nunca mais vou esquecer esse pessoal nem vou esquecer-me da primeira (segunda ou terceira, não mais) apresentação de Chico César em Jampa. Quando a gente olha para o passado vê como a vida tem sido feliz.

Por isso, pela vivência que tem nessa cidade, por ter passado por tanta coisa, aqui e lá fora, acho que Chico César tem todas as condições de ser o Secretário de Cultura da Cidade de João Pessoa. Na experiência política brasileira, tão contraditória e difusa, quando uma geração de intelectuais atinge a maturidade, os quadros mais reconhecidos chegam ao poder, muitas vezes abjurando os ideais originais. Nietzsche afirmava (e concordo com ele) que o Estado é o mais frio e cruel dos monstros. Mas o Brasil tem aos poucos mudado, e espero que com ele a nossa Paraíba.

A posse de Chico César é carregada de muitos simbolismos: está se consolidando uma nova geração de poder na Paraíba, inclusive na área da cultura. Espero que a nova geração constitua realmente um novo bloco de poder para mudar e não simplesmente reiterar. (Jaldes Reis de Meneses).

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