Irã: a contradição em processo

Artigo também postado no portal www.wscom.com.br

Jaldes Reis de Meneses

Embora tenha tido a pachorra de vasculhar a cobertura sobre o acordo nuclear do Brasil e da Turquia com o Irã em todos os grandes jornais brasileiros – a exceção talvez de o “Estado de S. Paulo”, ainda o nosso melhor jornal em cobertura internacional –, me chamou a atenção que em nenhum deles aproveitou a celeuma do acordo para fazer um rigoroso detalhamento da história do Irã com o objetivo de melhor compreender as estratégias e o comportamento internacional desse país.

Na maioria dos editoriais da imprensa, o que falta em pesquisa e análise sobra em preconceito, o que é grave, principalmente em ano eleitoral e numa circunstância na qual, pela primeira vez, os dois partidos em contenda – o PT e os PSDB, através de Dilma e Serra – esboçam políticas internacionais bem distintas: o primeiro buscando negociar posições com os países do Conselho de Segurança da ONU e o segundo tendente a adotar unilateralmente a política dos Estados Unidos (ainda mais quando um democrata, Barack Obama, tem assento na presidência da República).

Por exemplo, pelo que li nenhum dos nossos jornais investiu numa embocadura de longo prazo, como fiz em minha coluna da semana passada, ao recordar a importância dos acordos de Teerã em 1943, a partir de onde a ação norte-americana na região corresponde precisamente a uma geopolítica do Petróleo, nem a ativa participação no golpe de Estado que derrubou o governo constitucional e nacionalista de Mohammed Mossadegh. Civilização antiguíssima, mais parece que a história do Irã começa com as vicissitudes do regime teocrático do Aiatolá Khomeini em 1979. Até a ditadura do Xá Reza Parlev desapareceu dos anais da histórica contada nos jornais.

Para entender o Irã, é preciso saber que se trata de uma sociedade complexa e em processo de mudança, cujos dois principais lineamentos políticos, hoje, são a surpreendente convivência de um regime misto, teocrático e parlamentarista, presidido por uma liderança civil populista de feições bonapartistas (a lá Hugo Chávez), Mahmoud Ahmadinejad, uma figura que precisa se melhor explicada.

Abundam em alguns jornais e revistas semanais referências a Hitler e Stalin a propósito de enxergar a natureza política de Ahmadinejad. A comparação de Ahmadinejad com os chefes do nazismo e do sovietismo totalitários é pura retórica, conquanto ele tenha dado terríveis e irresponsáveis declarações negando o holocausto, aliás, reiterando as simpatias que os mulçumanos em geral demonstraram a luta no deserto das tropas alemãs contra os ingleses, na Segunda Guerra Mundial. Ele sequer tem os cordéis absolutos do Estado nas mãos, posto não ser membro da cúpula religiosa do regime. Prefiro defini-lo como populista, um sujeito que vem de baixo, se formou em engenharia e se tornou prefeito de Teerã com o apoio dos mais pobres. Também é um fato novo, elemento de desequilíbrio das relações de força entre a teocracia e o parlamentarismo, que parece ter cativado forças militares e os xiitas mais fundamentalistas no sentido de enveredar pela coerção violenta a qualquer movimento de abertura do regime.

Se Lênin um dia falou em dualidade de poderes, neste caso estamos diante de uma autêntica “triplicidade de poderes”. Dessa maneira, teocracia, parlamentarismo e bonapartismo fazem um único e contraditório nó, com certeza, hegemonizado pelo lado teocrático – o conselho da revolução, comandado pelo verdadeiro chefe (mais que Ahmadinejad), o Aiatolá Khamenei, líder religioso xiita a quem cabe a última palavra, impositiva ou moderadora, sobre todos os assuntos relevantes de Estado. Com certeza, é no aspecto teocrático que o regime do Irã se afastada do ocidente. Aqui, as revoluções modernas dos séculos XVII (Inglaterra) e XVIII (Estados Unidos e França), em tumultuoso processo, obtiveram êxito em separar poder político e poder transcendental. Vou até além à análise histórica e concedo à possibilidade uma explicação de fundamento: há uma diferença de fundo entre a religião cristã e mulçumana; aqui, Jesus era filho de Deus desprovido de armas; lá, Maomé, ao mesmo tempo, fazia os papéis de profeta e general. Porém, mesmo havendo a diferença de fundo, não devemos apostar em “choque de civilizações”, pois ambas podem conviver pacificamente por um simples motivo: as similitudes superam as diferenças.

A inusitada armadura institucional do Irã – teocrática e parlamentarista – pouco tem a ver com ditaduras oligárquicas árabes, algumas alinhadas aos Estados Unidos, como a Arábia Saudita ou o Egito, ou de oposição, como a Líbia e a Síria, nas quais não funcionam eleições com um mínimo de participação e os parlamentos são peças meramente formais. Nada disso.

Certamente, devo contrariar o senso comum ao revelar que, na verdade, o Irã é dotado de uma ativa sociedade civil em vários traços a mais ocidentalizada e modernizada daquela região. Por outro lado, contraditoriamente, é também nesta sociedade que a experiência de implantar, através de uma revolução de massas – uma das maiores e radicais do século XX –, um regime teocrático mulçumano foi mais longe. O Irã é a própria contradição em processo.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Resenha

Vinícius de Moraes: meu tempo é quando

Colômbia: 100 anos de solidão política