As ideias de FHC

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Jaldes Reis de Meneses


Em sua coluna mensal no jornal O Estado de S. Paulo, publicada no domingo de Páscoa (04/05/10), o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (Hora de união http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20100404/not_imp533313,0.php, lançou ao debate público uma tese drástica e polêmica, querendo antever um grave processo em curso que poucos observadores estão se apercebendo: para ele, a opção do voto em José Serra, no embate contra Dilma Rousseff (Marina Silva por enquanto é uma bem-vinda coadjuvante) nas eleições presidenciais, mais que uma escolha rotineira, salvaguarda o próprio destino da democracia no Brasil, tendo em vista as tendências autocráticas que o PT começa a desenvolver como Partido no comando pelo alto do capitalismo brasileiro.

A rigor, as idéias de FHC não são novas. Ao inverso da lenda – injusta – criada em torno de sua imagem, FHC nunca esquece o que escreveu. Embora o próprio autor não cite a fonte, as idéias do artigo para o Estadão foram requentadas; atualiza, em uma nova circunstância, o mesmo veredicto sobre o regime militar exarado de um seu livro antigo, Autoritarismo e democratização, editado em 1974 pela Paz e Terra.

Em resumo, um dos argumentos centrais do livro de FHC diz respeito à formação, naquele tempo, de uma nova classe social no Brasil, a quem chamou de burguesia de Estado, composto principalmente por altos funcionários das estatais. Ele atribuiu e este setor de classe ideologia e interesses próprios, com pretensões hegemônicas vis-à-vis a burguesia liberal e privada.

A primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. Como Geisel ontem, hoje Lula seria o fiador do projeto de conquista da hegemonia da burguesia de Estado, ao fazer acordos e alianças para depois submeter, antes de maneira prussiana e agora populista, de todo modo sempre autoritário. Por isso, segundo FHC, a ampla frente contra a ditadura de Ulysses e Tancredo precisa repetir-se nas personagens de Serra e Aécio Neves. Daí o título do artigo, A hora da união.


Ainda nos anos setenta, vários autores, a exemplo de Carlos Nelson Coutinho (A democracia como valor universal), fizeram a crítica de FHC e de seu conceito de burguesia de Estado. Coutinho demonstrou o caráter meramente descritivo dessas idéias, das dificuldades heurísticas de situar estruturalmente a formação de uma nova classe situada fora dos meios de produção, simplesmente de dentro do aparelho produtivo e burocrático do Estado. As críticas teóricas continuam pertinentes.

Entre as interpretações do Brasil moderno, o conceito de burguesia de Estado tem genealogia. Talvez o primeiro interprete que tenha chamado a atenção para a vigência no Brasil – já na era Vargas – de um capitalismo burocrático tenha sido Caio Prado Jr (A revolução brasileira). Estas idéias tendem a voltar a circular. O eixo de crescimento do capitalismo parece ter girado para formações históricas como a China e a Rússia, países autocráticos totalmente despidos de qualquer tradição liberal. Por seu turno, o Brasil é um caso misto. Nem somos Estados Unidos nem China, embora uma formação social, de todo modo, mais próxima do modelo americano. Entre nós, estranho amalgama, convivem matizes autocráticos e matizes liberais.

Mais importante, no momento de sucessão presidencial em 2010, é detectar quais os objetivos estratégicos de FHC ontem e, ao que parece, hoje. À primeira vista, o objetivo altruísta se trata de buscar deslocar do comando da economia da burguesia de Estado e entregar os cordéis do poder ao empresariado supostamente liberal. Não faz muito tempo, próprio FHC teve a oportunidade de colocar seus objetivos em prática no programa de privatizações das grandes estatais: tivemos, como se recorda, uma fantástica transferência de riqueza de bilhões reais de patrimônio público para o setor privado, por conseqüência uma alteração nas relações de poder entre as elites dominantes brasileiras.

Por ironia, no entanto, em que pese o discurso (e a pose) liberal, no caso das privatizações brasileiras, sob FHC, continuou sendo o Estado o demiurgo dos arranjos privados de uma burguesia muitas vezes descapitalizada, que teve que se valer dos consórcios montados junto com os fundos de pensão nos gabinetes atapetados de palácio. O caso da privatização da Vale do Rio Doce é típico, mas também poderia citar o sistema Telebrás. Da tecelagem ao aço. No leilão de arremate da Vale fez-se vitorioso, para surpresa geral, derrubando a Votorantin e uma grande mineradora sul-africana, um consórcio de proveta liderado pelo herdeiro de uma modesta fábrica de tapetes.


O problema central do Brasil – aí se engana FHC – não reside no tamanho do Estado, mas o que se faz dele. Se algum comando houve no processo de privatização, foi do Estado, cujos dirigentes não se comportaram como segmento de interesses autônomos, mas como comitê executivo dos negócios da burguesia em geral.

Voltando ao antigo livro encerro o presente artigo. Havia um equívoco de nascença na estruturação teórica de Autoritarismo e democratização. Ao formular a estratégia de luta contra a ditadura, FHC operava com um conceito minimalista de democracia por que também restringiu o conceito de ditadura. Conforme o príncipe dos sociólogos, no Brasil havia de fato a vigência regime autoritário, não uma ditadura, percebem o nuance? Florestan Fernandes, em belo texto de 1979 - Apontamentos sobre a teoria do autoritarismo -, logrou demonstrar os ardis da chamada "teoria do autoritarismo", muito em voga na época como modelo explicativo de regimes discricionários, a exemplo do Brasil e da Espanha, criada por Juan Linz e esposada por FHC: o esquema teleológico resultava numa única e férrea causalidade - as possibilidades do "autoritarismo", necessariamente, passavam pelo liberalismo, sem chances de abrir as transições para nenhuma forma de democracia de massas.

Dessa maneira, a disjuntiva – autoritarismo ou democratização – seria resolvida com a conquista de um modelo político inspirado em Montesquieu, de efetivação dos institutos liberais da liberdade civil e política. No fundo, na estratégia de FHC só havia lugar para os de baixo (como gostava de dizer, novamente citando Florestan Fernandes) na condição de ator subalterno, tendo em vista que seus objetivos se esgotavam tão somente na conquista de regime político mais arejado.

Coitados dos tucanos, acaso embarquem na onda de FHC , em vez de oferecer um programa de governo de mudanças, somente oferecem uma resistência cuja teoria poucos tem acesso...

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