Serra, Dilma e o ciclo político brasileiro
Artigo publicado no portal www.wscom.com.br
Jaldes Reis de Meneses
Como se quisesse de alguma maneira imitar a economia, a política também deve ser analisada e periodizada em ciclos de longo e curto prazo. Nos dias de hoje é quase consensual que o período entre 1930 e 1980 (sem rigidez excessiva quanto a datas, algo assim da agregação do movimento tenentista e das oligarquias dissidentes do Rio Grande do Sul, de Minas e da Paraíba, à crise terminal do regime militar) compôs a ópera do drama (em alguns episódios, bufos ou chachadescos) histórico conhecido como a “era Vargas”. Trata-se de uma época na qual quase todos os grandes personagens – à exceção talvez de Oscar Niemeyer – já morreram, ou mais que isso, cujos efeitos do processo desatado a partir 1930 cessaram. O capítulo foi findo, o pano caiu. Circula somente como retrato na parede.
Indo mais fundo, o sinal mais evidente do fim da “era Vargas” foi a quebra do Estado desenvolvimentista e conservador na crise da dívida externa em 1982(O vôo da coruja, José Luiz Fiori). Definitivamente, portanto, o bloco histórico (Gramsci) de 30 morreu, embora seus passivos possam freqüentemente retornar e incomodar os vivos como assombração, a cobrar a fatura das reformas políticas e sociais inexistentes ou, na melhor das hipóteses, efetuadas pela metade – pois o “bloco de 30” foi essencialmente modernizante, contudo conservador –, a exemplo da inexistência no Brasil um pacto federativo igualitário entre as regiões, cujo desempenho na divisão nacional do trabalho seja equilibrado (este o motivo da recente crise dos royalties do Pré-Sal).
Em vários debates públicos, visando elucidar o Brasil depois de 1980, tenho postulado a tese de um ciclo econômico de estagnação e inflação em alta, politicamente caracterizado como um período de incertezas quanto aos rumos do país. Desprovida da ancora do velho Estado desenvolvimentista-conservador, a burguesia brasileira esteve por anos atordoada, sem diretrizes claras nem rumo definido. O jornalismo apelidou o ciclo como a “década perdida”.
Ainda que a década de 1980 tenha sido “perdida” do ponto de vista da economia, em termos políticos, nem tanto. Fizemos a constituição de 1988 e criamos os principais partidos (o PT em 1980 e o PSDB em 1987), as centrais sindicais e os movimentos sociais que são até hoje os protagonistas da vida brasileira.
Embora muita coisa tenha sido feita, o fato é que nenhuma das forças políticas detinha (isolada ou em conjunto) a hegemonia do processo. A eleição de um aventureiro como Collor de Mello era a mais nítida expressão do ciclo político de crise e sem hegemonia certa que foram os anos 80.
A edição do Plano Real em 1994 (governo Itamar Franco) mudou muita coisa no Brasil. Considero haver um “bloco histórico” do Plano Real, envolvendo os dois governos de FHC e Lula, um bloco que já está a completar 16 anos. No momento da sucessão presidencial, duas perguntas se destacam em muitas outras possíveis:
- Em primeiro lugar, caso eleito Dilma ou Serra, tanto faz, o governo será de continuidade do bloco histórico ou se pode vislumbrar um novo ciclo político?
- Depois, Lula e FHC, PT e PSDB fizeram realmente governos iguais ou de continuidade?
Prefiro começar a responder pela segunda pergunta. Os governos de FHC e Lula não foram iguais (nenhum governo é igual ao outro), mas são muitos os elementos de continuidade, principalmente, é claro, a política macroeconômica, resumida na tríade do câmbio flutuante, das metas de inflação e do superávit primário (verdade que os juros começaram a baixar e o superávit, flexibilizado, durante o período de vigência das políticas anticiclicas da crise econômica internacional, mas a conjuntura recomeça a girar em favor da ortodoxia). A grande diferença entre os governos Lula e FCH diz respeito à assimilação pelo aparelho de Estado de todo um setor sindical e popular que fizeram oposição sem trégua à política econômica de FHC. Neste sentido, a base social do governo Lula é muito mais ampla que a de FHC. No tocante à burguesia atordoada dos anos oitenta, a que fizemos menção, a recuperação política foi formidável: os negócios estão indo de vento em popa. É o que interessa.
De alguma maneira, Lula reedita transformando – num Brasil totalmente diferente – elementos do Estado varguista, especialmente a artimanha de absorção do conflito para dentro do próprio aparelho de Estado, local de onde é amortecido. Rigorosamente, todas as forças econômicas e sociais que realmente contam compõem o governo Lula, desde o agronegócio ao MST, do capital financeiro às oligarquias regionais, do sindicalismo cutista ao movimento estudantil da UNE e às ONGs. A economia é toda governo.
O arranjo político de paz, junto com condições externas favoráveis (a válvula chinesa de sucção de commodities) é o fiador do desenvolvimento econômico, fazendo emergir com força inaudita a figura de Lula. Mais além da indiscutível empatia direta com as massas – auxiliadas pelas políticas sociais compensatórias –, há também que levar em consideração o papel mediador e conciliador de Lula nas tramas internas do Estado, a refrega permanente entre forças sociais díspares, como fator de estabilidade. Dessa maneira, para surpresa de muitos e tendo em vista os estritos objetivos realistas a que se propôs, Lula teve mais êxito do que FHC na condução do Estado.
Até quando vai durar tudo isso? Enquanto houver crescimento econômico o amalgama urdido por e através de Lula perdurará. É rotunda quimera falar, feito Aécio Neves, em “pós-lulismo”: o bloco histórico iniciado com a edição do plano real encontrou enfim o seu personagem bonapartista. Inevitavelmente, a sombra do barbudo pairará, qualquer que seja o governo, nos próximos quatro anos.
Qualquer um dos dois eleitos, tanto José Serra como Dilma Rousseff serão presidentes da república mais frágeis que Lula, o primeiro na condição de um príncipe às voltas com os dilemas da administração da obra alheia, a segunda como criatura sem o criador a lhe puxar os cordéis nos bastidores, tendo que agir na condição de maestrina em uma orquestra complicada, dada à polifonia e notas dissonantes. De todo modo, visto do hoje, é possível antever que o otimismo brasileiro passará no futuro próximo (2011-2014) por duras provas políticas e econômicas.
Jaldes Reis de Meneses
Como se quisesse de alguma maneira imitar a economia, a política também deve ser analisada e periodizada em ciclos de longo e curto prazo. Nos dias de hoje é quase consensual que o período entre 1930 e 1980 (sem rigidez excessiva quanto a datas, algo assim da agregação do movimento tenentista e das oligarquias dissidentes do Rio Grande do Sul, de Minas e da Paraíba, à crise terminal do regime militar) compôs a ópera do drama (em alguns episódios, bufos ou chachadescos) histórico conhecido como a “era Vargas”. Trata-se de uma época na qual quase todos os grandes personagens – à exceção talvez de Oscar Niemeyer – já morreram, ou mais que isso, cujos efeitos do processo desatado a partir 1930 cessaram. O capítulo foi findo, o pano caiu. Circula somente como retrato na parede.
Indo mais fundo, o sinal mais evidente do fim da “era Vargas” foi a quebra do Estado desenvolvimentista e conservador na crise da dívida externa em 1982(O vôo da coruja, José Luiz Fiori). Definitivamente, portanto, o bloco histórico (Gramsci) de 30 morreu, embora seus passivos possam freqüentemente retornar e incomodar os vivos como assombração, a cobrar a fatura das reformas políticas e sociais inexistentes ou, na melhor das hipóteses, efetuadas pela metade – pois o “bloco de 30” foi essencialmente modernizante, contudo conservador –, a exemplo da inexistência no Brasil um pacto federativo igualitário entre as regiões, cujo desempenho na divisão nacional do trabalho seja equilibrado (este o motivo da recente crise dos royalties do Pré-Sal).
Em vários debates públicos, visando elucidar o Brasil depois de 1980, tenho postulado a tese de um ciclo econômico de estagnação e inflação em alta, politicamente caracterizado como um período de incertezas quanto aos rumos do país. Desprovida da ancora do velho Estado desenvolvimentista-conservador, a burguesia brasileira esteve por anos atordoada, sem diretrizes claras nem rumo definido. O jornalismo apelidou o ciclo como a “década perdida”.
Ainda que a década de 1980 tenha sido “perdida” do ponto de vista da economia, em termos políticos, nem tanto. Fizemos a constituição de 1988 e criamos os principais partidos (o PT em 1980 e o PSDB em 1987), as centrais sindicais e os movimentos sociais que são até hoje os protagonistas da vida brasileira.
Embora muita coisa tenha sido feita, o fato é que nenhuma das forças políticas detinha (isolada ou em conjunto) a hegemonia do processo. A eleição de um aventureiro como Collor de Mello era a mais nítida expressão do ciclo político de crise e sem hegemonia certa que foram os anos 80.
A edição do Plano Real em 1994 (governo Itamar Franco) mudou muita coisa no Brasil. Considero haver um “bloco histórico” do Plano Real, envolvendo os dois governos de FHC e Lula, um bloco que já está a completar 16 anos. No momento da sucessão presidencial, duas perguntas se destacam em muitas outras possíveis:
- Em primeiro lugar, caso eleito Dilma ou Serra, tanto faz, o governo será de continuidade do bloco histórico ou se pode vislumbrar um novo ciclo político?
- Depois, Lula e FHC, PT e PSDB fizeram realmente governos iguais ou de continuidade?
Prefiro começar a responder pela segunda pergunta. Os governos de FHC e Lula não foram iguais (nenhum governo é igual ao outro), mas são muitos os elementos de continuidade, principalmente, é claro, a política macroeconômica, resumida na tríade do câmbio flutuante, das metas de inflação e do superávit primário (verdade que os juros começaram a baixar e o superávit, flexibilizado, durante o período de vigência das políticas anticiclicas da crise econômica internacional, mas a conjuntura recomeça a girar em favor da ortodoxia). A grande diferença entre os governos Lula e FCH diz respeito à assimilação pelo aparelho de Estado de todo um setor sindical e popular que fizeram oposição sem trégua à política econômica de FHC. Neste sentido, a base social do governo Lula é muito mais ampla que a de FHC. No tocante à burguesia atordoada dos anos oitenta, a que fizemos menção, a recuperação política foi formidável: os negócios estão indo de vento em popa. É o que interessa.
De alguma maneira, Lula reedita transformando – num Brasil totalmente diferente – elementos do Estado varguista, especialmente a artimanha de absorção do conflito para dentro do próprio aparelho de Estado, local de onde é amortecido. Rigorosamente, todas as forças econômicas e sociais que realmente contam compõem o governo Lula, desde o agronegócio ao MST, do capital financeiro às oligarquias regionais, do sindicalismo cutista ao movimento estudantil da UNE e às ONGs. A economia é toda governo.
O arranjo político de paz, junto com condições externas favoráveis (a válvula chinesa de sucção de commodities) é o fiador do desenvolvimento econômico, fazendo emergir com força inaudita a figura de Lula. Mais além da indiscutível empatia direta com as massas – auxiliadas pelas políticas sociais compensatórias –, há também que levar em consideração o papel mediador e conciliador de Lula nas tramas internas do Estado, a refrega permanente entre forças sociais díspares, como fator de estabilidade. Dessa maneira, para surpresa de muitos e tendo em vista os estritos objetivos realistas a que se propôs, Lula teve mais êxito do que FHC na condução do Estado.
Até quando vai durar tudo isso? Enquanto houver crescimento econômico o amalgama urdido por e através de Lula perdurará. É rotunda quimera falar, feito Aécio Neves, em “pós-lulismo”: o bloco histórico iniciado com a edição do plano real encontrou enfim o seu personagem bonapartista. Inevitavelmente, a sombra do barbudo pairará, qualquer que seja o governo, nos próximos quatro anos.
Qualquer um dos dois eleitos, tanto José Serra como Dilma Rousseff serão presidentes da república mais frágeis que Lula, o primeiro na condição de um príncipe às voltas com os dilemas da administração da obra alheia, a segunda como criatura sem o criador a lhe puxar os cordéis nos bastidores, tendo que agir na condição de maestrina em uma orquestra complicada, dada à polifonia e notas dissonantes. De todo modo, visto do hoje, é possível antever que o otimismo brasileiro passará no futuro próximo (2011-2014) por duras provas políticas e econômicas.
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